Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 
 

de 26 de Outubro a 1 de Novembro de 2009

“António Sérgio – A Obra e o Homem” de Joaquim Montezuma de Carvalho (Arcádia, 1979) é um livro que merece uma atenção especial, uma vez que o autor procede nele a uma leitura da obra do escritor dos “Ensaios” nos vários domínios em que esta se desenvolve, o que nos permite ter um roteiro introdutório relativamente a uma produção consabidamente heterogénea e multifacetada, que é apresentada com coerência e de um modo acessível e panorâmico. Cabe, aliás, fazer uma homenagem à personalidade de Joaquim Montezuma de Carvalho (1928-2008), cujo falecimento passou injustamente despercebido, laboriosíssimo e incansável homem de cultura, cuja obra dispersa é de grande interesse e valor. Vivendo em Angola e Moçambique desde os anos 50, regressou a Portugal em 1976, onde exerceu advocacia. Filho do Professor Joaquim de Carvalho, organizou, ainda estudante, uma homenagem a Teixeira de Pascoaes, publicou o Epistolário Ibérico de Pascoaes e Unamuno, organizou textos de seu pai, deu à estampa em Angola “Panorama das Literaturas das Américas de 1900 à actualidade” e produziu intensa colaboração na imprensa latino-americana, com grande reconhecimento público, mas incompreensível desatenção em Portugal.


António Sérgio por João Abel Manta

A OBRA E O HOMEM
Montezuma de Carvalho analisa quatro domínios fundamentais da produção teórica de António Sérgio – do filósofo, do historiador, do pedagogo activo e do doutrinador do cooperativismo. E verificamos, com facilidade, que há uma inequívoca complementaridade entre estes diversos capítulos, ficando claro que o ensaísta foi sempre um “homem político” e um “pedagogo activo”. Tudo o que lemos do seu pensamento decorre desta dupla assunção. Aliás, o homem político decorreu, naturalmente, do cidadão e do pensador. Se há no século XX português um exemplo de intelectual comprometido e empenhado na coisa pública, em coerência com o seu pensamento, apesar de todas as adversidades e nunca numa perspectiva de exercício imediato de poder, esse é o de António Sérgio de Sousa (1883-1969). E se digo sem uma perspectiva imediata do poder, é porque quer no final da Primeira República quer durante a oposição a Salazar, Sérgio manteve-se fiel àquilo que Julien Benda tratou em “La Trahison des Clercs” e que o ensaísta traduziu deste modo: “Está bem, a meu ver, que os intelectuais se interessem pela vida pública: mas devem fazê-lo todavia para tentarem submeter a acção política a um pensamento universal e des-subjectivado, a um ideal de racionalidade o mais pura possível – e não para formularem justificações sofísticas das paixões de preconceitos de qualquer facção” (como afirmou em entrevista à “Vértice”, em Junho de 1956). O fundamental estaria, pois, na procura de um princípio universal, um ideal de racionalidade (ou não fora ele um idealista), demarcado da lógica oportunista do imediato. Tanto quando foi Ministro da Instrução Pública com Álvaro de Castro (1923-1924), como quando, no final da vida, animou a candidatura do General Delgado, encontramos o mesmo desejo – de realizar um ideal de democracia de cidadãos livres e unidos por um desígnio de cooperação.

UM PERCURSO INTELECTUAL
A vida de António Sérgio, desde Damão, onde nasceu, passando por Angola, pela frequência do Colégio Militar, pela fugaz carreira na Armada, pelo pedido de licença ilimitada, sob o efeito brutal do suicídio do seu grande amigo Frederico Pinheiro Chagas, é marcada por uma vocação literária. A influência de Antero de Quental é sentida desde muito cedo, logo em 1909. Sérgio passa por Londres e pelo Rio Janeiro no exercício da actividade editorial. Aproxima-se da Renascença Portuguesa, relaciona-se com Raul Proença e Jaime Cortesão. Estuda pedagogia, em Genebra, com sua mulher, Luísa. Em 1914, afasta-se da “Renascença”, demarcando-se do saudosismo de Pascoaes e defendendo uma aproximação em relação à Europa. Afirma-se como persistente polemista (gastando tantas vezes demasiadas energias nesse digladiar). A seguir à queda de Sidónio Pais (1918), depois de ter dirigido a revista “Pela Grei”, onde procurou lançar ideias para uma “regeneração republicana”, baseada na educação, volta ao Brasil. Raul Proença desafia-o para voltar a Portugal. E assim acontece, em 1922, quando já está lançada a revista “Seara Nova”. Sérgio liga-se aos grupos da Biblioteca Nacional. Torna-se, com Proença e Cortesão, um dos esteios do novo movimento, entrando para o governo de Álvaro de Castro, onde exerceu funções durante três meses. Desde os textos sobre a “Educação Cívica” (1915) e continuando na persistente tentativa de levar a República moderna a executar uma política educativa eficaz (revendo os métodos pedagógicos, articulando ensino e vida económica, incentivando o sentido crítico do conhecimento da história, organizando a República escolar, integrando internacionalmente o ensino superior e a investigação científica), António Sérgio investe sobretudo nas transformações educativas.

HISTÓRIA, VONTADE E PEDAGOGIA
“Poucos países há, certamente, em cuja história seja tão sensível, de ponta a ponta, o influxo do facto económico, como este nosso: poucos há também cuja história económica fosse tão desprezada; e será acaso dos maiores obstáculos ao ressurgimento da nossa pátria a falta geral de conhecimentos sólidos das condições económicas em que se evolucionou” (1924, in “Antologia dos Economistas Portugueses”). Afinal, Sérgio segue o ensino de Antero de Quental: “A moralidade colectiva é um facto, em grande parte, de ordem económica, ainda que esta afirmação pareça paradoxal”. Porquê? Como diz em 1924 a Jaime Magalhães de Lima: “o exemplo do santo é adjuvante; o de homem de carácter, necessário; nenhum deles é o factor suficiente da prosperidade social. Só frutificam, ambos eles, pela acção educativa da formação particularista”. Por isso insistirá em que: “a nossa futura pedagogia deverá ser, essencialmente, uma pedagogia de trabalho e da organização social do trabalho”. Economia e dignidade humana são faces da mesma moeda. Não se entende a satisfação das necessidades sem a consideração da moralidade e vice-versa, ideias e coisas relacionam-se intimamente. Não se pense, pois, que há compartimentos estanques na reflexão de António Sérgio. Há, sim, uma ligação íntima entre a interpretação histórica e económica, a concepção filosófica e a intervenção cívica e política. Tudo se articula. Afinal, para o ensaísta “a pátria é um ir sendo pela vontade e pela consciência”. Alexandre Herculano e a melhor reflexão historiográfica oitocentista estão bem presentes, prolongando-se para a intervenção transformadora. E vem à baila a ideia de “fixação”: “adoptei a palavra fixação para designar o investimento dos lucros do transporte em fainas produtoras nos territórios nacionais em vez de deixarmos que os ditos lucros passassem todos a gente estranha para pagamento do muito que nós importávamos. Se a ideia de política de fixação não supusesse a existência de transporte, chamar-lhe-ia política de produção, e não política de fixação (a ideia de fixação – ao que me parece evidente – pressupõe a de um algo que se está movendo, que está sendo transportado)”. Mas, para António Sérgio é preciso saber quem é o sujeito da História, enquanto ser livre, actuante e racional. Daí a noção do “terceiro homem” – “o homem do libertarismo auto-disciplinado e reformador. É o cooperativista, o Homem possuído da ideia da sociedade justa (…) é o Homem da autoridade interna subjugado ao império do racional, sol que doura e ilumina a sua inteligências, vontade e sentimento”. E, ao reler reflexões como esta, Joaquim Montezuma de Carvalho remata magistralmente: “Sérgio realiza entre nós a apoteose de unidade. Ética, Estética e Ciência são a unidade na diversidade. Depois dos gregos, a dispersão, o homem unilateral. Sérgio prolonga na modernidade o pitagorismo dos versos de ouro: sem unidade não há orientação, sem auto-domesticação não atingimos a imortalidade dos deuses. Sérgio é helénico por excelência. É o homem integral”. 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

 

 

A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de Outubro de 2009.

 

E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença

Guilherme d'Oliveira Martins
 


“A Luz Fraterna – Poesia Reunida” de António Osório (Assírio e Alvim, 2009), com prefácio de Eugénio Lisboa, é uma obra de arte, como aquelas a que o editor, Manuel Rosa, nos tem habituado. Na capa deparamos com um extraordinário “Contraluz”, de Miguel Ângelo Lupi, óleo sobre tela de 1875, pintura que acompanha o poeta, como referência familiar, e que revela um dos melhores pintores portugueses do século XIX. Uma janela sobre o jardim deixa entrar os raios de sol de um dia glorioso, as rendas dos cortinados esvoaçam e, em primeiro plano está Teresa Júlia (o “Amor de Miguel Ângelo Lupi”), “derradeiro modelo (…) / ela dardejando a integração primaveril…”. E, como disse Fernando J.B.Martinho, na apresentação do livro, não é possível compreender António Osório sem essa ligação intrínseca à “Felicidade da Pintura”.

 

UM POETA DO RIGOR E DA “PIETAS”. – Muito se tem dito e escrito sobre a fecunda obra de António Osório, mas o título que foi escolhido para esta reunião de poesia é de uma rara felicidade, pois define bem a alma de quem é, entre nós, uma voz única, pelo modo como aborda a realidade que o cerca, como um denodado artífice, que cinzela a palavra com gosto e afecto indiscutíveis. Como José Manuel de Vasconcelos disse há na poesia de António Osório uma presença permanente de luz e de luminosidade. Por isso, a escolha da capa é uma demonstração de que sem essa luz não é possível entender a força das palavras e das ideias. E para quantos insistem em referir a influência da poesia italiana e dos poetas italianos no autor de “A Raiz Afectuosa”, a verdade é que, mais do que dos poetas italianos (Dante, Quasímodo, Saba, Montale, Ungaretti…), o que se sente é a memória de Florença e o ritmo da língua da mãe italiana. É o cantar florentino, a cada passo, como reminiscência idílica de San Miniato al Monte. “Desde menino me obrigaste / a falar a tua língua. / Itália, religião tua, depois / minha. / Mãe que por bem / me destroçaste ficando / sem pátria nenhuma”. Contudo, em falando de poesia, não podemos esquecer a influência paterna, camoniana, clássica, obstinadamente medida. E além de Camões, Pessanha e Cesário, e depois Torga, Sophia… Ao lado da luminosidade, há, assim, a fraternidade, próxima e familiar, imanente e franciscana. O poeta não teme expor as suas relações familiares, heterogéneas, por vezes dolorosas e difíceis, mas a maior parte das vezes ternas. “A teu lado estou / sorrindo a chamar-te, / espero que regresses a casa, / ansiosamente corro para a porta. // E ao colo sinto o teu calor, contigo passeio pela mão, / pergunto, pergunto e tu respondes / ocultando o fim da vida”. Fernando J.B.Martinho diz-nos que Deus se sente mais na poesia de Osório como imanência do que como transcendência (“Nascido antes de Cristo / uma vez mais floriu / o velho e agora jovem mirto”). Daí o ser poeta da “pietas”, da piedade e da ligação fraternal. De facto assim é. Dir-se-ia que é Frei Agostinho da Cruz que se manifesta desse modo, entre urzes e medronheiros, na mata sagrada da Arrábida, omnipresente serra-mãe. Mas o poeta nunca esquece o ofício do artífice, ele, o advogado que aprendeu a pesar palavra a palavra, mas que tanto admira os calceteiros (“Escrevem na rua: / juntam / cuidadosamente / palavras”). E, tantas vezes, ouvimos as palavras do poeta com um nó na garganta de emoção, sentindo o que só os melhores poetas são capazes de transmitir. É o que acontece em “Como um pombo do Piazzale Michelangelo”. Aí, além do sentido cinematográfico, que é evidente, há uma tensão poética de forte intensidade, que nos toca intimamente. Dir-se-ia que partimos da imanência em busca da transcendência (“Procuro chegar ao telhado, / à destruída casa de teus pais”). O ponto mais alto do Campanbile de Giotto, os sinos que percorrem Fiesole, Leonardo a dar asas às aves do Mercato de San Lorenzo, Dante, Donatello – as línguas portuguesa e italiana misturam-se nos nomes e nos lugares. A luz fraterna invade o poema. É clara, terna, calorosa: “… à espera que uma persiana se abra / e encontre, Mãe, um rosto que lembre o teu / e onde nessa mão eu chegue e coma”. Nada está a mais ou a menos – a música, a pintura, a arquitectura, a língua, a cidade, o rio, a memória e o mistério… E Montale tem razão: a poesia, “la più discreta delle arti”.

A PRESENÇA PERMANENTE DOS CLÁSSICOS. – O poeta embrenha-se na busca da sabedoria ensinada por Bashô, que não seguia o caminho dos antigos, mas buscava o que eles buscavam. E nessa busca estão raízes fundas e escondidas. Entre a recordação das letras portuguesas, por via paterna, e a musicalidade italiana, da poesia maternal, fica um território largo para o Mediterrâneo e as suas influências. Afinal, António Osório é, como a Arrábida de Orlando Ribeiro, a ligação permanente e intrínseca do Atlântico e do Mediterrâneo. E por isso Ulisses está bem presente na peregrinação de regresso a Ítaca, mas, mais do que isso, na sua memória da Guerra de Tróia, paradigma dos combates humanos e da criação da complexa, mas apaixonante, Europa. Heitor, bem o sabemos, é a grande referência de António Osório. Sabemos do seu desgosto quando ouviu pela primeira vez a “Ilíada” e como achou injusto que Aquiles levasse de vencida o seu leal antagonista: “Heitor, o herói vencido. / Nada alteraria / o rumo da lança, / nem o pranto de Andrómaca, / no seio depois / enterrando-lhe a nuca. / Odiava a guerra / e era, não obstante, implacável / quando esclarecido e meigo”. Na “décima aurora”, nenhum humano “foi mais dignamente chorado”. A História reserva-nos, afinal, desfechos misteriosos, tantas vezes incompreensíveis. Cabe aos poetas a revelação de como a aparência é, a maior parte das vezes, triste ilusão, “queimando vivo o seu fantasma”. E, a cada passo, António Osório reserva-nos, a nós seus leitores, a cumplicidade nessa procura dos sentidos obscuros e inefáveis. “Porque há um sentido / no lírio, incensar-se; / e no choupo, erguer-se; e na urze arborescente, / ampliar-se; / e no cobre, primeira cura, / que dou à vinha, / procriar-se”.

A IMPORTÂNCIA DOS AFORISMOS. – José Bergamin está presente, como sombra tutelar, na poesia de António Osório e no uso do método aforístico. “El toro no piensa; da que pensar”. É o Mediterrâneo contraditório que se manifesta. O poeta espanhol quando criou a sua revista “Cruz y Raya” fê-lo pondo na capa os símbolos desse misterioso título, a cruz com o sinal de somar, e “raya” com a marca da subtracção. Mais e menos, afirmação e negação. Compreende-se que para António Osório Bergamin seja referência. “D. Quixote e os Touros” é, assim, a expressão de uma permanente contradição entre a valentia e a barbárie. “Deus não assiste, em regra, às corridas de touros; quando assiste castiga, pelo menos, com a enfermaria”. E como marca da contradição, diz António Osório: «José Bergamín, grande poeta e ensaísta, confidente de matadores, embora considere o toureio um jogo ‘criador, poético’, verberou várias espécies de ‘pornografia mortal’ da corrida, sobretudo a outorga dos apêndices do touro abatido ‘reminiscencia espantosa de las peores luchas humanas’». E aqui entra D. Quixote, “o drama cómico da loucura – de uma loucura turbulenta e generosa. Se a loucura do diestro não se mostra desastrada ou grotesca, não deixa de ser exorbitante e insensata de todo, e por aí rematadamente quixotesca”. E Bergamín fala da metáfora da morte e de um “destino, que não é justamente o de morrer, mas o de viver, vencendo – com as suas luzes de inteligência ou entendimento ou razão, imortais…”. Porém, a arte do aforista é estranha e bizarra. Cultiva o paradoxo, para enaltecer o senso comum. Parte da contradição para encontrar a coerência. “Com desplante, o aforismo escolhe os terrenos mais perigosos, para ligar a sua lide – de redondos circulares – entre a vida e a morte”. Estamos, afinal, sempre no fio da navalha ou no trapézio sem rede. “Do ponto de vista das abelhas, encontra-se em permanente estado de graça o colmeeiro”... E António Osório acolhe-nos no seu jardim mágico.

 

A VIDA DOS LIVROS

 

 

 

 

 

 

De 5 a 11 de Outubro de 2009.


Contrato Sentimental” da autoria de Lídia Jorge (Sextante Editora, 2009) é um ensaio que nos surpreende, uma vez que, de um modo despretensioso, mas com uma pertinência indiscutível a autora se interroga sobre a sua relação com Portugal. “Muitos são aqueles que apresentam razões fortes para duvidar, mas eu tenho a certeza de que Portugal existe”. O início da reflexão põe-nos logo de sobreaviso. Trata-se mesmo de tentar perceber por que razão estamos ligados a este rincão, a estas pessoas, e por que motivo continua a funcionar este curiosíssimo “contrato sentimental”. Mas não podemos esquecer que há uma estranha relação de amor /ódio da nossa parte, neste lugar onde a terra acaba e o mar começa, essa mesma que levou alguém, algures numa fronteira do norte a escrever a palavra “lixo” por debaixo do indicativo de Portugal. Quem seria o despeitado? Apesar de tudo, importa tentar perceber. E esta colecção “Portugal Futuro” procura exactamente lançar pistas para esse entendimento. Por isso, vale a pena ler este ensaio.


 
QUE PORTUGAL
? – Procurando olhar a bola de cristal, Lídia Jorge faz uma deambulação, propositadamente heterogénea, pelo País que somos. Com um fino sentido de humor, mas sempre com uma ironia inteligente, e nunca derrotista, a autora assume uma atitude aberta que, dir-se-ia, segue a preceito o conselho de Alexandre O’Neill e de António Alçada Baptista, não deixando que nos levemos a sério demais, e lançando desafios exigentes que obrigam a reflectir a fundo sobre quem somos e para onde vamos. Dir-se-ia que, longe de um patriotismo retrospectivo (severamente julgado por Eça de Queiroz), o que a escritora aqui nos traz é um saudável “patriotismo futurante” que se deseja aberto e cosmopolita, capaz de ter sentido crítico e de saber aliar vontade, determinação e desejo… “Se me perguntarem como idealizo a sociedade portuguesa dentro de vinte anos, e só dispuser de um minuto para responder, eu direi que num futuro próximo Portugal será mais educado, mais culto, mais cívico, mais crítico, mais próspero, mais miscigenado, que distribuirá melhor os rendimentos, terá mais solidariedade, terá mais justiça, e uma administração pública mais eficaz”. De facto, o que Lídia Jorge refere é o que idealiza. E, por muito pessimista que possa querer ser, o certo é que as últimas décadas têm apontado nesse sentido geral. Mas, o pior que nos poderia acontecer seria contentarmo-nos com essa idealização. Jorge de Sena não o deixaria. Se o fizéssemos trair-nos-íamos, porque somos insatisfeitos por definição, ou não vivêssemos entre o mar instável e a montanha impassível. Por isso, a escritora acrescenta: “Mas se em vez de apenas um minuto dispuser de dez, o tempo suficiente para uma breve demonstração, então eu acrescentarei que não será de admirar que a sociedade portuguesa, a par desses progressos, possa vir a ser mais violenta, mais egoísta, mais injusta, mais passiva, mais sedentária, ainda mais pobre e ainda mais burocrática”. Da idealização à demonstração chegamos à dura realidade. Mas não há contradição. Basta lembrar-nos, por exemplo, de António Barreto, para percebermos que o seu sentido crítico parte sempre da verificação de que fizemos um longo caminho positivo, mas que as nossas responsabilidades são agora cada vez maiores e o nosso sentido crítico tem de ser ainda mais apurado. A geração de 1870 passou à história como “vencida”, mas o pessimismo que cultivou foi sempre o do pensamento (como diria mais tarde Gramsci), por contraponto ao optimismo da acção, isto é, à necessidade de reagir corajosamente, recusando o fatalismo do atraso. Por exemplo, fale-se da Educação. Veja-se de onde partimos (um quarto da população analfabeta em 1974) e não se esqueça que, neste momento, a qualidade e a exigência das nossas escolas, dos nossos alunos e dos nossos professores têm de ser comparados com os países mais desenvolvidos. “Pela primeira vez, de forma veemente, se divulgou a ideia de que a Educação é uma tarefa global, da qual participam vários intervenientes, incluindo a família, a autarquia e o Estado, e pela primeira vez se tornou pública, se testemunhou e questionou, a relação até agora quase secreta entre professor e alunos”. Há, de facto, um longo caminho a percorrer, mas não há contradição entre o acreditar no futuro e o ser redobradamente crítico quanto àquilo que somos, que fazemos, que projectamos e que avaliamos.
UM CONJUNTO DE TEMAS E REFLEXÕES. – A identidade, a mobilidade, a autonomia, a comunicação, a imprensa, o livro, a língua, as cidades, a metrópole e os mitos constituem os pontos sucessivamente tratados, para tentar perceber que realidade colectiva somos, para além das simplificações ou de um pessimismo atávico, que oscila de modo ciclotímico entre o horror e o comprazimento, (“um movimento pendular entre o herói do mar e o lixo a que somos tão votados”) e que nos coloca sempre nas ruas da amargura, não por análise objectiva, mas por desejo de criar um bode expiatório que se responsabilize por todos os nossos males, próprios e herdados. E, no entanto, estamos a mudar profundamente, em contacto com os outros que chegam até nós e com os quais temos de saber lidar (como outrora, nos momentos mais significativos da nossa vida colectiva). “Na verdade, seria ridículo garantir, com base no passado, ou mesmo no presente, alguma coisa de seguro em relação à sobrevivência futura deste tipo de convivialidade amorosa entre os outros e o tuga, o tuga e os outros, sabendo que nós mesmos em breve seremos outros, e os outros também serão outros em contacto connosco, num mundo tão amplamente aberto, sobretudo quando os mitos de representação forem diferentes, e as relações de poder se alterarem, a ritmos que não podemos prever”. E Lídia Jorge diz, exigindo-nos fazer das tripas coração: “Diria que num futuro próximo não há processo de integração, só há processo de educação”… E se falo de dificuldades, digo que não é só a escola a estar em causa, mas sim a educação como fenómeno global e permanente – a Educação como fenómeno humanizador.
VAMOS AO CONCRETO… -   Muitas são as dúvidas e as perplexidades. Longe de certezas, contamos, sim, com dilemas. Olhe-se a comunicação e os efeitos da globalização. Como salvaguardaremos as diferenças, quando a produção cultural de língua portuguesa, ou mesmo europeia, sofre a avassaladora invasão dos meios globais? Iremos “reduzir o múltiplo à estreiteza do único”, como diz Kovadloff? Qual a capacidade da nossa sobrevivência como cultura singular? Quanto à comunicação, que cenários teremos no futuro: uma comunicação global, audiovisual, falada e escrita sobretudo em inglês, ou uma comunicação diferenciada, com protagonismo próprio e representação pessoal? E os livros, e a escrita, e o verbo? Será que a distopia do “Farenheit 451” se poderá realizar? Por mim, prefiro citar a autora, na afirmação que dá título ao ensaio: “Fiz o meu contrato sentimental com os livros que se parecem com as árvores, aqueles que são da sua matéria, leio cada um desses livros à vez, e cada folha é lida uma após outra…”. E chegamos à língua, no tempo do multilinguísmo (Steiner confessou um dia fazer amor em quatro línguas): será que iremos aproveitar a actual oportunidade única “para se organizar uma estratégia de recuperação importante, agora que os espaços digitais estão à disposição, e se adaptam perfeitamente à articulação deste património comum”? E, numa sociedade eminentemente urbana, consumista e homogeneizadora, “quando, entre nós, se fala de uma sociedade multicultural, e nos referimos à hipótese de virmos a ser uma população colorida, no sentido vital da expressão, estamos porventura a invocar o nosso mais fundo instinto de sobrevivência”. Mas poderemos preservar o que é próprio contra a onda predadora da harmonização e da despersonalização (como no caso algarvio que Lídia Jorge tão bem conhece)? Precisamos, sim, de “uma relação habitada com decência, respeitando o ambiente e a casa, uma atitude de preservação que não se confunda com um respeito museológico mas impeça as incursões criminosas e a devassa”. Deste modo, co esta simplicidade (como se diz na Convenção de Faro). “Europe’s West Coast”? Tiremos partido até de uma campanha passageira. “O fantasma de nós mesmos somos nós”. Compreenderemos a nossa costa (porto de partida e de chegada, segundo Eduardo Lourenço) como lugar de sobriedade e de iniciativa?  

E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS

 

 

 

de 28 de Setembro a 4 de Outubro de 2009

“Vingt-Huit Siècles d’Europe” de Denis de Rougemont (reed. Bartillat, 1990) é uma obra de referência sobre a história da ideia moderna de Europa. Na semana em que terá lugar o referendo na Irlanda sobre o Tratado de Lisboa é útil e necessário recordar este conjunto de textos e reflexões, organizados por um dos intelectuais que mais contribuiu para a criação da moderna ideia de Europa. A partir da procura das raízes e fundamentos da cultura europeia, podemos perceber que há um longo caminho para trilhar e aprofundar – uma vez que um projecto comum de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural é cada vez mais exigente e indispensável, sobretudo perante os ventos de crise com que nos debatemos.

 

 

UM SÉCULO TRÁGICO
Quando, no início do século XX, havia quem tomasse como real um desejo de paz e entendimento para a Europa, quase todos estavam longe de suspeitar aquilo que viria a passar-se efectivamente. Ao contrário do que pensavam os bem intencionados e os ingénuos, e confirmando as piores suspeitas e medos de Stefan Zweig, a tragédia tornou-se inevitável, contrariando quer aqueles que pensavam que a cumplicidade entre as casas reinantes funcionaria positivamente a favor do entendimento, quer os que acreditavam em que o internacionalismo proletário poderia impedir um conflito generalizado. Depois da ilusão da “Primavera dos Povos” (1848), após a corrida ao poder colonial em África, perante o desenvolvimento da segunda revolução industrial (desde a emergência dos mercados globais até à influência da economia da energia), o que aconteceu foi a fragmentação europeia e o artificialismo dos acordos de 1919, que puseram termo muito provisório à primeira guerra mundial. As nacionalidades constitucionais oitocentistas, em lugar de terem dado lugar à lógica liberal, criaram condições para os proteccionismos e para os nacionalismos egoístas e agressivos. A guerra de 1939-45 foi, afinal, o resultado da falta de solução durável obtida após o conflito de 1914-18. Além do mais, a humilhação sofrida pelas potências vencidas só veio a criar condições para que ocorresse uma mistura explosiva no decurso dos anos trinta. Os acordos de Munique de 1938, longe de terem aberto condições para a paz, apenas deram tempo a Hitler para que organizasse melhor a ofensiva do “eixo” no mundo. Bernard Voyenne chamaria, assim, ao ditador o Carlos Magno Nietzschiano, enquanto símbolo não de uma partilha europeia, mas de uma rendição sem condições. Daí que as poucas vozes que se levantaram contra o optimismo ingénuo de Chamberlain, prevendo o que ocorreria até Setembro de 1939 (há exactamente setenta anos), tenham considerado esses acordos, sobre a Checoslováquia, como a mais grave e terrível das cedências.

 

NADA COMO DANTES DEPOIS DE 1945
Sabemos o que aconteceu até 1945. O prometido império para mil anos tornou-se símbolo hediondo das causas mais desumanas – desde o preço em vidas humanas da guerra até aos efeitos tremendos da “solução final”. A moderna ideia de Europa só pode ser compreendida, assim, se seguirmos os acontecimentos do último século e meio: guerra franco-prussiana, proclamação do Império Alemão em Versalhes, decadência dos impérios Austro-húngaro e Otomano, arrastamento do conflito mundial iniciado em 1914, revolução russa de 1917, humilhação alemã de 1919, efeitos económicos da guerra (hiper-inflação alemã de 1923, depressão e desemprego), guerra civil espanhola, ofensiva do “eixo”, efeito vitorioso da dinâmica aliada, Plano Marshall, guerra fria… Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal: haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo, depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950) consagrou no plano político o objectivo defendido pelos intelectuais na capital holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont, empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade (na linha de Althusius). As pessoas e os cidadãos deveriam, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspectiva nacional e nos egoísmos agressivos ou proteccionistas, mas na procura de uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se trataria, pois, de criar um Super Estado Europeu nem uma nação europeia, mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas complementaridades, numa palavra, na unidade na diversidade. Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização ou da uniformidade, mas sim de uma unidade nas diferenças.

 

UMA UNIDADE POLÍTICA BASEADA NA LIBERDADE
Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro e necessário do projecto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também sérias dificuldades”. Mas o historiador lança os alertas necessários, uma vez que a construção europeia depressa se tornou menos um projecto político de cidadania, para se ficar por uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias. “É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas vivas da fé religiosa. Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está por formular”. Assim, hoje, mais do que invocarmos os grandes idealistas, somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E esse salto tem de se chamar cidadania europeia ou Respublica Europeana. É preciso menos palavras e melhor definição de interesses e valores comuns (deeds not words, res non verba). É preciso mais iniciativas da sociedade civil europeia. É preciso mais ligação entre a legitimidade dos Estados e a legitimidade dos cidadãos. E quando recordamos figuras como Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli, não podemos esquecer os funcionalistas (como Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados de Direito e Uniões de Direito. Rougemont tem razão quando fala de regiões europeias (porque há que considerar as diferenças entre Estados e nações), mas também tem razão ao dizer que Portugal é um Estado-nação perfeito (sendo a um tempo nação e região europeia). Longe da tentação de construir instituições políticas artificiais (que se tornam perigosamente reversíveis), do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um tempo, grandes e pequenos de mais). Daí a insistência de Rougemont na história das regiões europeias, não como abstracção, mas como expressão da subsidiariedade. No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu Alexandre Marc, um militante europeu centrado liberdade e na dignidade humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças. E, hoje, depois de 1989, com a Europa aberta e de fronteiras incertas é tempo de compreender que haverá vários círculos concêntricos, que partem das pessoas e das regiões, mas que devem entender uma “unidade não unitária”, assente em vinte línguas e uma literatura e em valores comuns, baseados na unidade e na diversidade (pessoa, gosto risco, procura da originalidade). É com base nesta comunidade de cultura, que pré-existe aos Estados, que os europeus devem construir a sua união…

Guilherme d'Oliveira Martins