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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CULTURA HOJE




Foto D.R. 

 

O jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos recebeu o Prémio Clube Literário do Porto, no valor de 25 mil euros, que visa "premiar o autor que mais criatividade teve no domínio da ficção". Trata-se do primeiro prémio, como romancista, que o jornalista recebeu. Na cerimónia de entrega do prémio - que já distinguiu Mário Cláudio, Baptista Bastos, Miguel Sousa Tavares e António Lobo Antunes -, coube ao reitor da Universidade Fernando Pessoa, Salvato Trigo, fazer a apresentação deste romance (da qual publicamos alguns excertos).
"Fúria divina", foi editado em Outubro passado e tem como tema de fundo o radicalismo islâmico e é um "thriller" que acompanha a aventura de Tomás Noronha, um professor da Universidade Nova de Lisboa, perito em criptanálise e línguas antigas.
José Rodrigues dos Santos explica que foi durante uma viagem ao Paquistão, em 2008, que teve a ideia para "Fúria Divina". "Sabendo que os paquistaneses estavam a 'exportar' a sua tecnologia de armas nucleares para outros países islâmicos e sabendo que os militares paquistaneses apoiavam a Al-Qaeda, desenvolvi a primeira linha de força do romance: e se a Al-Qaeda tiver a bomba atómica? Depois, apercebi-me de que teria de entrar na cabeça de um radical islâmico e pus-me a ler os textos islâmicos. Desenvolveu-se, assim, a segunda linha de força do romance: e se o Islão dos fundamentalistas é o verdadeiro Islão?".
 
«Deus do presente e do futuro»
 
Salvato Trigo
Reitor da Universidade Fernando Pessoa
 
(…)
9. Este novo livro de José Rodrigues dos Santos pertence, sem dúvida, à categoria do que a literatura consagra pela denominação de romance, e, mais uma vez, o autor serve-nos a dose certa do romanesco, temperada por uma escrita analítica ancorada na crónica que, enquanto jornalista, domina inteiramente naquela fronteira em que ela se assume como espécie narrativa de síntese entre o jornalismo e a literatura. O autor reconhece, como dizia Jacinto do Prado Coelho, que a literatura começa exactamente naquele instante em que termina o jornalismo, isto é, em que o facto (a matéria-prima da narrativa jornalística) se transforma em ficto (a matéria nuclear da ficção, da narrativa literária).
 
(...)
11. E porque o reconhece, serviu-nos, nesta longa narrativa de quase 600 páginas, factos, que jornalisticamente sabe tratar com a excelência do repórter, temporãmente revelado em teatros de guerras ou de catástrofes naturais, combinados, a preceito, com o romanesco amoroso, sem “happy end”, como o de Tomás Noronha com Rebecca, a agente americana da NEST, que, eternamente grata ao professor português especialista em criptografia e, por isso, herói-positivo na decifração do código que despoletaria a bomba nuclear da Al-Qaeda, fabricada e encriptada por Alberto Almeida, aliás, Ibn Taymiyyah, aliás Ahamed Barakah, eternamente grata, dizia, lhe deu, afinal, uma lição de vida, mostrando no beijo prolongado com a Anne, sua colega, que a gratidão não é suficiente para acordar Cupido.
 
12. De romanesco amoroso, apenas como motivo composicional literário, poderemos também falar, na relação filial de Ahmed com a mãe, mas já não da relação marital do senhor Barakah, seu pai, com sua mulher, e também não da fugaz relação marital de Ahmed com Adara, a bela jovem filha do comerciante Arif, para quem Ahmed angariava clientes; turistas (kafirun) nas ruas do Cairo, a troco de algumas piastras.
 
13. Adara, ainda que fugazmente, em Lisboa, para onde veio juntar-se ao marido que não amava, mas que o pai, na tradição islâmica, lhe escolheu, procura libertar-se da opressão dos princípios corânicos a que estava sujeita pela sua condição de mulher de um crente radical e fundamentalista religioso.
 
14. Não é, pois, na dimensão romanesca que assenta o valor e a importância deste livro. Para mim, este livro é sobretudo importante como texto, naquela acepção em que Eduardo Prado Coelho, a partir de Roland Barthes, o assumiu, quando escreveu: “ É texto tudo o que no discurso se desprende das condições normais de comunicação e significação, e funciona como uma clareira, uma zona de tréguas no interior da guerra das linguagens.”

15. Consagra-se Fúria Divina como texto, como clareira, como zona de tréguas no interior da guerra das linguagens, no cap. 62, quando Tomás Noronha convence o seu antigo aluno Ahmed a fornecer-lhe o código para desarmar a bomba e este, moribundo, depois de insistente pedido, lho fornece sob forma anagramática, embora convencido de que o tempo que restava não seria suficiente para o professor suspender a explosão.
 
(…)
17. “Fúria divina” era o nome do código da operação Nova Iorque, extractado do versículo 16 da sura 8 do Alcorão. Operação, todavia abortada, porque a vontade de Alá não era coincidente com a vontade de Bin Laden. Deus, para o ser verdadeiramente, não pode ser fonte de vida e seu carrasco, ao mesmo tempo.

18. A tradição pré-islâmica, aquela em que Maomé bebeu os ensinamentos para o Alcorão, ensina que “Alá, antes de tirar o mundo do nada, criou a Tábua e o Cálamo e este, apenas criado, escreveu na Tábua, por decreto de Alá, todo o futuro e quanto pode saber-se.”

19. Foi este Deus primevo que Tomás invocou e, afinal, revelou a Ahmed. Não o deus que alguns homens, arrogando-se gabriéis, usam para nos meter medo e, assim, se tornarem eles também deuses aos olhos dos que neles crêem, quando afinal, não passam de lobos como Plauto os caracterizou no axioma “homo homini lupus”.

20. É que, como escreveu Angelus Silesius, “ o olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que ele me vê”, não devendo, por isso, o entusiasmo, no sentido etimológico grego, de ter Deus em cada um de nós, de transportarmos o halo divino, ser descontrolado e descambar em paixão, porque, como sabiamente escreveu Hobbes, “ a única paixão da minha vida foi o medo”.
 
(…)
33. A um leitor menos atento poderá parecer que o autor assunta, paralela e diferentemente, duas histórias dentro do romance, cujas personagens centrais seriam Tomás Noronha, da ocidental, e Ahmed Barakah, da islâmica. Como disse atrás, Tomás Noronha é, de facto, o herói-positivo deste romance-crónica, ou deste ensaio literário ou deste “roman fleuve”, como o poderíamos classificar com maior rigor técnico-literário. Ahmed, esse, é o herói-negativo, o pícaro, que funciona como o ponto de confluência das disputas das linguagens, a ocidental e a islâmica, ou como a lançadeira do tear que vai tecendo o texto.
 
(...)
37. Concluiria, dizendo que, se a qualidade dum romance pode ser determinada pela capacidade que o seu autor tem para manter o “leitor colado à história”, então, estamos, por isso e sem qualquer dúvida, em presença de um romance de qualidade.

38. Este livro de José Rodrigues dos Santos apresenta-nos, é preciso dizê-lo, um autor experimentado nas técnicas narrativas e no domínio perfeito da função fática da linguagem.
 
39. Fúria Divina poderia parecer um título pouco conveniente para um romance publicado em cima da borrasca de Caim e dos acintes alimentados por picardias mais políticas do que teológicas, mais ideológicas do que fideístas.

40. Todavia, quando tiverem ocasião de ler o livro, que aqui me permito recomendar também como uma excelente crónica literária e jornalística de indubitável interesse social e de inegável actualidade doutrinária, então, verificarão que o oxímoro, que a nossa relação sintáctica e semântica com Deus ou com os deuses surpreenderia no título, não é, de facto, um oxímoro, porque, em rigor, não existe contradição fundante entre os termos.
 
41. Este livro, para além de outros muitos méritos que aqui o tempo não me deixou dizer, tem o condão de nos fazer pensar na nossa própria condição humana e na forma como a condicionamos no modo como nos relacionamos com Deus, como crentes ou como agnósticos.
 
42. Por mim, a leitura prazeirosa deste livro, motivou-me à releitura de O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade, para relembrar que, afinal, nós, os humanos, somos a epifania da dimensão sagrada que a vida inteligente nos garante para um encontro virtual com Deus, com o nosso Deus ou com os nossos deuses.
 

in As Artes entre As Letras (edição n.º 17, 13/01/2010)