Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Se é totalmente incorrecto fazer coincidir o início da oposição dos católicos ao salazarismo com a década de 60, não há dúvida que foi nela que se deu a verdadeira explosão de actividades daquela oposição. Dois factores contribuíram decisivamente para que isto acontecesse: dentro da Igreja, as perspectivas de abertura criadas pelo Concílio Vaticano II e o conservantismo da Igreja portuguesa; na sociedade em geral, a ausência de liberdades elementares e a manutenção da guerra colonial, com todas as insuportáveis consequências que arrastou. Ao invocarem a sua condição de católicos em iniciativas cada vez mais radicais, aqueles que o fizeram atingiram um dos pilares ideológicos mais fortes do regime e este foi acusando o toque.
É certo que se tratou de uma oposição que manteve sempre uma certa informalidade organizativa. Concretizou‑se em iniciativas e instituições, mais ou menos ligadas entre si através dos seus membros, mas, em parte propositadamente, sem uma estruturação sólida e definida. Daí derivaram fraquezas e forças e, definitivamente, características específicas.
A Pragma foi uma dessas instituições – com uma importância e projecção ainda relativamente desconhecidas. Foi fundada por um grupo de católicos, em Abril de 1964, como uma «Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária». Porquê uma cooperativa? Porque foi a forma de tirar o partido possível de uma lacuna legislativa: as cooperativas não tinham sido abrangidas pelas limitações impostas ao direito de associação e, por essa razão, nem os seus estatutos eram sujeitos a aprovação legal, nem a eleição dos seus dirigentes a ratificação pelas entidades governamentais. Forçando uma porta entreaberta por um lapso do poder, os fundadores da Pragma puseram mais uma peça no puzzle da oposição ao regime – cuidadosa e imaginativamente.
Desde o seu núcleo inicial, a Pragma não se restringiu ao universo «intelectual» e incluiu também sócios provenientes do meio operário, nomeadamente dirigentes e militantes das organizações operárias da Acção Católica. Os horizontes abriram-se rapidamente e muitos dos seus futuros membros nem sequer seriam católicos. Aliás, a Pragma acabou por funcionar também como uma espécie de plataforma aglutinadora de elementos da esquerda não-PC que, por não estarem integrados em qualquer estrutura organizativa, nela identificaram um espaço de debate e de encontro (foi o caso, por exemplo, de muitos activistas das lutas estudantis de 1962).
Subjacente a este novo projecto estava, obviamente, um posicionamento de oposição ao regime como um todo, à falta de liberdades, à guerra de África. Pretendeu‑se explorar mais uma janela legal de oportunidades, complementar outras iniciativas, criar possibilidades para acções concretas e úteis, aumentar a consciência política e social de um número cada vez maior de pessoas.
Os três primeiros anos
Mário Murteira foi o sócio nº 1 e o primeiro Presidente da Direcção. Nuno Teotónio Pereira, sócio nº 2 e segundo Presidente, manteve-se até ao fim como o seu principal animador.
«Oficialmente», os Estatutos definiram como objecto da Cooperativa: «a) – Facultar aos seus sócios a maior defesa económica nos artigos que possam adquirir ou produzir; b) – Promover o aperfeiçoamento moral, cultural e técnico dos sócios e suas famílias [...]; c) – Instalar casas de férias para sócios e famílias.»
Durante os primeiros três anos, estes objectivos, nomeadamente os dois primeiros, foram concretizados num número absolutamente notável de iniciativas.
Na área da promoção cultural e técnica, para além de um ciclo de cinema e de exposições, organizaram-se, em três anos, largas dezenas de cursos (com muitas aulas), colóquios (com várias sessões), conferências e reuniões temáticas. Nalgumas destas iniciativas, participaram centenas de pessoas. Escolhiam-se os títulos «possíveis», o que se passava na realidade ia bem mais além…
Em Abril de 1965, por ocasião de um colóquio sobre Planeamento económico e progresso social, a Pragma organizou uma exposição baseada no Parecer da Câmara Corporativa sobre o Plano Intercalar de Fomento para 1965‑1967: sessenta painéis com fotografias, gráficos e comentários, em que os textos e dados estatísticos foram extraídos dos documentos oficiais. O Parecer, que era muito crítico, tinha sido elaborado por Francisco Pereira de Moura, então Procurador à Câmara Corporativa. Depois de exibida em várias localidades, acabou por ser apreendida pela PIDE, em S. Mamede de Infesta.
A PIDE esteve atenta à Pragma desde o início. Em processo próprio arquivado na Torre do Tombo, há informações sobre actividades e pessoas ligadas à Cooperativa desde 1964, bem como relatórios de informadores da PIDE.
A realização de sessões públicas pressupunha uma autorização prévia concedida pelo Governo Civil. A Pragma submeteu por isso um pedido relativo a uma conferência sobre Emigração – situação de crise ou factor de progresso?, que deveria ter lugar em 28 de Fevereiro de 1967. Depois de consultada a PIDE, que considerou «inconveniente» a realização da sessão, o Governo Civil de Lisboa indeferiu o pedido. Compreende‑se a razão – emigração era um tema especialmente sensível, já que, em 1966, tinham sido 125.000 os portugueses que, legal ou clandestinamente, tinham deixado o país. Devido à recusa de autorização por parte do Governo Civil, o ciclo sobre emigração ficou limitado aos sócios, que assistiram às duas primeiras sessões na sede da Cooperativa. A terceira deveria ter tido lugar precisamente no dia em que a sede foi encerrada pela PIDE.
Começou então uma nova etapa na vida da Pragma. Entretanto, a Cooperativa tinha crescido rapidamente ao longo dos três primeiros anos: de 111 sócios em Dezembro de 1964, passara para 216 no fim de 1965 e para 305 no de 1966. Em Abril de 1967, tinha 340 sócios.
O encerramento da sede e as reacções
No dia 6 de Abril de 1967, quando se encontravam na sede da Cooperativa, na Rua da Glória, Natália Teotónio Pereira e António Macieira Costa, apresentou‑se uma brigada de agentes da PIDE, com ordem para realizar uma busca às instalações. Esperaram por Nuno Teotónio Pereira, então já Presidente da Direcção, entretanto avisado. Um painel com documentos sobre emigração atraiu imediatamente a atenção dos agentes. Deveria realizar‑se, nessa mesma noite, a já referida terceira sessão sobre aquele tema, intitulada Visão histórica da emigração portuguesa, sob a orientação de Joel Serrão e com a colaboração de Vitorino Magalhães Godinho.
Enquanto decorriam as buscas, chegou alguém que passou a ser objecto de comportamento reverente por parte dos agentes e que foi apresentado a Nuno Teotónio Pereira como o «Subdirector Sachetti». Agitado, apontou para o painel e terá dito:
«Ali está o que nós suspeitávamos! São estas as ideias que vocês espalham. Hão‑de ver na Polícia a criminosa acção que estão a fazer. Um desgraçado em África traiu os seus camaradas e disse que a culpa era toda vossa!»
As instalações foram seladas para que a diligência pudesse continuar no dia seguinte. Nuno Teotónio Pereira seguiu com os agentes para a sede da PIDE – de táxi – e foi mais tarde levado para a prisão de Caxias. A caminho da cela, iniciou este extraordinário diálogo com o guarda que o acompanhava:
- Tem havido muito movimento? - Não, pouco, isto está muito parado e muitas celas estão vazias. E o que dá ainda alguma coisa é a emigração. Políticos agora são menos. O senhor é da emigração ou dos políticos? - Sou dos políticos. - Pois é, disso tem havido pouco. Compreende: cada um trata mas é da sua vida.
Vinte e quatro horas depois, foram presos outros elementos da Direcção: João Gomes, António Macieira Costa, Nuno Silva Miguel e Ana Marques [hoje Ana Vicente]. Em todos os casos, houve buscas domiciliárias, interrogatórios na sede da PIDE e detenção em Caxias, até 10 de Abril, dia em que foram libertados juntamente com Nuno Teotónio Pereira.
Acontece que, para o dia seguinte, estava marcado um serão de convívio comemorativo do terceiro aniversário da Cooperativa, a ser realizado na Sociedade Nacional de Belas Artes. A PIDE proibiu a realização da sessão, comunicou essa proibição aos dirigentes da Pragma antes de os pôr em liberdade e obrigou‑os a comprometerem‑se, por escrito, a fazê‑la respeitar.
Nesse 11 de Abril, precipitaram-se vários acontecimentos. Os jornais publicaram uma Nota Oficiosa da PIDE sobre as razões para o encerramento da sede da Pragma. Uma resposta, enviada imediatamente pela Direcção, foi cortada pela Censura e não foi portanto divulgada por nenhum órgão de comunicação social.
Alguns membros dos órgãos dirigentes pediram uma audiência ao Cardeal Patriarca de Lisboa para o porem ao corrente dos acontecimentos. Pouco antes da hora prevista para a dita audiência, os sócios tomaram conhecimento da proibição do serão de convívio, através de um aviso afixado na porta fechada da Sociedade Nacional de Belas Artes. Resolveram dirigir‑se também para o Patriarcado, onde os dirigentes esperavam a reunião com Cerejeira. Aglomeraram-se à entrada mais de duzentas pessoas. Tinham entretanto chegado forças da PSP, mas as portas abriram‑se e todos entraram para o átrio, o que evitou males maiores.
Com data de 13 de Abril, foram redigidos dois abaixo‑assinados, um dirigido ao Presidente da República, outro aos Bispos Portugueses. O primeiro foi assinado por 280 pessoas de vários quadrantes políticos, todos sócios ou colaboradores da Pragma, católicos ou não, o segundo por 547 católicos. Houve 124 assinaturas comuns aos dois documentos, o que significa que, em conjunto, estas iniciativas mobilizaram 827 pessoas – número absolutamente notável e excepcional para a época.
Organizaram-se verdadeiras brigadas para recolha de assinaturas e não só em Lisboa. Por exemplo no abaixo‑assinado endereçado aos bispos Portugueses, houve larga participação do Porto, e também de Coimbra, Estremoz, Évora, Leiria, Santarém e Marinha Grande. Entre os subscritores, contavam‑se vinte e cinco padres ou membros de ordens religiosas.
Importa sublinhar o esforço que representou esta recolha de assinaturas. Se hoje é possível criar uma Petition Online na Internet em menos de um minuto e se podem obter milhares de adesões em pouco tempo, a vida era bem diferente em 1967: recolha porta a porta, em papel azul de vinte e cinco linhas, sem Internet, sem telemóveis, com telefones fixos vigiados pela polícia, com correio apreendido, com poucos automóveis. (Os serões que eu passei calcorreando Lisboa, «cravando» um amigo mais timorato mas com posses para ter carro, que me esperava enquanto eu subia lanços e lanços de escadas – é que também não havia assim tantos elevadores…)
Foi também grande a repercussão do encerramento da sede da Pragma na imprensa internacional, tanto de orientação católica (Informations Catholiques Internationales, Témoignage Chrétien, etc.), como de grande circulação (Le Monde, New York Times, The Times).
Tempos difíceis
Depois de ouvidos advogados, foi considerado que o facto de a sede estar inacessível, e de os seus dirigentes serem objecto de instauração de um processo pela PIDE, não impedia que a Cooperativa prosseguisse as suas actividades.
Iniciou‑se então um árduo percurso, recheado de iniciativas e assente em fortes laços de solidariedade que permitiram cedências de locais e de outros meios logísticos. Sociedade Nacional de Belas Artes, Bombeiros Voluntários Lisbonenses, Centro Nacional de Cultura, Casa da Imprensa, Capela do Rato, Igreja de S. João de Brito e outras instituições foram abrindo as suas portas para reuniões, colóquios, conferências, Assembleias-gerais. Entre Abril e Dezembro de 1967, o número de sócios aumentou de 340 para 390.
Intensificou‑se também, naturalmente, a acção da PIDE quanto a proibição de sessões. Em 9 de Setembro de 1967, agentes da PIDE impediram a discussão sobre As possibilidades económicas no acesso à Universidade – Inquérito Geral à Universidade promovido pela Juventude Universitária Católica. Nuno Teotónio Pereira foi chamado à PIDE para prestar declarações, depois de um debate que foi possível realizar em 16 de Novembro, na Igreja de S. João de Brito, com a participação de mais de 500 pessoas, sobre O III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos. (Repare-se na «perigosidade» dos temas acima indicados…)
Paralelamente, deu‑se início a um longo processo de contestação do encerramento da sede, que incluiu um recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Este viria a tomar uma posição favorável à Pragma, em Julho de 1968, embora essa decisão não tenha tido quaisquer efeitos práticos.
* * *
Existiam, paralelamente à Pragma, outras cooperativas mais ou menos afins. A mais próxima era a CONFRONTO, fundada no Porto à imagem e semelhança da Pragma. Regressado de Angola, Mário Brochado Coelho liderou este projecto e, em 27 de Julho de 1966, foi eleito Presidente da Direcção, sendo Francisco de Sá Carneiro o Presidente da Assembleia-Geral e sócio nº 1.
A CODES, uma cooperativa de carácter cultural e socioeconómico, tinha sido criada em 1962 e alguns dos seus membros foram, desde a primeira hora, sócios ou estreitos colaboradores da Pragma. Mais tarde, foram fundadas a DEVIR, ligada ao Partido Comunista Português, e a CED – Cooperativa de Estudos e Documentação, afecta aos primórdios do Partido Socialista.
Entretanto, já durante o marcelismo, em 27 de Novembro de 1971, foi publicado um decreto (570/71) que assimilou as cooperativas que exercessem qualquer tipo de actividade cultural, independentemente do seu objecto principal, às outras associações. Estatutos e dirigentes passaram então a ficar sujeitos a aprovação governamental, o que provocou uma forte contestação no seio do movimento cooperativo. Os dirigentes da CED entregaram aos deputados da Assembleia Nacional uma longa exposição, pedindo-lhes que não ratificassem o decreto. Obviamente, não veriam este seu pedido satisfeito…
A Pragma prosseguiu. Em 20 de Janeiro de 1972, ainda realizou uma Assembleia Geral nas instalações do Centro Nacional de Cultura. Participou, no dia seguinte, numa Reunião Nacional de Cooperativas, que teve lugar em Coimbra. Em 3 de Fevereiro de 1972, a PIDE emitiu um ofício interno, assinado pelo chefe Mortágua, ordenando uma busca às instalações da antiga sede da Pragma na Rua da Glória, «a fim de apreender livros, documentos, valores ou objectos, que possam interessar à instrução de uns autos em curso na Direcção Geral de Segurança». Recebeu como resposta que, na referida morada, se encontravam, desde há quatro anos, os «Armazéns Primavera», dedicados ao comércio de roupas… Não encontrei documentos sobre actividades da Cooperativa posteriores a estas datas. Mas sei que nunca foi legalmente encerrada.
A história da Pragma é uma bela história. Ela ilustra bem alguns ambientes da última década do fascismo. Mobilizou muita gente, abriu horizontes, influenciou muitos jovens que foram chamados para combater na guerra colonial – alguns desertaram, outros tiveram um papel activo, como milicianos, na alteração de mentalidades, e na preparação do 25 de Abril.
Muitos dos sócios, dos colaboradores, e mesmo dos dirigentes, estavam longe de ser perigosos esquerdistas!… Queriam a liberdade, a paz, o desenvolvimento e o progresso social – um país decente.
(Este texto foi escrito com base num capítulo do meu livro Entre as Brumas da Memória. Os Católicos Portugueses a Ditadura, Âmbar, 2007: «A cooperativa Pragma – Uma boa ideia e uma bela história», que os mais interessados poderão consultaronlinena íntegra.)
Este post foi originalmente publicado no blogue Caminhos da memória.
Edgar Morin (1921) publicou em 1997 “Uma Política de Civilização” (Instituto Piaget, s.d.), com Samir Naïr, onde os dois autores se interrogam sobre o futuro indecifrável em que estão lançadas as sociedades contemporâneas. Com a crise da ideia de progresso, nasce a incapacidade de reflectir sobre os problemas globais e locais, enquanto ocorrem tendências para a intolerância e o fanatismo. Para os pensadores, é indispensável mudar de rumo, redefinir a vida em comum e elaborar o que designam como “política de civilização”, considerando-a como um renascimento que reponha o ser humano, a pessoa, como meio, fim, sujeito e objecto da política.
EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS… Os temas do livro correspondem às tarefas fundamentais exigidas ao mundo contemporâneo: a busca dos fundamentos perdidos; a relação entre a mundialização, o liberalismo e as novas oportunidades lançadas pela inovação e pelo desenvolvimento, bem como a consideração da incerteza democrática e da ética política. Daí dizer Edgar Morin: “tal como é necessário estabelecer uma comunicação viva e permanente entre passado, presente e futuro, também é preciso estabelecer uma comunicação viva e permanente entre as singularidades culturais, étnicas, nacionais e o universo concreto de uma Terra pátria de todos”. Por isso, as finalidades propostas pelos autores tornam-se urgências: salvar o planeta do desenvolvimento técnico-económico e do nosso subdesenvolvimento moral e mental; regular e controlar os processos de transformação; reflectir e reformular o desenvolvimento humano, respeitando a diversidade das culturas; e last but not least repensar, instaurar, restaurar e regenerar a democracia. Numa palavra, importa civilizar a terra, solidarizar, confederar a humanidade, no respeito pelas culturas e pelas pátrias, e transformar a espécie humana em humanidade. E como E. Morin afirmou no seu livro célebre “La Méthode”: «temos de compreender que a revolução dos nossos dias joga-se não tanto no terreno das ideias boas e verdadeiras, opostas numa luta de vida ou de morte às ideias más e falsas, mas no terreno da complexidade do modo de organização das ideias». Daí a necessidade de uma política de civilização, que pretende ser uma política multidimensional na qual todos os problemas humanos têm hoje um dimensão política. E essa política deve ter como imperativos: solidarizar (contra a atomização e a compartimentação); revitalizar (contra o anonimato); conviver (contra a degradação da qualidade de vida) e moralizar (contra a irresponsabilidade e o egocentrismo). Num texto recente, publicado no “Le Monde” (11.1.2010; El Pais, 17.1.2010), Edgar Morin foi mais além do que tinha ido anteriormente e retomou o tema, desenvolvendo-o à luz dos acontecimentos recentes. Aí refere que “para evitar a desintegração do ‘sistema Terra’ é urgente mudar os modos de pensar e de vida”. O título da reflexão é, significativamente, “Éloge de la métamorphose”, e a proposta é de uma profunda transformação geral, para encontrar novas razões de esperança. Mais do que a “revolução”, trata-se de apostar em algo mais fundo e duradouro, que designa por “metamorfose”.
ELOGIO DA METAMORFOSE “Quando um sistema é incapaz de tratar os seus problemas vitais, degrada-se, desintegra-se, ou então é capaz de suscitar um meta-sistema para tratar dos seus problemas, metamorfoseando-se”. A verdade é que há sinais de alarme – perigos nucleares, degradação da biosfera, desregulação da economia mundial, regresso das fomes, conflitos étnicos, políticos e religiosos, que podem transformar-se em guerras de civilizações… Estamos, por isso, confrontados com um perigo real de fragmentação e de desintegração, que Morin considera provável. Assim, a hipótese da metamorfose torna-se improvável, mas possível. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de auto-reconstrução; e o nascimento da vida pode ser encarado como a metamorfose de uma organização físico-química. A formação das sociedades históricas no Médio Oriente, na Índia e na China, no México e no Peru fez-se por metamorfose, a partir das organizações arcaicas, que produziram as cidades, o Estado, as classes sociais, a especialização do trabalho, as religiões, a arquitectura, as artes, a literatura e a filosofia – e também a escravatura e as guerras. No século XXI, a evolução das sociedades históricas para uma “sociedade-mundo” prenuncia o perigo da destruição da humanidade. Francis Fukuyama fala mesmo, dialecticamente, de um esgotamento das capacidades criadoras da evolução humana, mas Edgar Morin contrapõe que devemos pensar que, ao invés, é a história que se esgota, e não as capacidades criadoras da humanidade. Para o pensador francês de origem sefardita, a noção de metamorfose é muito mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, mas liga-a à conservação, da vida e da herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem desviante, marginal, modesta, tantas vezes invisível… Não foi assim com as novas religiões ou até com o capitalismo? E na ciência, o que fizeram Galileu, Bacon e Descartes? Afinal, tudo está por repensar e por recomeçar. Importa, deste modo, aproveitar o movimento criativo que está a despertar um pouco por toda a parte. “São essas vias múltiplas que poderão desenvolver-se em conjunto, conjugando-se para formar o novo caminho, que nos conduzirão à metamorfose ainda invisível e inconcebível”. Se a consciência de que há uma Terra-pátria se afirma e consolida, é preciso que a mundialização e a desmundialização coexistam, afirmando-se esta última pela proximidade, pela ruralidade periurbana ou pelas comunidades locais e regionais. Já no tocante ao crescimento e ao decrescimento, é preciso fazer crescer os serviços, as energias verdes, os transportes públicos, a economia plural (incluindo a economia social e solidária), os alojamentos humanizados das megapólis e a agricultura biológica, mas também fazer decrescer as intoxicações consumistas, a alimentação industrializada, a produção de objectos não recicláveis, o tráfego automóvel e a camionagem (em benefício do caminho de ferro). Quanto ao binómio desenvolvimento / envolvimento, Morin chama a atenção para ir além dos bens materiais, da eficácia, da rentabilidade e do calculável, devendo haver o regresso de cada um às suas necessidades interiores, à vida interior e ao primado da compreensão do outro, do amor e da amizade. E mais do que denunciar é preciso enunciar.
CINCO PRINCÍPIOS DE ESPERANÇA Edgar Morin formula cinco princípios de esperança: (a) o surgimento do improvável; (b) as virtudes geratrizes e criadoras inerentes à humanidade; (c) as virtudes da crise; (d) a combinação com as virtudes do perigo; (e) a aspiração multimilenar da humanidade à harmonia. O autor de “La Méthode” começa por recordar que foi a resistência de Atenas ao poderio persa que criou condições para que a democracia começasse a dar os primeiros passos e se implantasse e lembra ainda a reviravolta da 2ª Guerra aquando da ofensiva alemã diante de Moscovo, que parecia invencível. O improvável pode surgir e tem de ser aproveitado pela humanidade. Por outro lado, se no corpo humano há células mãe dotadas de aptidões polivalentes, também na sociedade humana há virtudes regeneradoras, geratrizes e criadoras que, embora adormecidas, podem entrar em acção. “Onde cresce o perigo, cresce também o que salva”, a oportunidade máxima é inseparável do risco supremo – assim o pensador aponta no sentido de não se dever aceitar qualquer posição conformista ou fatalista. Por fim, recorda as generosas aspirações da humanidade, desde que existe, afirmando que elas renascem periodicamente, alimentando os caminhos reformadores e as transformações necessárias. Nesta linha, urge renovar a esperança e retomar as causas e os ideais, que parecem ter-se desvanecido nas últimas décadas. E o certo é que, aqui e agora, trata-se de salvar a humanidade profundamente ameaçada. “A esperança verdadeira sabe que não é certeza. Trata-se da esperança não no melhor dos mundos, mas num mundo melhor. A origem está diante de nós, como dizia Heidegger. A metamorfose será efectivamente uma nova origem”.
Faleceu Francisco Vasconcellos e Sousa, personalidade ligada ao grupo de fundadores do Centro Nacional de Cultura.
Licenciado em direito, teve um papel importante no final da década de 50, na fase em que alternavam na direcção do CNC um grupo monárquico e um grupo democrático mais interventivo políticamente, aquela em que Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner Andresen marcaram a presidência e vida do Centro.
Francisco Vasconcellos e Sousa nunca se afastou da vida cultural, tendo sido vice-presidente do Centro Nacional de Cultura que lhe presta aqui a sua sentida homenagem.
Aceitei o convite para participar neste blogue, sem qualquer compromisso de regularidade mas com grande prazer, já que nunca esquecerei as minhas velhas ligações ao CNC - por isso as trago para este primeiro post. Este texto é uma adaptação de excertos de um capítulo do livro que publiquei em 2007, Entre as brumas da memória – Os católicos portugueses e a ditadura (Âmbar).
«Lusitania, Quo Vadis?» foi o título de um ciclo de conferências organizado pelo Centro Nacional de Cultura em Março de 1969. Nenhuma pergunta poderia exprimir tão bem o que nos perguntávamos a nós próprios neste final dos anos 60.
O Centro Nacional de Cultura era um das peças de um complicado puzzle que constituía então a oposição à ditadura e, em 1968-1969, foi dirigido por um grupo de pessoas a que pertenci. Mais concretamente, em 27 de Novembro de 1968, realizaram-se eleições para os corpos gerentes e, para além de José Manuel Galvão Teles (presidente) e de mim própria (vice-presidente), passaram a fazer parte da Direcção: Teresa Amado, Manuel Moita, Sebastião José de Carvalho, António Reis e Nuno Portas. Éramos todos muito jovens, católicos ou já ex‑católicos. À Mesa da Assembleia Geral presidiu Henrique Martins de Carvalho, tendo com vogais Gonçalo Ribeiro Teles e Augusto Ferreira do Amaral e o Conselho Fiscal ficou constituído por José Ribeiro dos Santos, Francisco de Sousa Tavares e Francisco Lino Neto. A Direcção reflectia uma renovação total, a continuidade era assegurada nos outros corpos gerentes.
A nova Direcção começou imediatamente a organizar debates e reuniões na sede do Centro e procurou angariar fundos e novos sócios.
Entretanto, a oposição pensava já nas eleições legislativas do ano seguinte. Em 20 de Janeiro de 1969, foi criada a Comissão Promotora de Voto, por carta enviada ao Presidente do Conselho e, entre os quarenta e três subscritores, seis eram membros dos corpos gerentes do Centro Nacional de Cultura.
Era importante tirar partido de todas as ocasiões de debate, tão alargado quanto os condicionalismos o fossem permitindo. O Centro planeou então uma iniciativa de grande vulto, consubstanciada em três sessões a serem realizadas em Março de 1969, sob o tal nome genérico de «Lusitania, Quo Vadis?». Política Económica, Acção Cultural e Perspectivas Políticas foram os grandes temas escolhidos, a sede da Sociedade Nacional de Belas Artes o local conseguido para a realização.
Embora se previsse uma grande afluência de participantes – o que de facto aconteceu –, foi decidido evitar o modelo clássico, e já explorado até à exaustão, de «conferência, seguida de debate» e adoptar um formato relativamente informal: para cada uma das sessões, foi previsto um painel com duas pessoas encarregadas de formular perguntas e três que tinham a missão de lhes responder. Foi elaborado e divulgado o seguinte programa, recheado de nomes sonantes:
Política Económica – 5 de Março de 1969
Perguntas:
João Martins Pereira
Luís Salgado Matos
Respostas:
Francisco Pereira de Moura
Sérgio Ribeiro
Vasco Vieira de Almeida
Acção Cultural – 12 de Março
Perguntas:
Alfredo Canana
Eduardo Veloso
Respostas:
António Paulouro
Mário Castrim
Rui Grácio
Perspectivas Políticas – 19 de Março
Perguntas:
José Lopes de Almeida
Mário Brochado Coelho
Respostas:
Jorge Sampaio
Mário Soares
Mário Sottomayor Cardia
As duas primeiras sessões realizaram‑se com muito sucesso e sem grandes sobressaltos. As atenções viraram‑se todas para a terceira sessão, marcada para 19 de Março.
Na véspera, o Ministério da Educação comunicou oficiosamente à Sociedade Nacional de Belas Artes que deveria recusar a cedência da sala, sob pena de encerramento (a pretexto «oficial» de um pretensa irregularidade burocrática no seu funcionamento, sem qualquer ligação com a cedência em questão). Restava muito pouco tempo para encontrar um outro local onde coubessem centenas de pessoas. Seguiram‑se horas vertiginosas e inesquecíveis para José Manuel Galvão Teles e para mim. Tentámos tudo: clubes recreativos, associações de bombeiros, hotéis, escolas, a Sociedade de Geografia, chegámos até a pensar alugar um cacilheiro. De madrugada, foi no Porão da Nau que procurámos convencer Vasco Morgado a ceder ou alugar um teatro. Foram feitas dezoito tentativas - em vão.
À hora marcada, fomos à Sociedade Nacional de Belas Artes comunicar o sucedido à multidão que aguardava perto das portas fechadas e exibir a lista dos dezoito esforços infrutíferos. Deu‑se então o inesperado: alguém, que nenhum dos responsáveis conhecia, veio dizer que era dono de uma fábrica de papel situada na Av. do Brasil e que a punha à disposição. Temeu‑se que fosse uma cilada da PIDE, mas houve felizmente quem o reconhecesse. Foi rápida a migração da Barata Salgueiro para a Av. do Brasil, onde surgiria um novo problema: a dita fábrica situava‑se num primeiro andar e o espaço, embora grande, estava parcialmente ocupado com pesadíssimos rolos de papel. Havia que limitar as entradas porque se temia que o chão não aguentasse, o que não foi pacífico. Ficaram muitas pessoas na rua e, entre elas, dirigentes estudantis de extrema‑esquerda, muito aguerridos, que iam gritando palavras de ordem e cantando: «É sempre a mesma melodia, Mário Soares e a social-democracia!» Exigiam entrar e tentaram mesmo derrubar a porta, avançando sobre ela com rolos de papel. Os membros da Direcção do Centro, das janelas, tentavam acalmar os ânimos e avaliar os riscos. O colóquio ia decorrendo com todos os membros previstos para o painel. Os participantes – em pé, sentados no chão ou empoleirados em rolos de papel de diferentes alturas – formavam um estranho quadro cénico que, infelizmente, não foi filmado nem sequer fotografado.
A PSP tentava restabelecer o trânsito, praticamente interrompido pela aglomeração de pessoas junto da porta do nº 56 da Av. do Brasil. Estariam, segundo dados da própria polícia, cerca de 350 pessoas dentro da sala e de 600 na rua. Temíamos uma intervenção porque o tempo avançava e era imperioso terminar antes da meia-noite. Foi então decidido correr o risco de sobrecarga por alguns minutos e abriu‑se a porta para que mais pessoas pudessem entrar: os referidos dirigentes estudantis da extrema‑esquerda, que garantiram conseguir uma sala para que fosse possível repetir a sessão, no dia seguinte, com espaço suficiente para todos.
Ficou portanto marcado novo encontro para as 21h30 do dia 20 de Março, uma vez mais junto das instalações da Sociedade Nacional de Belas Artes. Cumprido o compromisso, verificou‑se que se mantinha o impasse: não havia sala. A polícia esperou pouco para dispersar os presentes – desta vez energicamente, à bastonada. Houve correrias, palavras de ordem gritadas, pelo menos um braço partido de uma correspondente de imprensa estrangeira.
Com o serão livre, alguns fomos correndo para o cinema S. Jorge, onde ainda chegámos a tempo de ver Steve McQueen e Faye Dunaway em O grande mestre do crime. Isto diz muito sobre o que era a nossa forma de estar na vida naquele final da década de 60 - resistência, sim, mas também lazer a que nunca renunciámos…
Alguns dos factos que aqui resumi foram relembrados lendo, no processo organizado pela PIDE e que se encontra na Torre do Tombo, os relatórios – pelo menos quatro – que aquela polícia e a PSP elaboraram a propósito desta terceira sessão do «Lusitania, Quo Vadis?». Fiquei a saber também que na Av. do Brasil «a polícia não deveria intervir, a menos que os assistentes se manifestassem na via pública ou de qualquer outro modo alterassem a ordem» e que «embora a maioria das pessoas fossem jovens (rapazes e raparigas), notou-se a presença de muitos homens de boa aparência e porte social». (Nada se diz sobre as mulheres...) Num outro relatório mais completo, que teve o cuidado de incluir nos nossos processos individuais como membros dos Corpos Dirigentes do Centro, a PIDE concluiu que o ciclo de conferências tinha servido, «(...) para muitos dos inimigos do regime, como Mário Soares, Jorge Sampaio, Mário Sottomayor Cardia e outros, fazerem a propaganda e apologia dos seus ideais demolidores da ordem e do progresso (...), onde não foi até poupada a linha do Governo relativamente à sua política ultramarina».
Mas o «Lusitania, Quo Vadis?» tinha‑se realizado. Talvez ninguém se lembre hoje do que foi dito ou não nessa noite de 19 de Março. Mas todos guardaram na memória o filme dos acontecimentos. E a satisfação de terem participado em mais uma finta ao regime.
Após um ano de exercício, a Direcção que tomara posse em Novembro de 1968 não viu o seu mandato renovado. O Centro foi um dos palcos privilegiados das divergências entre a CDE e a CEUD, no período que antecedeu as eleições legislativas de 1969. A Direcção encabeçada por José Manuel Galvão Teles era claramente afecta à CDE, mas havia muitos «pesos pesados» na CEUD com grande influência no Centro – Mário Soares, Salgado Zenha e Francisco de Sousa Tavares, entre outros. A disputa concretizou‑se em eleições renhidíssimas que se saldaram por uma vitória da lista liderada por Sousa Tavares que assim retomou a presidência da Direcção do Centro
Não podemos falar da história da “New York Review of Books” sem referir David Levine (1926-2009), o genial caricaturista cujos desenhos nos deram, ao longo de muitos anos, excelentes comentários irónicos e lúcidos sobre as mais diversas personalidades do mundo da cultura e da política. Hoje podemos deleitar-nos em www.nybooks.com/gallery/, compreendendo que Levine é, ao lado dos grandes caricaturistas da história dos últimos séculos, como Honoré Daumier (1808-1879), Richard Doyle (1824-1883), Thomas Nast (1840-1902), Leslie Ward (1851-1922) ou a escola alemã do “Simplicissimus”, um criador inconfundível no qual o humor inteligente se junta ao oportuno comentário crítico. Recordamos hoje igualmente a morte de um dos mais importantes autores belgas da escola da linha clara, Tibet (1931-2010), de seu nome Gilbert Gascard, criador nos anos cinquenta, na revista “Tintin”, com A.-P. Duchâteau, de “Ric Hochet”, cujos álbuns constituem muito bons exemplos da melhor banda desenhada europeia.
LEVINE – O MUNDO À MÃO Saul Bellow, Norman Mailer, Truman Capote e Hannah Arendt foram das suas relações. Admirava muito o exemplo do Presidente Franklin Delano Roosevelt. Estudou Belas-Artes em Filadélfia e em Brooklyn. Longe da caricatura, começou por ser um pintor de temas sociais, tornando-se um seguidor do pintor expressionista abstracto Hans Hoffmann. Depois David Levine tomou os passos de James Whistler e de Jean Vuillard, expondo em galerias regularmente, com apreciável êxito. A pouco e pouco, o sucesso leva-o a tornar-se um ilustrador muito solicitado – cultivando a ironia e o humor. Desperta a atenção de Clay Felker da revista “Esquire” e daí à chegada à grande imprensa de prestígio é um ápice. Torna-se ilustrador da “Esquire” e da “Atlas”, magazines de prestígio, em finais dos anos cinquenta. Em 1963, entra na “New York Review of Books”, onde se torna uma peça chave, desenhando dez a doze desenhos por mês. Até 2007, data em que deixou a colaboração com o periódico por doença, assinou mais de 3800 originais. Nos últimos anos o periódico tem vindo a republicar uma antologia de David Levine. Torna-se o ex-libris do NYRB, mas empresta ainda o seu talento às melhores publicações do seu tempo: Washington Post, New York Times, Time, Newsweek, New Yorker e Rolling Stone. Ilustra textos para crianças de Esopo ou de Lewis Carroll e publica recolhas, que se tornam best sellers como: “The Man from M.A.L.I.C.E., Movies, Art, Literature & International…” (1966, Dutton). Para ele, a caricatura não era um exercício diletante, era um acto de criação e de pensamento, facto tanto mais importante quanto é certo que muito prezava as ideias. Se olharmos com atenção para cada uma das suas obras, depressa descobrimos que estamos perante pequenos ensaios, feitos a tinta da china, com subtis traços, que salientam ou distorcem este ou aquele aspecto das figuras retratadas, para melhor destacar a sua personalidade e a sua importância no tempo em que viveram. A macrocefalia, aliás, demonstra a valorização da cabeça e do carácter. Muitos dos seus colegas de profissão fizeram questão de salientar que Levine tinha um lugar à parte e destacado no panorama da caricatura e do debate das ideias. Era um artista, um psicólogo, um crítico literário, um jornalista com uma sensibilidade apuradíssima, que intervinha com a sua arte na vida cultural e política. No entanto, o seu sentido crítico, tantas vezes severo, levou a que fosse identificado, sem razão, com posições políticas radicais. “O mundo assemelha-se demasiado a uma marionette nas mãos de alguns bonecreiros” – disse um dia David Levine. E disse mais: “Só a sátira política pode salvar um país do inferno”. Desmentindo os seus detractores, afirmou ainda que “não podia ter ido mais longe, uma vez que não desejava ser demolidor. A caricatura que vai longe de mais avilta o olhar do ser humano”. Era, no fundo, um cultor do equilíbrio e da dignidade, sem cedências, mas não se eximia a forçar os traços caricaturais (o nariz de De Gaulle, o estômago Vietname de Lyndon Johnson, o olhar de J. Paul Sartre…) ou a crítica severa em relação àqueles com que não simpatizava (sendo Nixon o caso mais notório). Não era, por isso, neutro – nem julgava poder sê-lo, uma vez que sabia não poder deixar as pessoas indiferentes. Em Portugal, tornou-se célebre, sobretudo depois de 1974, não só ao desenhar o General António de Spínola, Mário Soares ou Álvaro Cunhal, mas também ao ver publicadas as suas caricaturas nos tempos heróicos do “Jornal Novo”.
O DETECTIVE JORNALISTA A morte de Tibet priva-nos de um dos autores mais significativos da “geração de ouro” da banda desenhada belga. E pode mesmo dizer-se que este foi não só um dos desenhadores mais prolíficos da revista Tintin, mas também um dos mais influentes, pelo rigor, qualidade, consistência, clareza e persistência da sua produção. Desde 1950, Tibet, aliás, Gilbert Gascard (natural de Marselha), foi maquetista ilustrador da revista “Tintin” belga, depois de uma experiência nos estúdios da Disney em Bruxelas, na produção da revista “Mickey Magazine”, e de ter criado uma personagem de existência fugaz, Dave O’Flynn (1949). Em 1952, iniciou a publicação de “Aventuras de Chick Bill no Arizona”, como uma fábula de animais, que depressa se antropomorfizou a partir da terceira aventura, tendo atingido 69 álbuns. E em 1955, nasceu Ric Hochet, como protagonista de uma série de quebra-cabeças policiais, primeiro como jovem ardina e depois como jornalista de “La Rafale”. Logo nesse ano, o “Cavaleiro Andante” de Adolfo Simões Müller publicou o enigma “Qual dos Três?”, em que Ric Hochet surgia com o nome de João Nuno. Na passagem da década surgiram duas outras séries: “Júnior” (1959) e “3A” (1962). O grande sucesso de Tibet tornou-se, sem dúvida, Ric Hochet (de ricochete, metáfora tirada do sucesso do investigador policial imbatível, com o seu inseparável Inspector Bourdon).
Caricaturista muito dotado, Tibet vai desempenhar um papel cada vez mais importante na equipa de “Tintin” (ao lado de Hergé, Greg, Mittéï, Paul Cuvelier, Jacques Martin, E.P. Jacobs…) e na casa “Le Lombard” (de Raymond Leblanc), sucedendo, aliás, a Bob de Moor como director gráfico da editora em 1992. Ric Hochet torna-se um herói da revista, com direito a protagonizar séries de continuados em 1958. Logo em 1962, o “Álbum do Cavaleiro Andante” publica “Camaleão – Perigo de Morte” (em 1963 sairá o primeiro álbum na Bélgica) e em 1965 a revista “Zorro”, também dirigida por Simões Müller, que sucedeu ao “Cavaleiro Andante”, dá à estampa “O Caso dos Quadros Roubados” e “A Sombra do Camaleão”, sendo Ric Hochet designado como Mário João e o seu amigo como Inspector Navarro. Nota-se, pois, uma ligação muito forte a Portugal desde os primórdios, à semelhança do que aconteceu com o próprio Hergé. Até hoje saíram 76 álbuns de aventuras de Ric Hochet, anunciando-se para muito breve a publicação do 77º álbum, número quase irónico, para que proclamou durante toda a vida trabalhar para os jovens dos 7 aos 77 anos. Em poucas palavras, pode dizer-se que Tibet foi um desenhador muito dotado, um caricaturista muito seguro e um dos melhores representantes da “linha clara”. Teve a inteligência de se associar a um autor muito imaginativo como A.P. Duchâteau que lhe permitiu ser intérprete na banda desenhada de uma tradição do romance policial que tem no belga George Simenon um exemplo. Aqui ou ali notam-se ainda influências de Leslie Charteris, criador da série televisiva “O Santo”, protagonizada por Roger Moore no papel de Simon Templar. O prestígio de Tibet levaria o Ministro da Educação Nacional de França Jack Lang a torná-lo Cavaleiro das Artes e das Letras (2000), sendo elevado em 2006 ao grau de Oficial. Foi, entretanto, designado pelo seu país de adopção, a Bélgica, Embaixador Cultural. Patrick Gaumet publicou uma monografia sobre a vida e obra de Tibet intitulada “Tibet: La Fureur de Rire” (2000).
Mais generosos que avaros, mais comunitários que individualistas, mais emotivos que racionais, mais espiritualistas que materialistas, mais supersticiosos (Fátima) que devotos, mais líricos que prosaicos, mais soltos que disciplinados, mais improvisadores que metódicos, sempre desprezados pelos poderes públicos, os portugueses constituem um povo desejoso de abastança e solidariedade, um povo que defende ser a razão menos importante que a paixão, o calculismo menos importante que a fruição lúdica da vida, um povo que, face aos interesses económicos, tem pugnado pelos valores do sentimento e da comoção, os valores do gregarismo e da generosidade, os valores da partilha e do companheirismo, unidos e vinculados a um sentido transcendente orientador na busca da justiça, que desespera por nunca chegar. Volta-se então para Nossa Senhora, esperando do Céu o que a terra lhe nega.
A fibra de lutador dos Portugueses advém da sua história e da sua cultura – uma história, primeiro, de guerra contra os mouros; depois, de guerra contra a natureza e os povos "pagãos" que descobria em África, no Oriente e no Brasil; finalmente, arredado da fruição do Ouro do Brasil, restrito às elites políticas, a luta pela sobrevivência numa vida em permanente miséria económica até à actualidade. Todas estas causas fizeram dos portugueses um povo menos votado a uma vida certa e rotineira e mais votado a uma vida improvisada, na qual cada um deveria "desenrascar-se" por si próprio ou no interior de um pequeno grupo de companheiros.
Dos Descobrimentos, ficou-nos uma fortíssima capacidade de improvisação e a necessidade de, para além de tudo, acreditarmos que Nossa Senhora nos privilegia e nos salva. Mais do que trabalharmos arduamente e criativamente, acreditamos que o euromilhões, um emprego de ocasião, um negócio milagroso ou uma herança salva a nossa vida.
Da Idade Média, profundamente religiosa, ficou-nos uma marca: o pensamento é superior à matéria e o espírito ao corpo.
Os Portugueses sempre defenderam um punhado de valores clássicos (lealdade, amizade, honestidade, generosidade…), alimentado por um sentido transcendente da História e do Homem (Deus, para uns; o Homem/Humanidade, segunda a Declaração Universal dos Direitos do Homem, para outros). Este espiritualismo nasceu de um conjunto de constrangimentos histórico-sociais muito particulares: menos o privilégio ao indivíduo e à liberdade e mais ao gregarismo comunitário; menos a autonomia e independência da sociedade civil e mais o endeusamento do Estado (a "Corte"); menos a separação e distinção radical entre as esferas da religião e do Estado e mais a prevalência dos modos tradicionais de socialização do sagrado; menos a generalização da riqueza do todo distribuída entre as partes e mais a concentração em pequenos grupos privilegiados; menos medidas de reforço da sociedade civil e mais subordinação do todo da comunidade ao Estado; menos o trabalho rigoroso e disciplinado, hora a hora, semana a semana, criando progressivamente riqueza própria, e mais a especulação de terras e imóveis, ou seja, menos produção e mais comercialização e especulação.
Assim, hoje, sem transcendência espiritual de valores ligados à beleza, ao bem e ao sagrado (mesmo à natureza como sagrado), Portugal transformar-se-á numa mera região geográfica da Comunidade Europeia, cheia de sol, de turistas e de euros, coarctada, porém, do essencial da vida que realiza os povos e os cidadãos. Não são os Portugueses, no século XXI, analfabetos e pobres, como os albaneses ou os sudaneses, mas cidadãos culturalmente ignorantes, robôs movidos a dinheiro, tão alegres exteriormente quanto vazios e infelizes interiormente. O presente português alimenta-se da mutilação do homem, unidimensionaliza-o numa estreita visão economicista. O futuro consistirá na libertação deste homem-máquina e na assunção de um homem pluridimensional, aberto a todos os valores, vivenciando uma realização quotidiana assente na união entre o corpo e o espírito – pensar, amar, trabalhar serão fundidos num único verbo: viver em plenitude.
Portugal é um país igual aos outros, carregado de defeitos e virtudes, mas com um jeitinho muito especial para operar consensos. Porventura devido à sua localização geográfica (cabo da Europa, olhos virados para o Atlântico e para África), à sua dimensão (país territorialmente pequeno) e fraca capacidade económica, as iniciativas de Portugal não ameaçam outras posições no tablado geoestratégico internacional. Neste sentido, nunca estando no topo das estatísticas mundiais, os Portugueses também não se situam na base, antes pelo contrário: situam-se no "meio", ganhando a confiança dos que têm menos sem amedrontar os que têm mais. É a posição do "meio" que serve permanentemente a Portugal – uma força "mediadora", um povo de "capatazia", como dizia Agostinho da Silva, nem de arquitectos/engenheiros, nem de trolhas e pedreiros. Assim, os Portugueses podem augurar a exercer um papel colectivo cada vez mais importante no conflito entre as nações, gerando oportunidades para a paz internacional, a justiça mundial, preparando um novo modelo organizativo e institucional onde mais prevaleça a harmonia que a desarmonia. Por outro lado, o jeito lento de sermos, a contenção na ambição de que somos feitos (consequência de 800 anos de cristianismo), a alegria natural de que somos possuídos sempre que em grupo, a predominância da afeição pelo sagrado (as romarias, os santuários, as procissões, Fátima) e o amor que devotamos à natureza (conservamos alguns dos mais selvagens – genuínos – parques naturais da Europa), podem funcionar como elementos atractivos para os povos da Europa do Norte, mais frios, racionais, ambiciosos e trabalhadores do que nós, forçando-os a mudarem de vida e a seguirem as nossas pisadas, abandonando-se a uma vida calma, justa, harmónica, gregária, numa palavra, feliz. A ideia portuguesa de Quinto Império, hoje, século XXI, consiste justamente numa Europa harmónica com a natureza, um território de paz, um continente justo, uma terra da alegria, onde o trabalho teria uma importantíssima componente comunitária e o Estado velaria pelas necessidades de todos os cidadãos.
Albert Camus (1913-1960), que escreveu “A Queda” em 1956 (tradução portuguesa de José Terra, Livros do Brasil, s.d.), é um símbolo do século XX. Estamos perante uma obra da maturidade. A sua vida, o seu percurso pessoal, a obra literária e o pensamento confundem-se com o drama humano do século. As dúvidas, as contradições, os êxitos e os fracassos que viveu dão-lhe uma importância que o tempo tem vindo a aumentar. Se, por um lado, a sua obra tem uma importância inovadora, também é certo que as suas intuições históricas se revelaram de uma grande pertinência. Poderíamos falar dos seus livros de maior sucesso como “L’Étranger” (1942), “Le Mythe de Sisyphe” (1942), “La Peste” (1947), “L’Homme Revolté” (1951) ou “Le Premier Homme” (1994), no entanto preferimos pegar nas preocupações fundamentais do romancista e nos seus temas recorrentes – o absurdo e a procura de uma esperança, que em “A Queda” estão bem presentes.
Albert Camus por Gonzalo Cárcamo
O ABSURDO COMO CONFRONTO « L'absurde naît de cette confrontation entre l'appel humain et le silence déraisonnable du monde » - assim se exprime Albert Camus, definindo a sua atitude perante a humanidade e a vida. E a verdade é que, desde a infância pobre na Argélia, a sua vida foi-se construindo num sentido de independência e de lucidez, num horizonte de autonomia e de liberdade. E o certo é que entre o apelo humano e o silêncio do mundo há um vazio de razão que obriga o pensador a interrogar-se e a procurar motivos para que acção se faça e possa prosseguir. Na sua obra-prima, fala-nos, nesse sentido, do mito de Sísifo - o herói da antiguidade punido por ter desafiado os deuses, cuja pena era a de empurrar, por toda a eternidade, uma enorme pedra até ao cimo de uma montanha. Uma vez chegada ao topo a pedra rolava até abaixo e Sísifo tinha de a empurrar de novo num movimento inexorável e absurdo. Camus via em Sísifo o ser que vive a vida plenamente, odiando a morte, mas estando condenado a uma tarefa sem sentido. Apesar de reconhecer essa falta de sentido, Sísifo continua a executar essa tarefa permanente e Albert Camus apresenta o mito como metáfora da vida moderna: "o operário de hoje trabalha todos os dias, repetindo as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, e é trágico uma vez que apenas em raros momentos ele se torna consciente". Em “A Queda” sentimos essa mesma tensão na primeira pessoa. O absurdo e a procura de sentido põem a questão dos limites da acção e da vida. E em dado passo do livro, ouvimos a invocação dos limites, a morte e a culpa, e a propósito deles é posta a interrogação sobre a atitude perante quem já ultrapassou essa fronteira. “Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira, mas sabe porque somos sempre mais justos e generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, arrumar a homenagem entre o copo-de-água e uma gentil amante, nas horas vagas, em suma. Se algo nos impusessem, seria a memória e nós temos a memória curta”. AS TAREFAS E A FALTA DE TEMPO… A memória é curta e a indiferença é grande… O que sentimos? É estranho o que vai acontecendo e perguntamo-nos amiúde em que caminho nos encontramos e que consciência temos dos deveres que nos impomos e do seu fundamento. E essa percepção acontece muitas vezes em momentos excepcionais, em situações nas quais somos confrontados com o que não esperamos, mas que temos de considerar como inerente à vida. E ficamos bloqueados, sem saber o que fazer ou o que responder, sendo que essa circunstância fica suspensa no tempo como factor de bloqueio. É isso que acontece no momento crucial nas margens do Sena com uma mulher: “Tinha percorrido já uns cinquenta metros, mais ou menos, quando ouvi um baque, que, apesar da distância, me pareceu formidável no silêncio nocturno, de um corpo que tomba na água. Estaquei, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito, várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite subitamente parada, pareceu-me interminável. Quis correr e nem me mexi”. Nada fez e nos dias seguintes nem se atreveu a ver os jornais. Dois ou três anos depois, quando passava na Pont des Arts, estalou um riso atrás de si, incompreensível e persistentemente – mas esse riso nada tinha de misterioso, era um riso natural, quase amigável… Mas era uma recordação perturbadora. A singularidade desse estranho evento exigia o entendimento de que há limites e de que a consciência do absurdo pode levar à desistência ou à percepção de que falta tempo a todos para realizar as tarefas a cada um confiadas. Se falta tempo, também há quem não suporte a incapacidade de justificar a vida. “Vou dizer-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Realiza-se todos os dias”. Emmanuel Mounier disse, pouco antes de morrer, que Camus preferia a aproximação carnal, que referia a uma face ou a uma mão à aproximação que apenas se referia a uma ideia. E, depois de um jogo de gato e rato, que tentava iludir a angústia e o absurdo, ouvimos, no final de “A Queda”, o pedido que se antecipamos em todo o romance: «Conte-me então, peço-lhe, o que lhe aconteceu uma noite nos cais do Sena e como conseguiu nunca mais arriscar a vida. Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não cessam de retinir nas minhas noites, e que eu direi enfim pelas sua boca: ‘Ó pequena, deita-te de novo à água para que eu tenha pela segunda vez a sorte de nos salvar a ambos!’ Pela segunda vez, hein?, que imprudência! Suponha, caro colega, que nos toma à letra. Teríamos de cumprir. Brr…! A água tão fria! Mas tranquilizemo-nos! É tarde de mais, agora será sempre tarde de mais. Felizmente!». Jean-Baptiste Clamence descobre, por si, isoladamente, a estranha origem do mal. E o seu drama é ditado não pela acção, mas pela indiferença, que o perseguirá ao longo do tempo. No epílogo ainda há, num assomo passageiro, o desejo de regressar a esse dia distante nos cais do Sena para que a virtude pudesse ser recuperada. Mas a lucidez serena do protagonista coloca-nos no mesmo ponto em que a omissão e a indiferença falaram mais alto. É tarde de mais! E se o drama se mantém de pé, com a estranha recordação do riso ouvido na Pont des Arts, a verdade é que o absurdo manifesta-se inexoravelmente e contra ele nada é possível. Afinal, o absurdo é o contrário da esperança, como se diz em “O Mito de Sísifo”… FILOSOFIA EM IMAGENS. “Un roman n’est jamais qu’une philosophie mise en images” – disse Camus, e « A Queda » ilustra plenamente esse entendimento. Jean-Baptiste Clamence retoma o drama de Sísifo. Cinco anos depois de “L’Homme Revolté” (e da ruptura com J.P. Sartre), percebe-se que o sentimento de Camus relativamente à revolta e à esperança dependa da consciência do homem livre, capaz de duvidar e de amar, e de se demarcar dos messianismos temporais ou de dizer que entre um ideal e a sua própria mãe (que arriscava a vida nos transportes públicos, em Argel, sob a ameaça das bombas) preferia a vida da mãe. “Cada revolta é nostalgia da inocência e apelo para o ser. Mas a nostalgia toma um dia as armas e assume a culpabilidade total, quer dizer a morte e a violência”. A revolta, para Camus, permite superar a lógica puramente individual. Leva à tomada de consciência do que nos une aos outros. Pelo contrário, a revolução prefere o homem abstracto ao homem de carne e osso. A revolta visa a unidade, a revolução histórica a totalidade, uma é criadora a outra niilista. Albert Camus, morto há cinquenta anos, continua a interrogar o tempo actual, o que significa que compreendeu bem as pessoas concretas, mais do que a abstracção das existências.
Publicamos, a partir desta data, “posts” de amigos e colaboradores nossos sobre temas culturais da actualidade.
Começamos com um texto inédito que Ana Marques Gastão apresentou num encontro dedicado à personalidade e obra do escritor António Osório, realizado em Dezembro passado na Biblioteca Nacional de Portugal.
CHUVA MATERNA, LUZ FRATERNA
Em A Matéria Volátil (1), António Osório define, no texto Peso do Mundo, a poesia como «o milagre de uma arma total, / de uma só palavra / reduzindo o átomo à completa inocência.» Que faz a poesia, afinal, se não ceder a uma vontade de observar o mínimo-máximo no interior das coisas, usando de um olhar-primeiro? Não que seja seu propósito dar largas a uma curiosidade obsessiva, mas diríamos que a capacidade de ver o au-delà ou o au-dedans das coisas, a que se refere Bachelard(2), constrói o poema, essa fábrica de versos integrada pelo movimento da palavra dentro da escrita, pelo som, o ritmo e a prosódia, o sentido.
Que há a reter, então, desta definição de António Osório abrangendo três linhas de pensamento?
a) Poesia como arma total. b) Poesia que usa de uma só palavra. c) Poesia como redução a uma completa inocência.
Falemos, em primeiro lugar, da «arma da totalidade», de uma plenitude aberta ao esplendor do mundo. O criador sabe que nada é, mas deseja; dir-se-ia um cavaleiro andante, o passageiro a que alude Jean-Michel Maulpoix(3), ousado construtor de uma trajectória em busca do Absoluto Perfeito que vai forjando a matéria do espírito, tal como diz Novarina(4).
A escrita de António Osório é a de um imaginário persistente, centrado na formulação de uma arte sem artifícios, purificadora e ritual, associada a uma simbólica da fecundidade e da regeneração. Está, de modo mais ou menos velado, ligada à Terra, geradora dos seres que alimenta e logo os acolhe como um útero lavado pelas chuvas de uva.
Relembre-se o fenómeno do nascimento dos deuses e do mundo na Teogonia de Hesíodo(5)que anuncia uma função organizadora do Cosmos assimilada, de uma forma ou de outra, pelas literaturas de todos os tempos. Dessas bodas entre o Céu e o Inferno surge também a escrita de António Osório, interrogando-se esta sobre a sua própria proveniência e destino enquanto caminha sobre um ínfimo fio contra a vulgaridade lírica. Nela se sente como a ordem é frágil e jamais adquirida.
António Osório é um autor da tradição, das hierofanias, que faz do poema flecha feiticeira, deus sem idade, cepa de vinha, como se, a partir de uma confusão inicial, o poeta fosse construindo a harmonia e, na senda dessa serenidade de cítara, se movesse, instaurando um tempo mítico.
A sua criação poderíamos defini-la como uma arena onde assentam, escorregadios, os conflitos da consciência humana, via láctea de touros sacrificados. É nesse lugar que se cumpre um teatro trágico. Só que o guerreiro homérico sabe que «não pode nem penetrar nem dirigir as manobras do destino» como, ironicamente, sublinha George Steiner.(6)
Uma não angustiada Terra – divindade da fertilidade – brota da obra de António Osório como se o poeta usasse de um «super-telescópio» para a ver, azul e cheia de escuridade na magnificência de um enigmático silêncio, abundando em ardor contido.
Leia-se o poema O Movimento da Terra incluído em Planetário, escute-se a caminhada do seu bestiário aristocrático que percorre esta poética protegida por um «deus / marcado por estigmas»(7), interpelado e oculto:
Céu mais límpido que noite de estio.
Sente-se o movimento da Terra.
Insimulável, falta o aroma do feno, a sirene festiva das cigarras, o murmúrio dos que amam.(8)
E é também no amor – um dos atributos guerreiros no sentido da paixão de Medeia por Jasão em A Argonáutica(9) – que mergulha esta poética de despojamento e ritmos mágicos na mais «funesta adversidade» ou na fortuna de uma extrema decantação: o amor do gago que sofre por palavras ou da videira que espera pelo seu retardatário enxertador; o amor pelos pais que, desaparecidos, permanecem na inocência intacta e dorida da criança; o amor solidário no sentido cosmobiológico devido à vida, entendida na acepção de Mircea Eliade.(10)
António Osório escreve sobre os amantes que, na sua fortaleza de amar, não se completam como se fossem mendigos de olhos. As suas personagens, se assim se pode dizer, são coisa nunca finda, água destilada de Deus e Adão, seres que exprimem um imenso amor pela poesia olhada como enxame de símbolos, chuva materna, luz fraterna de quem reentra no Paraíso, por onde o amor, aparição de leite(11), passa ileso.
O poeta de Aforismos Mágicos usa a concisão estilística, essa «uma só palavra» que nasce da habilidade do mínimo cultivada pelos greco-latinos ou pelos sábios do Oriente, seguindo o caminho dos antigos e buscando, à maneira de Bashô, o que eles buscaram. Os afectos são, por outro lado, bússola e origem na sua obra: a Mãe, sua e única, por um lado, centro do mundo por outro, omphalos de Delfos, vida e morte, pedra branca-negra a partir da qual irradiam cristalizações imprevisíveis e um pensar entrançado em visão e movimento. Ora, «só se vê aquilo para que se olha»(12). Nesse sentido, a poesia de António Osório é ritualística e indissociável da observação, do dom da atenção, activador de uma ética do cuidado. À terra, na sua obra, entendamo-la enquanto matriz e substância universal, caos primordial, matéria-prima separada das águas segundo o Génesis, fecundada pela chuva e o sangue que são semente celeste, «o lugar do amor», repousante «cela / onde não há desespero».(13)
Da poesia de António Osório, ressalta a ideia da Tellus Mater, função maternal que dá e tira a vida, inseparável de uma força seminal a partir da qual se explica a árvore (lembre-se a de Leonardo Da Vinci), símbolo da vida e da sua perpétua e cíclica evolução cósmica: morte e reconstrução, também a das constelações de inumeráveis filhos e símbolos. Nessa medida, a Terra surge como meteoro líquido ao qual o sujeito poético quer regressar encenando a morte com a doçura de um seio. Dessa passagem, da dor da separação que simultaneamente celebra a vida, nasce o poema Mãe que Levei à Terra, grito sufocado perante a morte:
Mãe que levei à terra, como me trouxeste no ventre, que farei destas tuas artérias? Que medula, placenta, que lágrimas unem aos teus estes ossos? Em que difere a minha da tua carne?
Mãe que levei à terra como me acompanhaste à escola, o que herdei de ti, além de móveis, pó, detritos da tua e outras casas extintas? Porque guardavas o sopro de teus avós?
Mãe que levei à terra como me trouxeste no ventre, vejo nos teus retratos, seguro nos teus dezanove anos, eu não existia, meu Pai já te amava. Que fizeste do teu sangue, como foi possível, onde estás?(14)
Longe de uma topologia psíquica, embora entrelaçada em associações, complexos e símbolos, a terra de António Osório não se insere na materialização de pulsões dominantes, renuncia a esse domínio de pesquisa, situando-se do lado da inocência e da fome de imagens, do fragmento de um tempo primeiro. O sujeito poético perde, então, por isso, algo da sua substância de infelicidade e de aprisionamento ao acolher-se numa essência de repouso ao qual o movimento das palavras conduz.
Talvez por isso esta poesia se entrelace com a estrutura cósmica, revelada nas suas manifestações, podendo-se nesse aspecto, pensá-la a partir da mitologia, da história das religiões, da ciência, da arte. A hera e o louro são também na escrita de António Osório a coroação dos animais, que se veste, por outro lado, de fábula e mito da criação humana como em Adão, Eva e o Mais, livro de aromas fugidios e amores secretos: «Mordeu a maçã: / guardou o remorso / e guardou, alva, / incólume, a coroa / de seus dentes.(15)
A arte do poeta de Libertação da Peste – e usando da paráfrase – «ama com pressa de não acabar o amor», desejando que o sagrado possa começar «de novo pela boca dos mortos»(16). Como se a Natureza fosse a sua maior obra e os versos descendessem de medusas, tubarões-anjos, do concerto interior da natureza. António Osório dir-se-ia também o advogado/ad vocatus (o que é chamado em auxílio) que dá num verso, / a outra face(17).
Ana Marques Gastão
(1) António Osório, Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, A Ignorância da Morte (Aldeia de Irmãos / Matéria Volátil), «Peso do Mundo», p. 94. Todas as referências seguem esta edição. (2) Gaston Bachelard, La Terre et les rêveries du repos, «Les rêveries de l’intimité matérielle», Paris, José Corti, 1948, p. 18. (3)3 Jean Michel Maulpoix, Le Poète perplexe, en lisant en écrivant, Paris, José Corti, 2002, p. 20. (4) Valère Novarina, Devant la parole, Paris, éd. P.O.L, 1999, p.16. (5) Cf. Hesíodo, Théogonie, Les Travaux et les Jours, Bouclier, suivis des Hymnes homériques, introd., trad. e notas de Jean-Louis Backès, Paris, Gallimard, 2001. (6)George Steiner, La Mort de la tragédie, Paris, Gallimard, 1993, p.13. (7)António Osório, ibid., «Uma Estrela Vulgar», p.301. (8)António Osório, ibid., Planetário e Zoo dos Homens, «O Movimento da Terra», p. 297. (9) Cf. Apolónio de Rodes, A Argonáutica, Lisboa, Publicações Europa-América, 1989, p. 91. (10)Ler Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Lisboa, Asa, 1994, p. 323-24. (11)António Osório, ibid., Décima Aurora, «Água-Forte», p. 251. (12)Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, Lisboa, Vega, 2ª ed., 1997, p. 19. (13) António Osório, ibid., O Lugar do Amor (A Teia Dupla / Felicidade da Pintura), «Casa Térrea», p. 137. (14)Idem, ibid., A Ignorância da Morte (Aldeia de Irmãos / Matéria Volátil), «Ponte Velha I», «Mãe que Levei à Terra», p.95. (15) Idem, ibid, Adão, Eva e o Mais, trecho 23, p.279. (16)Idem, ibid., O Lugar do Amor, (Teia Dupla / Felicidade da Pintura), «Casa Térrea», p.133. (17) Idem, ibid., Décima Aurora, «O Betão Armado», p.230.
“Evocação de Sophia” de Alberto Vaz da Silva (Assírio e Alvim, 2009), com prefácio de Maria Velho da Costa e posfácio de José Tolentino Mendonça é um livro belíssimo feito de uma devoção intensa em relação a uma das pessoas mais extraordinárias da cultura portuguesa contemporânea. A poesia pátria, que teve no século XX um momento especialmente rico, como um dia reconheceu João Bénard da Costa, ao duvidar que tivéssemos sido sempre um país de poetas, tem em Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) um caso muito sério de talento e sensibilidade. E nesta evocação o que se sente, fundamentalmente, é a pessoa, como ser inseparável da sua condição de poeta. E se falei de devoção, o certo é que em nada esta perturba a limpidez e a verdade que o autor nos dá e que nos permite relembrar a poeta.
Sophia de Mello Breyner, por Arpad Szenes.
PERSONALIDADE FASCINANTE Sophia de Mello Breyner foi uma personalidade fascinante e complexa. A sua obra multifacetada resulta de um talento especial para lidar com as palavras e o ritmo delas na criação literária, e especialmente na poética. A arte manifestou-se, assim, de modo sublime na escrita. E esse talento tanto é evidente na mestria que encontramos nos seus contos infantis, como no rigor, a um tempo clássico e moderno, que descobrimos na arte poética. É assim uma voz singular no panorama da poesia europeia, que pelos temas e intensidade criadora em muito ultrapassa as fronteiras portuguesas, apesar de se sentirem as raízes da identidade própria. No entanto, essa identidade nada tem a ver com qualquer passadismo ou mesmo saudosismo, que a irritavam. Preferia antes “os que avançam de frente para o mar”, como disse em “Mar Novo”, referindo-se aos que “vivem de pouco pão e de luar”. A poesia deveria ser universalista e por isso, ao lermo-la, encontramos o espírito de aventura e de novidade, que põe a pessoa em primeiro lugar, no sentido do “prosopon” grego, etimologicamente significativo de máscara teatral, que define a singularidade e a universalidade, aliando o que as une e o que as distingue. Nesse sentido, a poesia de Sophia é europeia e transcende as fronteiras, bebendo através das raízes grega, mediterrânica e judaico-cristã a força das origens. Sentimos a partilha inspiradora que vem de Homero a Camões, chega a Pessoa, mas continua em Rainer Maria Rilke. E Frederico Lourenço diz-nos que a Grécia de Sophia é “construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal”. E lembra “O Búzio de Cós”, onde se não ouve “nem o marulho de Cós nem o de Egina / Mas sim o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre a minha alma foi criada”, afirmando ainda (o tradutor da “Ilíada” e da “Odisseia”), emblematicamente, que “a Homero ela foi buscar a absoluta simplicidade de efeitos no acto de narrar”.
UM EXEMPLO DE COERÊNCIA Ao lermos esta evocação, sentimos uma ligação naturalíssima entre a vida e as múltiplas recordações que ela sempre traz. A casa de S. João dos Bencasados (de que já falei aqui) é lembrada como um lugar mágico: “no fundo da copa havia um desvão onde estava uma grande arca. Essa arca era para nós a caverna do Ali Babá. Lá dentro estavam os fatos de máscaras que os nossos tios e tias tinham usado na sua juventude no bailado da ‘Princesa de Sapatos de Ferro’ e no bailado do ‘Arlequim e Columbina’. Eram fatos maravilhosos, feitos de cetim de todas as cores, desenhados por Almada Negreiros e cortados e cosidos pela Maria Carolina. O meu preferido era o vestido da princesa feito de tiras amarelas e tiras brancas…». E, no outro extremo da cidade, da casa do Campo Grande, lembra: “nas tardes de Verão sentávamo-nos nos degraus da escada em meia-lua que liga a sala grande com o jardim e falávamos sem fim de todas as coisas visíveis e invisíveis do céu e da terra”. E Alberto Vaz da Silva vai encadeando as diversas impressões e os múltiplos episódios do que Sophia considerou ter sido “uma vida maravilhosa”. Mas não se pense que tudo foram rosas. Um dia disse a Jorge de Sena (grande e próximo amigo): “a minha família – pelas sabidas razões políticas – quase não me fala. Os meus amigos de juventude quase me detestam”. Mas também lhe confidencia: “Ser ao mesmo tempo poeta, mulher do D. Quixote e mãe de cinco filhos é uma tripla tarefa bastante esgotante”. Não é possível distinguir a poeta e a cidadã. Sophia de Mello Breyner foi exemplarmente as duas coisas. E a coragem foi uma das marcas do seu percurso humano. Lembramo-nos, do ano emblemático de 1958, em que “Mar Novo” foi um grito de revolta contra a decisão do poder de não respeitar o resultado do concurso realizado em 1956, não se construindo “o monumento que devia ser construído em Sagres”, concebido pelo arquitecto João Andresen (irmão de Sophia), com esculturas de Barata Feyo e painéis pintados por Júlio Resende. E foi a propósito destes painéis que disse: “Do Lusíada que parte para o universo puro / Sem nenhum peso morto sem nenhum obscuro / Prenúncio de traição sob os seus passos”.
PEREGRINAÇÕES FANTÁSTICAS A Grécia entusiasma-a. Mas, confessa ainda a Sena: “não pense que vim da Grécia paganizada. Aliás o paganismo ali não é ‘nada do que se conta’! Voltei sim mais apta a compreender o Evangelho que S. Paulo pregou em frente da Acrópole. Mais apta a compreender toda a vital necessidade de ligação, de religação”. E nestas peregrinações fantásticas Alberto recorda a inesquecível viagem à Sicília – a Sophia, a Helena, a Ana Maria, o João Bénard da Costa e ele. E faz uma descrição comovedora, a par e passo, com as palavras de Sophia, a dar-nos a geografia e o nome das coisas. E uma dedicatória, mais tarde, resumirá tudo: “em memória das manhãs, das tardes e das noites no maravilhoso jardim de Taormina – em memória dos templos, das estátuas, das praias, das praças, dos cafés no fim da manhã, do vinho ao jantar no fim do dia, da água na rua – do espírito da viagem”. O livro é uma preciosidade. Gozamo-lo letra a letra, palavra a palavra. E Maria Velho da Costa dá-nos um testemunho inesperado e essencial. É a crónica de uma cumplicidade, plena de pequenos episódios, em momentos diferentes. É Sophia rediviva. Lembrança de uma rapariguinha impraticável – “uma rapariga de setenta anos, capaz de ser vaidosa e frívola; e grandiosa como um mistério do mais abscôndito Deus, o inominável”. E inesperadamente ouvimos: “- Vamos à Baixa comer scones Marie?”. Maria Velho da Costa usa todo o seu talento, toda a sua força, para nos falar apenas de Sophia. “Nós divertíamo-nos como velhas meninas loucas naqueles dias de licença e privilégio consentidos…”. Lemos, relemos e sentimo-nos como moscas felizes, a testemunhar essa alegria essencial.
E O TEMA ASTROÓGICO? Alberto Vaz da Silva, fá-lo com exemplificações poéticas, para concluir que os elementos dominantes não são nem a água nem o ar. “Tudo acontece como num laboratório cósmico; o espírito harmonizou-se e separou-se da matéria, pelo caminho do aperfeiçoamento e um acto de libertação”. Afinal, o que temos é um “universo em assimetria profunda, Sophia foi uma rara ponte directa entre a Terra e o mundo do Fogo”. E, ao chegarmos à escrita, voltamos a encontrar essa ligação alquímica (“E pela limpidez das tão amadas / Palavras sempre ditas com paixão”). “É a paixão inteligente (diz-nos o analista criterioso) dos combates pessoais, políticos, ideológicos, a independência na afirmação do rigor dos princípios éticos de que não prescindia e a subversão aberta perante a decadência e a corrupção”. E é assim que a sua vida e obra formam «um impressionante testemunho de espiritualidade intensa, ‘pois convém tornar claro o coração do homem’». E por fim, José Tolentino Mendonça usa a metáfora do jardim e do jardineiro, a partir de Jeremias, quando este diz que “a alma será um jardim bem irrigado”. Daí a ligação à “evocação intensa, dilectíssima e discreta” de Alberto Vaz da Silva, lembrando que Sophia afirmava clara e nitidamente: “Em todos os jardins hei-de florir”. Mas esse ofício de ajudar a florescer leva o poeta a lembrar o caminho da leitura dos mestres judeus, tão semelhante ao do jardineiro: sentido simples, alusão, interpretação e segredo. O certo é que as primeiras consoantes das palavras hebraicas, que significam cada um desses passos, formam o termo que significa paraíso (pardès). E eis-nos perante a revelação do cerne da arte poética. “O endereço perene da leitura é assim um jardim”. E Sophia lembra que a quinta do Campo Alegre “era uma antologia de cheiros e aromas: nostálgico cheiro da glicínia, cheiro da flor de tília, cheiro do laranjal, cheiro do pomar. Cheiro das folhas de Outono, cheiro da hortelã acabada de regar, cheiro do muguet doce demais, forte demais, que só se podia respirar ao ar livre…”.