CULTURA HOJE
Sérgio Nazar David: de Garrett a uma poética de fogo lento
Publicou, em Portugal, O Século de Silvestre da Silva – vol. I – Estudos sobre Garrett, A. P. Lopes de Mendonça, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis (ensaio, Lisboa, Editora Prefácio, 2007) e O Século de Silvestre da Silva – vol. II – Estudos queirosianos (ensaio, Rio de Janeiro / 7Letras, 2007), tendo organizado uma excelente edição de Cartas de Amor à Viscondessa da Luz (Famalicão, Quasi Edições, 2007), de Almeida Garrett.
Nesta obra, de leitura obrigatória, não só o estudioso do autor de Frei Luís de Sousa actualiza a ortografia das cartas – fazendo os termos da época surgir na sua cor original –, como corrige transcrições defeituosas e decifra palavras. O Garrett que Sérgio Nazar David nos apresenta, na singular introdução, é um ser de «estranha inquietude», usando a expressão de Freud, analisado também segundo a psicanálise e a antropologia social, ou seja, à luz da perturbação interior, da culpabilização, do conflito entre amor e desejo sexual. É ele quem vê Rosa «com olhos da alma», adorada e anjo, e com ela mantém uma relação clandestina que terminará num irreparável desencontro que nem a iminênciada morte do escritor recomporá.
Membro da Equipa Garrett do Centro de Literatura Portuguesa (CLP), sob a orientação de Ofélia Paiva Monteiro (OPM), Sérgio Nazar David prepara agora a Correspondência Familiar do autor de Viagens na Minha Terra, com publicação prevista para 2011, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda [ler dossier na Colóquio/Letras (nº 174), disponível em Maio, dedicado à edição crítica desta última obra, organizada por OPM]. O volume inclui, ao todo, 105 cartas, 64 ao irmão Alexandre, 52 das quais inéditas, 40 à filha Maria Adelaide (onze inéditas) e uma outra (inédita também) à mulher Luísa Midosi.
É, no entanto, o poeta perplexo, apaixonado por Portugal e sua literatura, que trago a este espaço, aquele que reinventa, no quotidiano, o conteúdo da escrita, atribuindo-lhe, como escreveu Boris Pasternak a Rainer Maria Rilke1, em tempos diversos nomes diferentes. Que é da poesia se não desenha, a traços claro-escuros, uma a uma as coisas do mundo, uma cartografia da condição humana?
Sérgio Nazar publicou, até agora, dois livros de poesia: Onze Moedas de Chumbo (Rio de Janeiro, 7Letras, 2001) e A Primeira Pedra (Rio de Janeiro, 7Letras, 2006, nomeado para o Prémio Portugal Telecom 2007). Regra geral, trata-se de uma poesia elíptica a sua, de dimensão narrativa e grande apego a um quotidiano que a palavra torna onírico, como se o poema fosse laboratório e o modelo romanesco se transformasse em companhia no seu atelier de autor contaminado por uma cultura oitocentista.
Servem-lhe os versos para agudizar formulações mais vastas de interrogação interior, seguindo o autor um ritmo cuidado, tão lírico como, por vezes, áspero. Não existe o verbo no intervalo da batida, na tensão criada entre silêncio e som, abrindo-se o texto tanto à harmonia quanto à ruptura? Nos inéditos que se divulgam agora, do novo livro de Sérgio Nazar David, Tercetos Queimados, Portugal é personagem não só enquanto função emotiva, mas paisagem, pormenor autobiográfico ou pessoana deriva.
As dissonantes notas desta escrita de nostálgica celebração dão o mote a uma poesia/prosa subtil de suavidade, atravessada por um fogo lento, estanhado. Nesse sentido, podem ler-se os inéditos – nos quais o sentimento de ausência, de finura líquida, se vai densificando –, a partir de um sujeito poético que revela sinais da enevoada incompletude, de esmagamento do desejo, de uma breve existência entre a exaltação e uma força sombria.
Veja-se como a cultura portuguesa atravessa a seiva destes poemas.
Ana Marques Gastão
Inéditos de Sérgio Nazar David
1.
Não tenho poema. Tenho (quase ponho tremo)
já agora pouco para ti. A vírgula, o acento
inútil, tão pequeno, ainda sabe entretanto
a Amor. É estranho amar-te, ver-te atrasado
já agora pouco para ti. A vírgula, o acento
inútil, tão pequeno, ainda sabe entretanto
a Amor. É estranho amar-te, ver-te atrasado
num email de aniversário com palavras desiguais...
Tudo tão distante – balões que vão sonhando –
e estranho, amor, amar-te ainda. Tenho deixado tudo:
num velho caderno as notas de viagem de Berlim,
Tudo tão distante – balões que vão sonhando –
e estranho, amor, amar-te ainda. Tenho deixado tudo:
num velho caderno as notas de viagem de Berlim,
no ap de Lisboa os hieróglifos da tua mão
quando nevou, na pedra em que repouso
o fado de misérias. A coleção dos teus ditos
quando nevou, na pedra em que repouso
o fado de misérias. A coleção dos teus ditos
telegráficos (talvez ainda falte algum) segue
e até rio do castelo de cartas que compus.
Devagar empalidece a rosa em que dormíamos.
e até rio do castelo de cartas que compus.
Devagar empalidece a rosa em que dormíamos.
2.
Numa tarde, num café de Lisboa
(por instantes se pode fugir do tédio,
do absurdo desejo de sofrer), um livro
trouxe-me o que um dia eu quis
(por instantes se pode fugir do tédio,
do absurdo desejo de sofrer), um livro
trouxe-me o que um dia eu quis
e o corpo reteve (a alma não).
O difuso (ou parte incorpórea?)
dá-se em livro, agora, urgência
recoberta de cinza e espinho.
O difuso (ou parte incorpórea?)
dá-se em livro, agora, urgência
recoberta de cinza e espinho.
Haverá outro modo de tocá-lo
que não este, alheio à geografia
do poema? Quis para sempre
o livro e os três quartos de hora
que não este, alheio à geografia
do poema? Quis para sempre
o livro e os três quartos de hora
que passei, morto, lendo. Porém -
como à tarde na cidade ou dentro
do passado que relembro - vivo
em tudo às cegas, não entro em nada
como à tarde na cidade ou dentro
do passado que relembro - vivo
em tudo às cegas, não entro em nada
por completo. Agora, por exemplo,
me pergunto: por que me abro,
por que me entrego e nunca estou liberto?
me pergunto: por que me abro,
por que me entrego e nunca estou liberto?
3.
Queria agora dizer-te espera,
espera um pouco mais... Tendo
vivido à tua espera, vi-te entrar-me
num 27 de fevereiro, sexta-feira,
com um chinelo gasto, um short,
um maço de cigarros, poucas palavras,
nenhuma sorte e uns poucos gestos,
espera um pouco mais... Tendo
vivido à tua espera, vi-te entrar-me
num 27 de fevereiro, sexta-feira,
com um chinelo gasto, um short,
um maço de cigarros, poucas palavras,
nenhuma sorte e uns poucos gestos,
que mesmo o amor tratou de comer.
Naquela fria e leda madrugada,
depus jogos e armas: vinha de noites
antigas (não disse quais), mostrei-te
Naquela fria e leda madrugada,
depus jogos e armas: vinha de noites
antigas (não disse quais), mostrei-te
os óculos azuis (já não posso usá-los
como queria), disse-te ser um animal
que pouco pode com o som estrídulo
como queria), disse-te ser um animal
que pouco pode com o som estrídulo
dos verbos. Por mais finos, são,
com abstrusas derivas, grito engolido,
carne ultrajada, osso que salta do corpo
sem preparação. Teus braços foram-me
com abstrusas derivas, grito engolido,
carne ultrajada, osso que salta do corpo
sem preparação. Teus braços foram-me
um rio que sai de repente das pedras.
Hoje não quero ser nada senão aquele
que corria aos cafés de Lisboa a ler
mensagens telegráficas.
que corria aos cafés de Lisboa a ler
mensagens telegráficas.
Morri com
as tábuas que gravei lembrando-te
as tábuas que gravei lembrando-te
e ainda hoje daria o pouco que sou
por ver-te como eras:
rosa impura, que o tempo
macerou.
por ver-te como eras:
rosa impura, que o tempo
macerou.
4.
O rosto mais rubro
do silêncio era tua moeda e morada
(se já não estavas).
Com elas compus um verso livre
a dizer-te: "quando
vieres, seja dormindo." Que não te lembres
depois do que fizeste
comigo e das palavras que dizes enquanto
cruzas-me o corpo.
Quero entregar-me sonhando como
se fosse morto.
do silêncio era tua moeda e morada
(se já não estavas).
Com elas compus um verso livre
a dizer-te: "quando
vieres, seja dormindo." Que não te lembres
depois do que fizeste
comigo e das palavras que dizes enquanto
cruzas-me o corpo.
Quero entregar-me sonhando como
se fosse morto.
1 Correspondance à trois (Rilke, Pasternak, Tsvetaiëva), Paris, éd. Gallimard, 1983, p. 35; Correspondência a Três – Verão de 1926, Rainer Maria Rilke / Marina Tsvétaïeva / Boris Pasternak, Lisboa, Assírio & Alvim, trad. Armando Silva Carvalho, 2006).