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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MIL E UMA NOITES DE MASCATE AO CAIRO

Por Guilherme d’Oliveira Martins 

 

Chegados a Mascate, sentimos intensamente o calor húmido do deserto. São quase onze horas da noite. Estão mais de 35 graus centígrados. A hospitalidade é a primeira nota. A limpeza e a organização seguem-se com naturalidade. No Hotel Shangri-La, somos recebidos com incenso (do sul do Oman, provindo da resina da Boswelia sacra), um extraordinário sumo de tâmaras e uma refeição ligeira e requintada. Quinhentos e dois anos, dia por dia, depois de Afonso de Albuquerque ter conquistado a cidade, a caminho de Ormuz, em 1507, a embaixada cultural do Centro Nacional de Cultura continua a demanda dos marcos da presença portuguesa. Muito cedo, no dia seguinte, partimos por estrada boa (em obras de reparação em virtude dos efeitos do ciclone de 2007) para Curiate e Calaiate, a sul da capital. Com livros e mapas na mão, como normalmente fazemos, procuramos encontrar no território omanita os vestígios da presença portuguesa, que se prolongou por mais de cem anos. Paramos em Curiate para visitar o forte. Muito calor. A construção militar foi renovada nos anos noventa. Podemos reconhecer, apesar da ausência dos baluartes, a imagem da planta publicada por António Bocarro (c. 1594-1642) no "Livro das Plantas das Fortalezas da Índia Oriental" (1635). O desenho de Pedro Barreto de Resende é reconhecível. Lá estão o palmeiral e o deserto. "Os muros são de adobes, como todos os mais da Arábia que fizerão mouros". Os pastores do deserto, com rebanhos de cabras e ovelhas, deambulam na pequena cidade em volta das muralhas. Com emoção, podemos reviver, cinco séculos depois, a azáfama dos companheiros de Albuquerque. Nos compartimentos do forte vemos a reconstituição de como seria a vida no interior. Segundo Bocarro: "há mais dentro nesta fortaleza hum almazem pera mantimentos, outro pera munições, e hum poço de aguoa, sem mais outra couza". E, ao olharmos as palmeiras com cachos de tâmaras, lembramo-nos de que um dos meios de defesa, além dos canhões e da armaria, era o melaço de tâmara a ferver, que fazia as vezes do azeite quente usado pelos europeus. Depois de Curiate, passamos por Calaiate (Qallhat), também conquistado por Albuquerque na sua caminhada até Ormuz. Hoje já não há reminiscências visíveis do forte, mas vemos o mausoléu de Bibi Maryam construído em pedra de coral, em forma de cubo, decorado com nichos e portas cegas, cerca de 1311 da nossa era. Trata-se de uma homenagem à mulher de um chefe local, falecida com fama de bem-aventurada. Foi das poucas construções poupadas no ataque da armada portuguesa.

 


Forte português Al Jalali, em Mascate

 

A partir de 10 de Agosto de 1507, o “terribil” Albuquerque, com 40 homens e uma armada de 6 navios subiu a costa da Somália e passou a zona meridional da Arábia: ilha de Socotorá, Calaiate, Curiate, Mascate, Soar e Corfacão. As cidades conquistadas ou submetidas assentavam a sua prosperidade no comércio dos cavalos árabes e das especiarias e na ligação entre o trato do Mar Arábico, a Rota da Seda e o Mercado do Levante. À distância dos séculos, entendemos o génio de Albuquerque. Percebe-se, ao olhar o mapa do estreito de Ormuz, que um sistema de defesa eficiente tinha de situar-se nas costas. Isso permitiu aos portugueses manterem presença efectiva durante cerca de cento e cinquenta anos, apesar das vicissitudes. Estamos num dos pontos de maior interesse económico, desde a Antiguidade. Aqui se juntavam as rotas do comércio entre a Europa e a Ásia e era a porta do mítico reino do Preste João das Índias. Por isso, Marco Pólo passou por Ormuz duas vezes (em 1272 e 1293). E o franciscano Lourenço de Portugal, enviado pelo Papa Inocêncio IV, a este mesmo estreito, numa missão junto dos Tártaros, chegou aqui 27 anos antes do veneziano.
 

Mascate. A cidade histórica recorda-nos o tempo em que esteve sob administração portuguesa (1507-1648). Os fortes de Jalali e Mirani rodeiam o moderno Palácio do Sultão. A imagem do cartógrafo de Bocarro, com a enseada, o porto de abrigo, a concha protegida pelos rochedos, é bem identificável. É impressionante a fidelidade. No fim da tarde, com lua cheia e uma luminosidade turvada pela humidade, é uma cidade das mil e uma noites, como se Sherazade tivesse contado mais uma história sobre portugueses. Aliás, segundo a lenda, Simbad, dos sete mares, nasceu em Sohar a noroeste daqui.

 

Canhão português à entrada do Forte omanita de Nizwa

 

Depois de uma noite retemperadora, fomos a Nizwa, no interior, onde os portugueses não estiveram, mas tivemos a boa surpresa de descobrir no forte um canhão, trazido da costa, com as armas do rei de Portugal, com o colar do Tosão de Ouro. E, ao passarmos pela mesquita de Barla, Anísio Franco lembrou que os gomos das cúpulas das mesquitas são os das guaritas da Torre de Belém, ou não fosse a construção de Francisco de Arruda uma das memórias da conquista de Ormuz e da implantação do Império do Índico. Lá está o rinoceronte Ganda, oferecido a Albuquerque pelo rei de Cambaya, e enviado, para espanto geral, a D. Manuel, Senhor do Comércio, da Navegação e da Conquista da Pérsia, Arábia e Índia. E como não lembrar a Quinta da Bacalhôa, por influência de Brás Afonso de Albuquerque? Hoje o Sultanato aposta na modernização. Apesar de se estar em pleno Ramadão não sofremos contratempos. O turismo de qualidade é um desígnio do Sultão, Qabous Bin Said, a investigação científica e a cooperação internacional estão na ordem do dia. Dentro de 20 anos a economia do petróleo ter-se-á esgotado. Haverá gás natural, mas o Oman prepara-se para obter novos recursos. Ao vermos a porta manuelina no castelo de Mirani, ao lembrarmos a Torre de Belém, percebemos que na Arábia Félix encontramos a nossa memória. Mas ouvimos também Albuquerque dizer “Mal com El-Rei por amor dos homens, mal com os homens por amor d’El-Rei”.

 

Depois de conquistada Mascate, Afonso de Albuquerque apontou como objectivo Ormuz, a cidade comercial e o centro político que ligavam o comércio da Ásia às rotas do Levante. O controlo das entradas do Sino Pérsico e do Mar Roxo era fundamental para o Império da Índia. A ilha fica hoje no Irão. Não a visitámos por segurança. Optamos pelo sistema de defesa, aproximando-nos o mais possível da costa iraniana. Instalámo-nos, por isso, na cidade de Khasab, em Mussandam, zona de montanha do Oman, constituída por rochas sedimentares, de formações singularíssimas, resultantes do choque das placas Euro-asiática e Africana, na explosão da Pangeia. Os fiordes são únicos. Visitámo-los num cruzeiro mágico, em águas calmas, em zona de alta segurança. Vimos mergulhões, golfinhos e um fundo de mar fantástico com peixes e flora de mil cores. Mergulhámos na ilha do Telégrafo, onde os ingleses instalaram a base de comunicações em 1864. A manhã não permitiu ver a costa do Irão, mas à tarde a neblina desvaneceu-se e adivinhámos com emoção o desenho incerto da costa da Pérsia. Em 24 de Outubro de 1507, Albuquerque começou a lançar as fundações da nova fortaleza de Ormuz. Mas nesse ano não teve condições para continuar. Só em 1515 o “cavaleiro grande” voltaria para tomar a praça. Recordámo-lo perante a costa montanhosa, alcantilada, seca, constituída pela natureza em camadas implosivas e paralelas. E ainda passámos por Kumsar, a pequena cidade protegida pelos portugueses de quinhentos, onde ainda se diz batel e bandeira. E regressámos a Khasab, já noite.

 

Avenida no Dubai

 

O périplo do Golfo Pérsico culmina no Barhein. É a Tylos de Alexandre Magno. Depois de passarmos pelo forte de Ras-al-Khaimah e pelo Dubai, visitamos a notável obra que está a ser feita no forte português do Barhein. É uma construção semelhante à de Ormuz. Foi conquistada por D. Antão de Noronha (1559). Tem três baluartes à italiana, que o tornavam inexpugnável (como Mazagão). Nunca foi vencido e só foi abandonado depois da queda de Ormuz. Apesar de tudo, o sonho de Albuquerque não se realizaria. Faltou conquistar a porta do Mar Roxo, Adém. E homenageámos simbolicamente o “forte leão dos mares” em Aqaba, no Mar Vermelho, vindos do deserto do Wadi Rum, dos “Sete Pilares da Sabedoria”, sob a invocação de Lawrence da Arábia, de que os beduínos ainda falam como um dos seus, no silêncio do deserto, em volta do chá de menta com cardamomo. Na Jordânia, a visita a Petra permitira-nos recordar os nabateus, escultores da pedra vermelha do deserto. A cidade esteve escondida, até que o suíço Burkhardt a reencontrasse (1812). Perante a fachada do Tesouro, celebrizada por Indiana Jones ou Tintin em “Coke en Stock”, ou o imponente Mosteiro fica a dúvida: quem construiu esta maravilha do mundo? Os nabateus inventaram a técnica e os gregos e os romanos deram-lhe a imaginação e a arte. Por fim, o Cairo. “A cosmopolita confusão das ruas e bazares” (Conde de Ficalho) permite-nos lembrar Pero da Covilhã e Afonso de Paiva que daqui partiram (1488) e aqui deviam ter-se reencontrado (1491), mas também Eça de Queirós de “O Egipto”. A cidade é hoje uma Babel, uma encruzilhada, onde oriente e ocidente se encontram. Mas o Nilo ancestral tem a ver, afinal, com as nossas raízes.

 

 

Fotos © CNC/HelenaSerra