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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

de 4 a 10 de Janeiro de 2010

“Evocação de Sophia” de Alberto Vaz da Silva (Assírio e Alvim, 2009), com prefácio de Maria Velho da Costa e posfácio de José Tolentino Mendonça é um livro belíssimo feito de uma devoção intensa em relação a uma das pessoas mais extraordinárias da cultura portuguesa contemporânea. A poesia pátria, que teve no século XX um momento especialmente rico, como um dia reconheceu João Bénard da Costa, ao duvidar que tivéssemos sido sempre um país de poetas, tem em Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) um caso muito sério de talento e sensibilidade. E nesta evocação o que se sente, fundamentalmente, é a pessoa, como ser inseparável da sua condição de poeta. E se falei de devoção, o certo é que em nada esta perturba a limpidez e a verdade que o autor nos dá e que nos permite relembrar a poeta.

 
Sophia de Mello Breyner, por Arpad Szenes.

PERSONALIDADE FASCINANTE
Sophia de Mello Breyner foi uma personalidade fascinante e complexa. A sua obra multifacetada resulta de um talento especial para lidar com as palavras e o ritmo delas na criação literária, e especialmente na poética. A arte manifestou-se, assim, de modo sublime na escrita. E esse talento tanto é evidente na mestria que encontramos nos seus contos infantis, como no rigor, a um tempo clássico e moderno, que descobrimos na arte poética. É assim uma voz singular no panorama da poesia europeia, que pelos temas e intensidade criadora em muito ultrapassa as fronteiras portuguesas, apesar de se sentirem as raízes da identidade própria. No entanto, essa identidade nada tem a ver com qualquer passadismo ou mesmo saudosismo, que a irritavam. Preferia antes “os que avançam de frente para o mar”, como disse em “Mar Novo”, referindo-se aos que “vivem de pouco pão e de luar”. A poesia deveria ser universalista e por isso, ao lermo-la, encontramos o espírito de aventura e de novidade, que põe a pessoa em primeiro lugar, no sentido do “prosopon” grego, etimologicamente significativo de máscara teatral, que define a singularidade e a universalidade, aliando o que as une e o que as distingue. Nesse sentido, a poesia de Sophia é europeia e transcende as fronteiras, bebendo através das raízes grega, mediterrânica e judaico-cristã a força das origens. Sentimos a partilha inspiradora que vem de Homero a Camões, chega a Pessoa, mas continua em Rainer Maria Rilke. E Frederico Lourenço diz-nos que a Grécia de Sophia é “construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal”. E lembra “O Búzio de Cós”, onde se não ouve “nem o marulho de Cós nem o de Egina / Mas sim o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre a minha alma foi criada”, afirmando ainda (o tradutor da “Ilíada” e da “Odisseia”), emblematicamente, que “a Homero ela foi buscar a absoluta simplicidade de efeitos no acto de narrar”.

UM EXEMPLO DE COERÊNCIA
Ao lermos esta evocação, sentimos uma ligação naturalíssima entre a vida e as múltiplas recordações que ela sempre traz. A casa de S. João dos Bencasados (de que já falei aqui) é lembrada como um lugar mágico: “no fundo da copa havia um desvão onde estava uma grande arca. Essa arca era para nós a caverna do Ali Babá. Lá dentro estavam os fatos de máscaras que os nossos tios e tias tinham usado na sua juventude no bailado da ‘Princesa de Sapatos de Ferro’ e no bailado do ‘Arlequim e Columbina’. Eram fatos maravilhosos, feitos de cetim de todas as cores, desenhados por Almada Negreiros e cortados e cosidos pela Maria Carolina. O meu preferido era o vestido da princesa feito de tiras amarelas e tiras brancas…». E, no outro extremo da cidade, da casa do Campo Grande, lembra: “nas tardes de Verão sentávamo-nos nos degraus da escada em meia-lua que liga a sala grande com o jardim e falávamos sem fim de todas as coisas visíveis e invisíveis do céu e da terra”. E Alberto Vaz da Silva vai encadeando as diversas impressões e os múltiplos episódios do que Sophia considerou ter sido “uma vida maravilhosa”. Mas não se pense que tudo foram rosas. Um dia disse a Jorge de Sena (grande e próximo amigo): “a minha família – pelas sabidas razões políticas – quase não me fala. Os meus amigos de juventude quase me detestam”. Mas também lhe confidencia: “Ser ao mesmo tempo poeta, mulher do D. Quixote e mãe de cinco filhos é uma tripla tarefa bastante esgotante”. Não é possível distinguir a poeta e a cidadã. Sophia de Mello Breyner foi exemplarmente as duas coisas. E a coragem foi uma das marcas do seu percurso humano. Lembramo-nos, do ano emblemático de 1958, em que “Mar Novo” foi um grito de revolta contra a decisão do poder de não respeitar o resultado do concurso realizado em 1956, não se construindo “o monumento que devia ser construído em Sagres”, concebido pelo arquitecto João Andresen (irmão de Sophia), com esculturas de Barata Feyo e painéis pintados por Júlio Resende. E foi a propósito destes painéis que disse: “Do Lusíada que parte para o universo puro / Sem nenhum peso morto sem nenhum obscuro / Prenúncio de traição sob os seus passos”.

PEREGRINAÇÕES FANTÁSTICAS
A Grécia entusiasma-a. Mas, confessa ainda a Sena: “não pense que vim da Grécia paganizada. Aliás o paganismo ali não é ‘nada do que se conta’! Voltei sim mais apta a compreender o Evangelho que S. Paulo pregou em frente da Acrópole. Mais apta a compreender toda a vital necessidade de ligação, de religação”. E nestas peregrinações fantásticas Alberto recorda a inesquecível viagem à Sicília – a Sophia, a Helena, a Ana Maria, o João Bénard da Costa e ele. E faz uma descrição comovedora, a par e passo, com as palavras de Sophia, a dar-nos a geografia e o nome das coisas. E uma dedicatória, mais tarde, resumirá tudo: “em memória das manhãs, das tardes e das noites no maravilhoso jardim de Taormina – em memória dos templos, das estátuas, das praias, das praças, dos cafés no fim da manhã, do vinho ao jantar no fim do dia, da água na rua – do espírito da viagem”. O livro é uma preciosidade. Gozamo-lo letra a letra, palavra a palavra. E Maria Velho da Costa dá-nos um testemunho inesperado e essencial. É a crónica de uma cumplicidade, plena de pequenos episódios, em momentos diferentes. É Sophia rediviva. Lembrança de uma rapariguinha impraticável – “uma rapariga de setenta anos, capaz de ser vaidosa e frívola; e grandiosa como um mistério do mais abscôndito Deus, o inominável”. E inesperadamente ouvimos: “- Vamos à Baixa comer scones Marie?”. Maria Velho da Costa usa todo o seu talento, toda a sua força, para nos falar apenas de Sophia. “Nós divertíamo-nos como velhas meninas loucas naqueles dias de licença e privilégio consentidos…”. Lemos, relemos e sentimo-nos como moscas felizes, a testemunhar essa alegria essencial.

E O TEMA ASTROÓGICO? 
Alberto Vaz da Silva, fá-lo com exemplificações poéticas, para concluir que os elementos dominantes não são nem a água nem o ar. “Tudo acontece como num laboratório cósmico; o espírito harmonizou-se e separou-se da matéria, pelo caminho do aperfeiçoamento e um acto de libertação”. Afinal, o que temos é um “universo em assimetria profunda, Sophia foi uma rara ponte directa entre a Terra e o mundo do Fogo”. E, ao chegarmos à escrita, voltamos a encontrar essa ligação alquímica (“E pela limpidez das tão amadas / Palavras sempre ditas com paixão”). “É a paixão inteligente (diz-nos o analista criterioso) dos combates pessoais, políticos, ideológicos, a independência na afirmação do rigor dos princípios éticos de que não prescindia e a subversão aberta perante a decadência e a corrupção”. E é assim que a sua vida e obra formam «um impressionante testemunho de espiritualidade intensa, ‘pois convém tornar claro o coração do homem’». E por fim, José Tolentino Mendonça usa a metáfora do jardim e do jardineiro, a partir de Jeremias, quando este diz que “a alma será um jardim bem irrigado”. Daí a ligação à “evocação intensa, dilectíssima e discreta” de Alberto Vaz da Silva, lembrando que Sophia afirmava clara e nitidamente: “Em todos os jardins hei-de florir”. Mas esse ofício de ajudar a florescer leva o poeta a lembrar o caminho da leitura dos mestres judeus, tão semelhante ao do jardineiro: sentido simples, alusão, interpretação e segredo. O certo é que as primeiras consoantes das palavras hebraicas, que significam cada um desses passos, formam o termo que significa paraíso (pardès). E eis-nos perante a revelação do cerne da arte poética. “O endereço perene da leitura é assim um jardim”. E Sophia lembra que a quinta do Campo Alegre “era uma antologia de cheiros e aromas: nostálgico cheiro da glicínia, cheiro da flor de tília, cheiro do laranjal, cheiro do pomar. Cheiro das folhas de Outono, cheiro da hortelã acabada de regar, cheiro do muguet doce demais, forte demais, que só se podia respirar ao ar livre…”.

Guilherme d'Oliveira Martins