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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS


de 28 de Junho a 4 de Julho de 2010

 

 

 
"Silêncio"
de Shusaku Endo (1923-1996) é uma obras-prima da literatura contemporânea (tradução de José David Antunes, D. Quixote, 1990). Intitulado originalmente “Chinmoku” (1966), este livro teve, desde a sua publicação, um enorme sucesso, suscitando comentários contraditórios. O autor trata de um tema de grande complexidade, a apostasia, especialmente se pensarmos na sociedade japonesa do século XVII. Partindo da experiência de um jesuíta português, Cristóvão Ferreira, prestigiado teólogo, Endo narra uma aventura espiritual ligada às conversões cristãs no Japão e às perseguições que se lhes sucederam. Esta apostasia ocorreu no período das mais violentas perseguições das autoridades japonesas para pôr fim a um processo considerado perigoso. Pretendiam, afinal, estirpar o desenvolvimento de uma influência estranha, que ameaçava as tradições ancestrais.
 

 

UM ESCRITOR SINGULAR
Shusaku Endo nasceu na cidade de Tóquio em 1923, viveu a infância na Manchúria, tendo-se tornado católico aos doze anos, por influência familiar, mais precisamente de sua mãe, com quem viveu depois desta se separar do pai, já em Kobe. O futuro escritor licenciou-se em Literatura Francesa pela Universidade de Keio, tendo estudado na Europa, em Lyon, com uma bolsa do Governo do Japão. A sua obra é marcada pelas características especiais da sua identidade pessoal – pertença a uma religião minoritária e de influência exterior, o contacto com a doença e com a vida hospitalar, além dos intensos e dramáticos dilemas morais e religiosos. Neste sentido, aliás, Shusako Endo é muitas vezes comparado a Graham Greene, que tinha uma grande admiração pela obra do romancista japonês. “Silêncio” é considerado o seu livro de maior originalidade e intensidade e mais significativo, o que levou a ser distinguido com o prestigioso Prémio Tanizaki (1966). “A Vida de Jesus” (1973), “O Samurai” (1980) e “Escândalo” (1986) constituem outras obras que permitiram a afirmação de Endo como um grande romancista mundial.
 

UMA INFORMAÇÃO DRAMÁTICA
Tudo começa com uma informação dramática e inesperada: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus em Portugal, Cristóvão Ferreira submetido à tortura da fossa em Nagasáqui, apostatara. Missionário experiente, credor da maior estima, Cristóvão Ferreira já vivia no Japão há trinta e três anos. Ocupava aí o cargo de superior provincial e era tido como um exemplo inspirador tanto de clérigos como de leigos”… As cartas que, entretanto, mandara da região de Kamigata, onde se encontrava, revelavam uma grande determinação e coragem por parte do padre jesuíta. Essas missivas não faziam suspeitar ou prever qualquer tendência no sentido da negação. É verdade que a partir de 1587, sob a orientação do regente Hideyoshi, a perseguição ao Cristianismo se tornou violenta e persistente, no entanto pouco se sabia sobre os procedimentos concretos adoptados para extirpar a influência cristã e ninguém estava em condições de prever o sentido e alcance das medidas e dos seus efeitos. “Silêncio” trata das informações obtidas pelos Padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe sobre o acontecimento passado com o Padre Ferreira. O romance é constituído por cartas de Sebastião Rodrigues e por outras informações complementares, que nos levam aos estranhos acontecimentos que levaram à apostasia do mais proeminente dos missionários jesuítas no Japão… Seguindo um ritmo que prende o leitor de princípio a fim, encontramos uma minuciosa narrativa que nos permite compreender a difícil relação entre culturas muito distantes e sobretudo o conflito ético pessoal e íntimo que pôde ser usado e manipulado contra o Cristianismo por parte das autoridades do Japão no século XVII.
 

CONFLITO PESSOAL, COM RESULTADOS EXTERNOS
Cristóvão Ferreira é retratado como alguém obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção tremenda em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses obrigados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente também responsável. E neste ponto não pode deixar de lembrar a meditação angustiosa sobre o porquê da missão de Judas, porquê haver um apóstolo condenado à partida pelo facto de lhe caber a tarefa necessária de entregar o Mestre por trinta dinheiros. Quantos dramas pessoais repetem esse exemplo evangélico? E Sebastião Rodrigues é levado ao caminho de Cristóvão Ferreira, repetindo-o. «O padre abanou freneticamente a cabeça, tapando os ouvidos com os dedos. Mas tanto a voz de Ferreira como o estertor dos cristãos se filtravam por eles impiedosamente, mesmo tapados. ‘Basta, Senhor, basta! É agora o momento de quebrares o silêncio. Já não te podes calar por mais tempo. Mostra que és a justiça, a bondade, o amor por excelência. Tens de dizer alguma coisa para que o mundo saiba que existes’». Esse silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte, sem saber exactamente onde estão um e o outro. A pressão é máxima, desde a culpa à dúvida, do silêncio ao amor. A apostasia concretizava-se pisando a imagem do próprio Cristo, representado num “fumie”. “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. E Ferreira dirá ao ouvido do novo apóstata: “Você vai agora realizar o mais doloroso acto de amor de que jamais alguém foi capaz”. E é como se fosse uma formalidade, ou como se o próprio Cristo dissesse: “Pisa-me! Eu vim ao mundo para ser pisado pelos homens! Carreguei com a cruz para partilhar da dor que vos é comum…”. E afinal: “Quando o padre assentou o pé no ‘fumie’ nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou”…

 
UMA REFLEXÃO INCÓMODA

«Durante muito tempo (diz Endo) eu senti-me atraído por um niilismo total, e quando, por fim, dei conta do vazio apavorante que nele havia, fui vencido mais uma vez pela grandeza da fé católica. O problema da reconciliação do Catolicismo com o meu sangue japonês… ensinou-me uma coisa: que o homem japonês tem de absorver o Cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs. Que resistências, que angústias e sofrimentos tem custado esse esforço! Todavia é impossível resistir-lhe fechando os olhos às dificuldades. Não há dúvida: esta é a cruz peculiar reservada por Deus aos japoneses”. O tema não é puramente intelectual, ainda que o romancista sempre tenha insistido em que a sua reflexão não era a de um teólogo mas de um escritor de narrativas. Trata-se de um drama existencial que é tratado magistralmente, que não deve apenas situar-se num momento histórico, mas que se projecta para os dias de hoje e para uma tensão civilizacional, entre as tradições milenares do Japão, o culto dos antepassados e o sincretismo religioso há muito enraizado na cultura japonesa. Daí que este romance tenha sido rodeado de escândalo entre os velhos cristãos do império do Sol Nascente. William Johnston, no prefácio ao livro, salienta que o problema de Endo não é apenas japonês, põe-se também nas sociedades ocidentais contemporâneas: “se os ouvidos do Japão estão ansiosos por surpreender um novo motivo no novo concerto, não menos atentos estão os do Ocidente, em busca de novos acordes consonantes com as sensibilidades nascentes”. Daí que Endo seja muito mais universal do que possa parecer à primeira vista. E se Graham Greene falou sobretudo da tensão entre o Cristianismo e uma sociedade conformista no ocidente, o romancista japonês equaciona a contradição a partir da distância cultural entre o judeo-cristianismo e o Japão. O Professor Yanaibara afirma que não foi o “pântano japonês” que venceu os apóstatas. “Os mártires ouviram a voz de Cristo, mas para Ferreira e Rodrigues essa voz não se fizera ouvir. Não significará isto que esses padres já não tinham fé desde o princípio? Por isso, a luta de Rodrigues com Deus não aparece descrita”. E vemos, no final, que os apóstatas continuam a viver, agora sob um nome budista e embrenhados no ambiente do Japão. O debate é difícil e de conclusões incertas, e é o autor que está bem presente nos dilemas e angústias provenientes dos confins da História, de qualquer modo, uma coisa é insofismável, Shusaku Endo é um dos escritores mais lidos no Japão, mesmo depois da sua morte, e tal só é possível graças ao interesse manifestado por pessoas de diferentes horizontes pelo tema e pelo modo como é abordado.

Guilherme d'Oliveira Martins

 Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

A VIDA DOS LIVROS


de 21 a 27 de Junho de 2010

"Os Dias e os Anos – Diário, 1970-1993" (D. Quixote, 2010) de Marcello Duarte Mathias é um livro que nos traz a recordação de um período de transição, entre 1970 e 1993, em que Portugal viveu a preparação de uma súbita mudança de século e tudo o que lhe seguiu, ligando o 25 de Abril e a queda do muro de Berlim. Dir-se-á hoje que tudo era, mais ou menos, previsível. No entanto, é fundamental recordar como era difícil antever a circunstância exacta em que tudo iria mudar e como. O tempo tem sempre essa qualidade única que permite tornar natural aquilo que visto por antecipação é o mais estanho que se possa imaginar…
 

 
MEMÓRIAS DE VIDA VIVIDA

As memórias não servem para dar chaves para a História, mas para nos revelarem as circunstâncias, os ambientes e as tendências. Assim é com Marcello Duarte Mathias (MDM), um autor persistente e arguto, que usa o talento para nos fazer ver o mundo a partir do seu exigente e requintado juízo. Os diários de Marcello começam por ter um magnífico título comum, que o escritor foi buscar ao conto «A Terceira Margem do Rio» de João Guimarães Rosa, «No Devagar Depressa dos Tempos». Depois do primeiro volume correspondente aos anos 1962-1969 e dos relativos à Índia (1993-1997) e a Paris (2001-2003) temos agora o segundo volume da ordem cronológica intitulado «Os Dias e os Anos – Diário, 1970-1993» (D. Quixote, 2010). Uma noite destas, quando o comecei a ler, tive dificuldade em parar, como aliás costuma acontecer com as melhores obras do género, que fazem jus ao ditado popular de que as palavras são como as cerejas. Francisco Seixas da Costa já me tinha avisado disso no seu blogue sacrossanto. E neste tempo de cerejas, rapidamente percebi que estas memórias são um curioso retrato da transição da sociedade portuguesa, mesmo para quem seguiu, de Brasília, placidamente e à distância os acontecimento de 1974. Que salto enorme se nota desde Augusto de Castro, vindo da pré-história (mesmo para os que lemos «O Fumo do Meu Cigarro»), rindo-se daqueles documentos amontoados na cave do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que ninguém lê ou lerá, até à imersão total na construção europeia, mesmo para um diplomata que procura sempre matizar as análises do tempo e dos acontecimentos com uma racionalidade crítica tantas vezes desarmante. E essa atitude é tão evidente que MDM chega a enganar os seus críticos sobre a sua atitude relativamente à cultura, à criação e à vida. Raymond Aron, que tantas vezes encontramos, não é tanto o maître-à-penser incontestável, mas uma das referências, ao lado de outras bem mais inesperadas e inconformistas. Como não lembrar «Mas é no rosto e no porte altivo do rosto» (1983) ou a admiração recorrente e a procura incessante de novos motivos de interesse em relação a Albert Camus?
 

PAÍS DIFÍCIL DE ENTENDER
O que se nota neste longo e impressivo período? Um país “tão difícil de entender e tão grande no seu mistério”. Um Portugal que, em 24 horas, “mudou de século”, no dia 25 de Abril de 1974. Terra onde, ainda em 1983, a Estrada da Beira era «qualquer coisa entre a odisseia de Serpa Pinto e o rali Paris Dakar»… «Nós passamos séculos a fugir de nós mesmos (diz Eduardo Lourenço, expressamente citado), enquanto apenas portugueses. Fuga simultaneamente estelar e criadora que não permitiu nunca que nos encontrássemos connosco mesmos. Fomos sempre outros»… Afinal, para Keyserling, o português é qualquer coisa de eternamente inacabado. E o memorialista afirma ainda que «o português é dos raros povos que ainda não perdeu a infância». E a propósito de António José Saraiva e do grande enigma deixado pela geração de 1870 (Antero, Eça, Oliveira Martins), que nos leva a interrogarmo-nos sobre o porquê das angústias desses homens que passaram por derrotistas, quando sempre combateram o fatalismo e os «sebastianismos», MDM diz certeira e simplesmente o que costuma ser muito difícil de explicar. Trata-se de uma verdade bem mais comezinha do que pode julgar-se à primeira vista: «À partida o que a todos os animava era o propósito sério de regenerar a vida portuguesa e de a libertar da tutela inglesa (‘A revolução só pode ser uma revolução moral’ dirá Antero). Apontar os podres, estigmatizar a intriga e o marasmo em que o país se comprazia, por entre a sífilis de o analfabetismo, a tuberculose e a miséria. Numa palavra, acertar o relógio – nem que fosse à custa de uma valentes bengaladas. Era uma missão de homens de bem antes de ser um projecto revolucionário, uma mensagem de filosofia política e não um programa de governo, uma estética de acção bem mais que uma doutrina». Não precisaria de ser dito mais… Oliveira Martins, longamente citado, lido, relido e adaptado (como no filme “Oxalá” de António Pedro Vasconcelos), faz o nosso autor afirmar lapidarmente: «Quando uma nação se condena pela boca de seus próprios filhos, é difícil, senão impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva». Quantas vezes esquecemos isto mesmo?
 

RECEPTIVO A TUDO, SEM NADA CONCEDER
Ao lermos vertiginosamente as recordações, os comentários, as apreciações, compreendemos que MDM afirme: «as minhas emoções contêm o que de mais pessoal existe na minha pessoa». É um céptico contido e sereno, que diz: «Torna-te receptivo a tudo sem nada concederes. E que a prática do cepticismo não seja o teu conformismo». Apesar da moderação, o autor não perde a oportunidade de romper os limites do real, para melhor o entender: «Cruzei-me esta manhã na Baixa do Sapateiro (em Salvador) com um velho amigo a quem dei um grande e comovido abraço – o Quincas Berro d’Água… - mas ele ia tão borracho que nem sequer me reconheceu». Encontramos muitas referências pessoais, eis algumas: Adelino Amaro da Costa («a política é o seu oxigénio e o seu horizonte», corre contra o tempo), Ernâni Rodrigues Lopes («o contacto é imediato e o homem é descerimonioso», com vivacidade e capacidade de ver o conjunto das coisas), Gilberto Freyre («é um alfinete, fino de palavras e de expressão»), António Alçada Baptista (apesar das reservas aos romances, é preciso quanto à «Peregrinação»: «ficará como um dos melhores testemunhos da geração dos anos Quarenta e Cinquenta» – «sem a acrimónia dos chamados intelectuais revirallhistas, antes com bonomia e ternura» ou Eduardo Lourenço («fremente de inteligência, recorda coisas do seu tempo de Coimbra. Há nele uma boa disposição e uma graça natural cuja espontaneidade não transparece de todo em todo naquilo que escreve, e é pena»).
 

A SOMBRA DO PAI EMBAIXADOR
A cada passo nota-se a sombra do Pai, Embaixador, como pessoa, como figura tutelar da família, mas também como um homem de vários talentos, e não só diplomáticos, como o de misteriosíssimo Pablo La Noche, de «Lusco-Fusco»… Em Benfeita, a 15 de Agosto de 1983 em dia de aniversário : «É aqui, e a partir daqui, que nos damos conta do verdadeiro prodígio de vontade, inteligência e tacto que foi a vida do Pai. Gosto que o Nuno e o Marcelito participem nestas coisas, pois parte de mim também está aqui». A emoção do tantas vezes frio intérprete dos acontecimentos vem à tona, em especial no tempo da queda do muro de Berlim, em que o entusiasmo não se contém, a partir do Porto de Abrigo da Abuxarda, em vésperas de Natal (1989): «A liberdade a nascer e a triunfar em toda a Europa, a verdadeira Europa a ressurgir, enfim!».

Guilherme d'Oliveira Martins

José Saramago (1922-2010)

 

O escritor português e Prémio Nobel da Literatura em 1998, José Saramago, morreu hoje aos 87 anos em Lanzarote.
O autor português encontrava-se doente mas em estado "estacionário", mas a situação agravou-se, explicou o seu editor, Zeferino Coelho.

 

José Saramago é um grande escritor universal.
"Memorial do Convento" e "O ano da morte de Ricardo Reis" são grandes obras da língua portuguesa e da literatura contemporânea.
Era sócio do CNC e demonstrou-nos sempre a sua amizade!

BOLSAS JOVENS CRIADORES

                                                    

 

BOLSAS JOVENS CRIADORES 2010

 

Está aberto concurso para atribuição de Bolsas de criação e/ou formação nas áreas de Literatura, Música, Artes do Espectáculo e Artes Visuais, para jovens de nacionalidade portuguesa até aos 30 anos, que tenham já apresentado publicamente um trabalho na área em que concorrem.
 

Trata-se de uma iniciativa apoiada pelo Instituto Português da Juventude que tem como objectivo estimular o trabalho criativo dos jovens nas diversas áreas das Artes e das Letras, competindo ao Centro Nacional de Cultura a gestão do processo de selecção e acompanhamento dos bolseiros.
 

O Júri de selecção será composto por uma Comissão Especializada para cada uma das quatro áreas – constituída por elementos de reconhecida projecção na área contemplada – e uma Comissão Geral constituída por representantes de orgãos de comunicação social.
 

O prazo de candidatura termina no dia 30 de Julho de 2010.

 
O Regulamento está disponível em www.cnc.pt
ou na recepção do Centro Nacional de Cultura

PORTUGAL EUROPEU – FUTURO EXIGENTE

 

25 Anos depois da adesão de Portugal à União Europeia exige-se mais audácia europeia. Guilherme d’Oliveira Martins interveio no Mosteiro dos Jerónimos com António Vitorino sobre a cidadania europeia, através da intervenção que se transcreve.

 

AGORA DECIDE-SE O FUTURO EUROPEU
por Guilherme d’Oliveira Martins

 

Á memória do Professor António de Sousa Franco

 

Jürgen Habermas, num texto muito importante publicado há alguns dias no “Die Zeit”, dizia que “o facto de a partir de agora os contribuintes da zona Euro garantirem solidariamente os riscos orçamentais do resto dos Estados-membros supõe uma mudança de paradigma. Tomou-se consciência assim de um problema reprimido há muito tempo. A crise financeira amplificada pela crise de Estado traz-nos a recordação dos erros originais de uma União Política incompleta, que ficou a meio caminho”. Estamos, na União Europeia, perante uma questão de sobrevivência e perante a necessidade premente de um “governo económico” da União – o que obriga a pôr o Tratado de Lisboa a funcionar. De facto, essa ideia de coordenação soma-se à noção de União Política e não pode confundir-se com qualquer noção de Super Estado europeu. Do que falamos é da necessidade de audácia na condução dos destinos comuns e da superação das vulnerabilidades inerentes à fragmentação ou à diluição do poder europeu. E o certo é que “governo económico” nada tem a ver com uniformização de políticas, mas com a exigência de articulação e de definição de interesses vitais comuns.

 

Na Europa temos duas legitimidades: dos Estados e dos cidadãos. A construção da União só poderá ter sucesso se garantir o equilíbrio entre a afirmação da democracia supranacional e a consolidação das democracias nacionais, através de uma complementaridade efectiva entre a consciência cívica nacional e a consciência cívica europeia. Uma e a outra têm de ir a par. Daí a necessidade de assumirmos a subsidiariedade com todas as suas consequências. Por exemplo, quando falamos das políticas orçamentais nacionais e de consentimento dos contribuintes, temos de lembrar que as nossas democracias ocidentais se baseiam na tradição das revoluções inglesa, americana e francesa e na herança de Locke, Montesquieu, dos “Federalist Papers” ou de Tocqueville. Os cidadãos devem ter representação e têm de ter voz activa. Daí dever falar-se hoje de um “consentimento complexo” que tem de ser construído a partir da “Carta Constitucional Europeia” (o Tratado de Lisboa e o acervo que o acompanha).

 

O reforço dos parlamentos nacionais e a necessidade de articulação com o Parlamento Europeu e órgãos comunitários está na ordem do dia. Os avanços do Tratado de Lisboa obrigam a que os Parlamentos nacionais intervenham mais activamente, ao abrigo do novo sistema de controlo da subsidiariedade. Esse acompanhamento e a colocação de reservas, quando for caso disso, torna-se crucial, devendo os cidadãos perceber que esse controlo é efectivo e pode interromper o curso de iniciativas que se revelem inconvenientes ou desadequadas. Não se trata, pois, de discutir se é Bruxelas que define critérios de disciplina orçamental impostos aos Estados-membros, mas de construir um processo democrático que leve à definição de objectivos e interesses comuns da União Económica e Monetária – em que a estabilidade de preços tem de se ligar à criação de empregos e à produção de riqueza e em que moeda e economia real, concorrência e coesão, competitividade e justiça se liguem efectivamente. As ideias de soberania originária, de partilha de soberanias e de legitimidade dos cidadãos têm de se articular. Responsabilidade, representação e participação são questões que se põem hoje no Estado-nação, mas também na democracia supranacional. Habermas, no citado texto, fala de um sintoma político de retrocesso sentido na Alemanha, a propósito das sentenças do Tribunal Constitucional sobre os Tratados de Maastricht e de Lisboa, “que se aferram a superados dogmatismos jurídicos relativos à soberania”. E o filósofo fala mesmo, na opinião pública, de uma mentalidade de “ensimesmamento”, através de um “curtoprazismo” que prejudica todos.

 

Se é necessário que haja uma coordenação das prioridades das políticas económicas nacionais, importa que a subsidiariedade funcione, e que as pessoas compreendam que a democracia precisa delas, como cidadãos dos Estados e como cidadãos europeus. A coragem europeia tem de começar nos governos nacionais contra as tentações da fragmentação e do proteccionismo. De facto, o processo de legitimação das decisões da União Europeia não se joga apenas no plano europeu, mas também nacionalmente. Falta a audácia da orientação: urge dizer que há interesses comuns e interesses particulares, e não podemos confundi-los. O “governo económico” é fundamental para que haja competitividade, criação, investimento reprodutivo e mais desenvolvimento humano. E J.Habermas afirma que “em épocas de crise, até os indivíduos podem fazer história”, mas diz também que “o retrato demoscópico da opinião das pessoas (as sondagens) não é o mesmo que a formação de uma vontade democrática deliberativa”. No entanto, até agora, por exemplo nos referendos, tem prevalecido a força dos temas nacionais e das questões particulares, mais do que a perspectiva europeia. Como ultrapassar esta limitação? É a democracia, ela mesma, que está em causa. Cidadãos alemães ou portugueses como poderão pôr a tónica nos interesses próprios e comuns de largo prazo? A lógica nacional (que não deve ser esquecida) será sempre insuficiente para ultrapassar a crise. Vista de fora, a União Europa será tanto mais frágil quanto mais dificuldade tiver em definir objectivos comuns. “Com um pouco de nervo político (diz ainda o pensador alemão), a crise da moeda comum pode acabar por produzir aquilo que alguns esperavam em tempos da política externa comum – a consciência, por cima das fronteiras nacionais, de compartilhar um destino comum europeu”.

A VIDA DOS LIVROS

 

 


de 14 a 20 de Junho de 2010

Há cinco anos, deixou-nos Eugénio de Andrade (1923-2005), poeta da transparência e da compreensão do quotidiano, autor de obra vasta, entre a qual se destaca: “Ofício de Paciência”, 1994; “O Sal da Língua”, 1995; “Pequeno Formato”, 1997; “Os Lugares do Lume”, 1998; “Os Sulcos da Sede”, 2001. Hoje recordamo-lo sentidamente.


Eugénio de Andrade, por José Rodrigues, 1977.

 

EUGÉNIO DE ANDRADE E A CIDADE DO PORTO
O Porto é uma cidade que há muito sinto como minha e se isso acontece, tal deve-se à minha ancestralidade, mas muito a Eugénio de Andrade e ao que a sua escrita e a sua sensibilidade me ensinaram a amar a única cidade-estado que houve em Portugal, no dizer de Jaime Cortesão. E se há referências indeléveis que encontramos na Cidade Invicta, as mais marcantes, disse-o o poeta, melhor do que ninguém, é essa trilogia mágica, que liga Fernão Lopes, Garrett e Camilo. E como poderemos ser mais portuguesmente fiéis à História e à alma da pátria? «A grande trindade poética que lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto – Fernão Lopes, Garrett e Camilo – leva fatalmente à cidade uma pessoal visão de mundo, o seu génio próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garrett irónico, pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano, Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garrett parte, dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas pedras, bem pouco transparente, como se vê. Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a propósito».
 

UMA CIDADE HERÓICA, DRAMÁTICA E SENTIMENTAL
E qual a força que Eugénio de Andrade usa para tornar a cidade ainda mais heróica, dramática e sentimental? Apenas a da interpretação, a de usar os sentidos para apreender a força das coisas e das pessoas. Por um momento, percebemos, como através de “Douro, Faina Fluvial” mas também através António Cruz em “O Pintor e a Cidade” que a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. A cidade dos “Altos Infantes” e dessa plêiade extraordinária de portugueses de boa cepa, abertos, livres, criativos, emancipadores. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de Outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real».
 

UM RIO QUE MARCA A CIDADE
O rio marca a cidade, não podemos compreendê-la, nem compreender-nos, sem essa ligação íntima entre o Douro e o Porto. Daqui houve nome Portugal – e a afirmação não é de somenos – é fundamental, já que as qualidades do Porto são naturalmente assumidas em relação ao todo nacional. E temos de ouvir o poeta: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer». Torna-se necessário, no fundo, entender a força das palavras. E Eugénio marcou sempre pelo timbre do dizer, pela coerência, pela força de clamar entre as pessoas. As palavras marcam a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares. Continuemos, pois, a ouvi-lo: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / - eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar, como procura do essencial: «Colhe todo o oiro»: «Colhe todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia»? Eugénio de Andrade diz-nos exactamente o que está em causa na Arte Poética. Aí está a tal coerência entre o ser e o dizer, entre o proclamar e o agir. Talante de bem fazer – na expressão do Infante. Mas aqui o talante é do poeta incansável, empenhado, atento, de olhos bem abertos. «O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem». E é o poeta que clarifica, ele mesmo: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa "cantar no suplício" é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a S. João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Bay a William Blake, de Bashô a Kavafis, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema». A dignidade liga-se à vida e às pessoas, na sublimidade da palavra!

 

BREVE ROTEIRO
Eugénio de Andrade é o pseudónimo de José Fontinhas, que nasceu no Fundão, na Póvoa das Atalaia, tendo vindo para Lisboa com dez anos, com a mãe. Foi aluno do Liceu Passos Manuel e da Escola Machado de Castro, tendo começado a escrever poesia em 1936. Em 1943 parte para Coimbra, onde volta depois de cumprir o serviço militar obrigatório. É o tempo em que se relaciona com Miguel Torga e Eduardo Lourenço. É funcionário público, em 1947, exercendo funções de inspector administrativo no Ministério da Saúde. Três anos depois, fixa-se no Porto, onde mora na Rua Duque de Palmela, 111, morada celebrizada pelo poema com esse mesmo título: «Pelo lado dos lódãos ao fim do dia / depressa se chega agora no verão / à pedra viva do silêncio / onde o pólen das palavras se desprende / e dança dança dança até ao rio». Aí habitará até que se muda, em 1994 para o Passeio Alegre, na Foz do Douro. Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Prémio D. Dinis (1988), Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989) e Prémio Camões (2001). Em Setembro de 2003 a sua obra “Os sulcos da sede” foi distinguida com o prémio de poesia do Pen Clube. Morreu na sua casa da Foz a 13 de Junho de 2005, faz agora cinco anos. E recordemos o seu poema “O Sal da Língua”: «Escuta, escuta: tenho ainda / uma coisa a dizer. / Não é importante, eu sei, não vai / salvar o mundo, não mudará / a vida de ninguém - mas quem / é hoje capaz de salvar o mundo / ou apenas mudar o sentido / da vida de alguém? / Escuta-me, não te demoro. / É coisa pouca, como a chuvinha /que vem vindo devagar. / São três, quatro palavras, pouco mais. / Palavras que te quero confiar. / Para que não se extinga o seu lume, /o seu lume breve. / Palavras que muito amei, / que talvez ame ainda. / Elas são a casa, o sal da língua». 

Guilherme d'Oliveira Martins

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Morreu o escritor António Manuel Couto Viana

 


Foto: C.M.Viana do Castelo

O escritor António Manuel Couto Viana morreu esta tarde aos 87 anos no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, disse à Lusa fonte próxima da família.
O escritor, que residia há cerca de dez anos na Casa do Artista, em Lisboa, foi internado naquele hospital “nos últimos dias, devido a problemas num pé que se agravaram, vindo a falecer”, disse a mesma fonte.
 

O último livro de António Manuel Couto Viana, poeta, contista, ensaísta, actor, dramaturgo, encenador e figurinista, foi a poesia de “Ainda não”, com poemas autobiográficos, lançado em Abril. O volume de contos pícaros com o título “O que é que eu tenho Maria Arnalda?” foi editado em Setembro de 2009.
 

Em tempos mestre de cena do Teatro S. Carlos, Couto Viana pertenceu ao grupo Távola Redonda e esteve ligado à formação de companhias de teatro, designadamente o grupo Gerifalto e o Teatro da Mocidade.

 
Por intermédio de David Mourão-Ferreira estreou-se como actor e figurinista em 1946 no Teatro Estúdio do Salitre, em Lisboa, mas já anteriormente tinha dado os primeiros passos no teatro de família, o Sá de Miranda, em Viana do Castelo, cidade onde nasceu.
 

Em 1948, estreou-se na poesia com o livro “O avestruz lírico”, tendo desde então publicado vários títulos.
 

Entre 1950 e 1954 dirigiu, com David Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo e Alberto de Lacerda, os cadernos de poesia Távola Redonda, e mais tarde a revista cultural Graal, tendo ainda feito parte da redação da revista Tempo Presente (1959-1961).

 

Couto Viana integrou também a direcção do Teatro de Ensaio (Teatro Monumental) e da Companhia Nacional de Teatro.
 

Encenou óperas para o Círculo Portuense de Ópera e Companhia Portuguesa de Ópera e foi orientador artístico da Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra.
 

A Banda da Grã Cruz de Mérito, Grão-Cruz da Falange Galega, Grande Oficialato da Ordem do Infante D. Henrique e a Medalha de Mérito Cultural da Cidade de Viana do Castelo foram algumas das condecorações que o escritor recebeu ao longo da vida.
 

Ao longo da sua carreira foi distinguido com vários prémios literários, entre os quais o Prémio Antero de Quental, Prémio Nacional de Poesia, Prémio Fundação Oriente e Prémio Academia das Ciências de Lisboa. 
 

Conselheiro do Conselho de Leitura da Fundação Gulbenkian, Couto Viana encontrava-se a escrever a história da Companhia Nacional de Teatro, de que foi empresário entre 1961 e 1967, disse à Lusa em Setembro de 2009.

in Público | 8 de Junho de 2010

A VIDA DOS LIVROS


de 7 a 13 de Junho de 2010

 

“Antero de Quental em Vila do Conde” de Luís de Magalhães, com recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins (Tinta da China, 2010) permite-nos mergulhar de pleno no mundo fantástico de Antero de Quental e dos seus amigos. O jovem Luís de Magalhães que secretariou a Liga Patriótica do Norte, presidida por Antero é o melhor cicerone para nos fazer entrar nessa mundo exclusivo, de uma plêiade de génios que teve a coragem de pensar Portugal, não numa lógica fatalista e derrotista, mas com os olhos postos no futuro, acreditando em que seria possível mobilizar vontades, fazendo país sair da modorra e do conformismo. É difícil conceber um tal programa? Eis por que razão este livro deve ser lido.


LEMBRAR OS JACARANDÁS
Com dez dias de atraso, os jacarandás de Lisboa estão cobertos de flores lilazes. Este ano a floração começou tímida, mas já está pujante e é fantástica a cidade coberta de flores, que fazem recordar o Brasil e o idioma tupi guarani. A vida faz-se destas pequenas preciosidades. E a verdade é que não pode haver Pentecostes na capital sem a beleza extraordinária dos jacarandás. E se falo de preciosidades e de Pentecostes, sou levado, quase naturalmente à açorianidade e a Antero de Quental. De facto, acaba de sair um pequeno livro que nos prende de princípio a fim e que é um conjunto de testemunhos da autoria de alguém que conheceu como ninguém a chamada «geração de setenta», de quem nos deu uma lembrança viva – de que não podemos prescindir. Entremos então neste «Antero de Quental em Vila da Conde» de Luís de Magalhães, com recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins, que reúne diversos textos que Luís de Magalhães (1859-1935) escreveu em recordação de seu amigo e mestre Antero de Quental. Magalhães, como bem sabemos, era filho de José Estêvão, o grande tribuno e herói do liberalismo, grande amigo de Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e Antero. Em meados dos anos oitenta, na cidade do Porto, o jovem Luís tornou-se um dos entusiastas da “Vida Nova”, entrando na política pela mão do escritor do «Portugal Contemporâneo». Esteve ao lado de João Franco (na derradeira tentativa de salvar a governação, que infelizmente apenas se ficou pela intenção e pela incapacidade de gerar consensos duradouros) e depois da queda da Monarquia conspirou para a sua restauração, num gesto quixotesco, sendo encarcerado na Cadeia da Relação do Porto (a mesma em que esteve Camilo, que foi visitado pelo próprio Rei, D. Pedro V) até ser amnistiado, após uma defesa determinada, amiga e inflamada feita por Guerra Junqueiro.
 

A QUINTA DO MOSTEIRO
A residência de Luís de Magalhães na Quinta do Mosteiro, em Moreira da Maia, eternizada na «Correspondência de Fradique Mendes» como Refaldes, acolheu as maiores glórias do último quartel do século XIX. Antero era visita habitual com outros companheiros de geração, como Oliveira Martins e Eça de Queiroz. E o certo é que sentimos fortemente essa cumplicidade… «Um dia encontrei-o estirado na cama (conta Luís de Magalhães, sobre Antero), ao que longamente o forçavam as suas demoradas digestões, tendo ao lado um rapazito de 9 ou 10 anos, pobremente vestido., a quem estava ensinando a fazer contas numa folha de papel. Ao ver-me entrar, deu a lição por terminada e explicou-me porque vinha achar em funções de mestre-escola. Aquele pequeno era o filho da sua servente. Para se entreter, dizia, encobrindo o seu bondoso móbil, - resolvera leccioná-lo. O discípulo, porém, era notavelmente obtuso no entendimento. E, longe de se enfastiar, com a resistência pétrea daquele cerebrozinho, Antero pretendia que o contacto de tanta estupidez lhe descansava o espírito».


UM TEMPO SINGULARMENTE FELIZ

O tempo em que Antero esteve em Vila do Conde foi sem dúvida o mais feliz da vida do poeta – e estes textos de Luís de Magalhães, agora dados à estampa, dão-nos essa exacta impressão. Diz-nos: «Chamei a Vila do Conde o seu ascetério, - e era de facto. O seu quarto, despido de todo o conforto, era como a cela de um monge, como os quatro muros nus em que se enclausurava um emparedado, como a coluna de um estilita. Ali vivia, concentrado em si mesmo, levado no turbilhão dos seus sonhos, das suas dúvidas, dos seus anseios de verdade, das suas visões trágicas, que cristalizavam sempre em sentidos e soberbos versos. Os seus êxtases eram a absorção do seu alto pensamento no enigma das origens e na interpretação do Universo – as suas orações, os seus sonetos. De dia, raramente o encontrariam na rua. Os seus passeios eram quase sempre nocturnos». Sentimos, assim, a proximidade do poeta e da pessoa adorável - «tolerância viva», «místico sem fé»… Magalhães conhecia pessoalmente Antero desde o Verão de 1881, quando o poeta aguardava a finalização das obras de sua casa em Vila do Conde, graças à hospitalidade de Oliveira Martins na Rua da Boavista. Aliás, fora pouco antes que, em 21 de Abril desse ano, o escritor de «O Brasileiro Soares» conhecera o autor de «Portugal Contemporâneo» - «Fui ontem visitar um homem de grande merecimento, uma das primeiras inteligências do país» (como confessaria a sua Mãe). Luís de Magalhães não esconde que «entre as melhores recordações» da sua mocidade, uma das que mais lhe elevava o espírito e lhe aquecia o coração, era a das «visitas a Antero no seu recatado cenóbio de Vila do Conde». Aí temos a recordação da «minúscula e solitária Praça Velha», de Antero a assomar do alto da escada a levantar o fecho da cancela – era um tempo em que Antero «estava nos seus dias joviais e de belo e fascinante humor». Foi aí e nesse tempo que Antero de Quental escreveu «Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX» - de que Ana Maria Almeida Martins diz, justamente, ser «por certo o mais importante ensaio filosófico do século XIX português». Assim, o é, com efeito – e ainda o ouvimos: “A evolução não é apenas uma complicação crescente das forças elementares: é um alargamento da ideia, isto é, de existência verdadeira. E se o ideal supremo, que tudo atrai, para tudo gravitar, é razão, vontade pura, plena liberdade, a evolução só será perfeitamente compreendida, definindo-se como espiritualidade gradual e sistemática do universo». Afinal, «o drama do ser termina na libertação final pelo bem». E ouvimos o soneto: «Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo, / tronco ou ramo na incógnita floresta».


O CARISMA ANTERIANO

Ao seguir o percurso testemunhal de Luís de Magalhães, aprendemos a conhecer melhor Antero e os seus, mas igualmente entendemos os seus discípulos e seguidores da geração seguinte. O carisma de Antero é evidente. Há uma irradiação de espírito que se sente a cada passo – e que as «Tendências Gerais» permitem compreender e interpretar. E Luís de Magalhães resume, com precisão e afecto: «Quando, no futuro, este grande nome, entrando nos domínios da História, despertar a curiosidade erudita – essa incansável curiosidade que busca reconstituir, passo a passo, episódio a episódio, acto a acto, a vida dos homens ilustres, os investigadores sofrerão a maior das decepções ao toparem com uma existência modesta, simples, sem datas ligadas às dos grandes acontecimentos do seu tempo, sem decorações teatrais, sem brilho mundano, sem agitações aparentes – uma existência cuja memória sobreviverá, quase exclusivamente, pelo esplendor de um grande génio poético e de uma altíssima tradição moral»…


Guilherme d'Oliveira Martins

DÁRIO CASTRO ALVES

O falecimento do Embaixador Dário Castro Alves (1927-2010) constitui uma grave perda para a cultura portuguesa.

Era um apaixonado da língua e um fino cultor da literatura portuguesa, brasileira e lusófona.

Fez reviver Eça de Queiroz em muitos dos seus textos, em especial sobre culinária e gastronomia, mas mais do que isso pôde compreender a força universalista das belas letras. Foi um dos mais destacados sócios e amigos do Centro Nacional de Cultura, e mesmo no Brasil nunca deixou o contacto com os grandes amigos portugueses.
Deixa-nos uma enorme saudade e um espaço impossível de preencher!

 

 

Dário Moreira de Castro Alves nasceu em 14 de Dezembro de 1927, em Fortaleza, no Estado do Ceará. Em 1949 concluiu o curso de Ciências Jurídicas e Sociais na PUC do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano ingressou por concurso no serviço diplomático brasileiro, tendo exercido postos em Buenos Aires, Nações Unidas (Nova Iorque), Moscovo e Roma, antes de chegar à Embaixada do Brasil em Lisboa.
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, Dário Castro Alves é "Académico de Mérito" da Academia Portuguesa de História, presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Brasileira

Dário Castro Alves escreveu vários livros, como "Era Lisboa e Chovia", "Era Tormes e Amanhecia" (dicionário gastronómico baseado na obra de Eça de Queiroz) e "Era Porto e Entardecia" (dicionário de enologia da obra de Eça de Queiroz), além de "Luso-Brasilidades nos 500 anos", todos publicados no Brasil e em Portugal.

O diplomata cearense esteve à frente da Embaixada do Brasil em Portugal de 1979 a 1983, tendo depois sido embaixador na Organização dos Estados Americanos, em Washington, e presidente do Conselho Permanente dessa mesma organização.

M.S.LOURENÇO RECORDADO EM SINTRA

 

 

Integrado na programação dos habituais Passeios de Domingo, o Centro Nacional de Cultura, com a participação da Alagamares, efectuou dia 30 de Maio um passeio/homenagem ao escritor sintrense M.S.Lourenço, falecido em 2009, em Sintra.

Esta homenagem, que teve a participação de família e amigos do autor, foi conduzida pela escritora Helena Langrouva e pelo Prof. Guilherme d’Oliveira Martins, Presidente do CNC, e percorreu alguns dos lugares emblemáticos da sua vida e seus preferidos na vila de Sintra. "Um aristocrata do espírito", como lhe chamou Guilherme d'Oliveira Martins, e efabulador de realidades heterodoxas.


Helena Langrouva e Oliveira Martins falam de M.S.Lourenço

Sobre ele, escreveu para o nosso sítio a escritora Helena Langrouva o seguinte texto, por ocasião da sua morte:

"Manuel António dos Santos Lourenço, que assinava com o nome literário M.S.Lourenço, nasceu em 13 de Maio de 1936, na Vila Velha de Sintra, onde viveu toda a vida, excepto quando teve missões a cumprir no estrangeiro, até à sua morte, em 1 de Agosto de 2009.


Casa em Sintra, junto à Igreja de S.Martinho, onde nasceu em 1936

Era filho de Manuel António Lourenço e de Maria Alice dos Santos Lourenço. Foi encarregado da Biblioteca Municipal de Sintra (nas instalações do antigo Casino), nos anos cinquenta. Desde muito jovem, era apaixonado por Filosofia, Literatura, Ciência, Artes, em especial a Música. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa (1965), foi professor do ensino secundário privado (Colégio da Cidadela, Cascais), bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em Oxford (1965-68), Leitor de Português (1968-1971) nas Universidades de Oxford e de Santa Barbara (Califórnia, E.U.A.), tendo ainda ensinado na Universidades de Bloomington (Indiana, E.U.A.), e de Innsbruck (Áustria). Era pós-graduado (M.A. - Oxford) e Doutorado (Lisboa) em Filosofia Analítica, tendo-se fixado como professor de Lógica e Filosofia da Matemática, no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Dedicou a sua vida à Poesia, à Tradução, ao Ensaio, à Filosofia e ao Ensino. Foi sempre apaixonado por Sintra onde vivia, passeava discretamente, escrevia e meditava a sua obra.

  Retrato a óleo 


Como filósofo, além de professor de Filosofia, M.S. Lourenço foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Filosofia (1999-2004) e Director da revista de filosofia Disputatio. Publicou, em livro, A Espontaneidade da Razão: A analítica conceptual da refutação do empirismo na Filosofia de Wittgenstein (Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986) – a partir da tese de doutoramento -, Teoria Clássica da Dedução (Assírio e Alvim, 1991). O livro A Cultura da Subtileza: Aspectos da Filosofia Analítica (Gradiva, 1995, editado por Desidério Murcho), resultou de diálogos, no programa Rádio Cultura, da RDP2, com filósofos, homens da cultura e críticos de arte portugueses - entre os quais, João Bénard da Costa, Sidónio Freitas Branco Paes e João Paes –, sobre Diálogo, Lógica e Metafísica, Estética e Filosofia da Arte. De 2003 a 2008 publicou, com a colaboração de alunos, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia -, as aulas de Mestrado em Filosofia Analítica, com os títulos Estruturas Lógicas de primeira ordem (2003), Os elementos do programa de Hilbert (2004), Acordar para a Lógica Matemática (2006 – tendo continuado, online, até 2009). Mais recentemente, publicou, sob o pseudónimo Gribskoff, Fundamentos da Matemática - treze artigos escritos em inglês - na enciclopédia online de matemática PlaneMath (2008-2009).

Como tradutor de filósofos, escolheu autores de obras marcantes para o estudo da Lógica e da Filosofia Analítica, além da sua tradução do teólogo e filósofo Romano Guardini, O Fim dos tempos modernos (Moraes, 1964). Traduziu William Kneale & Martha Kneale, O Desenvolvimento da Lógica (Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, 3ª edição, 1991, 773 pp. Esgotado), Kurt Gödel, O Teorema de Gödel e a hipótese do contínuo (Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, 2ª edição 2009, 943 pp.) e Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico* Investigações Filosóficas (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, 4ª edição 2008, 611pp.)

Pertenceu à chamada geração de O Tempo e o Modo, com António Alçada Baptista, João Bénard da Costa – que também viveu discretamente em Sintra durante mais de cinquenta anos -, Alberto Vaz da Silva, Pedro Tamen, Nuno Bragança, entre os principais. Esteve próximo de todos até ao fim, em especial de João Bénard da Costa (falecido em 21 de Maio de 2009). Em O Tempo e o Modo, revista de pensamento e acção, publicou poemas, ensaios, a tradução de uma parte de Finnegans Wake de James Joyce, I, 3 (nº 57/58, pp. 243-244, Lisboa, 1968). O então jovem escritor Almeida Faria publicou, a este propósito, um artigo sobre a tradução de Finnegans Wake em português (revista Colóquio-Letras, nº 23, Janeiro de 1975, pp. 27-31). Ainda em O Tempo e o Modo publicou a tradução de três breves contos de Samuel Beckett, Imaginação morta imaginando (nºs 71/72, Maio-Junho de 1969), recentemente editados pela revista Ficções (nº 15, Maio, 2006).

Casa a caminho de S.Pedro onde viveu até à sua morte

Como poeta, publicou em livro, antes de partir para a guerra colonial (1961), na editora Moraes, fundada por António Alçada Baptista, O Desequilibrista (1960), obra de estreia, Fora de Colecção. Seguiram-se, na mesma editora, as duas pequenas colectâneas de histórias - O Doge (1963, assinado sob o pseudónimo Arquiduque Alexis-Christian von Rätselhaft und Gribskov – Tradução de M.S. Lourenço -, reeditado, sob o pseudónimo Alexis Von Gribskoff, Fenda, Lisboa, 1998), Ode a Upsala ou Ária detta la Frescobalda (1964). Depois de ter vivido em Oxford, criou uma nova orientação estética e técnica da escrita poética em Arte Combinatória (1971) e Wytham Abbey (1974). Defendeu o labor e o aperfeiçoamento da musicalidade do verso, da arquitectura musical do poema, a procura da capacidade visionária, através da expressão poética, em particular no livro Wytham Abbey.

A obra poético-literária de M.S. Lourenço demarca um lugar difícil de se definir na literatura portuguesa, pela surpreendente aglutinação e desequilíbrio do real, do quotidiano e do surreal, o nonsense, o humor, o permanente filtro da angústia, a crítica, a encenação e a máscara da própria obra, a irreverência, a liberdade, a interrogação, o enigma, os mitos, o mistério, a procura para-mística ou mística, a certeza da morte, a reflexão filosófica, teológica, metafísica, escatológica, a fantasia, o sonho, a constante criação, recriação e aperfeiçoamento de linguagens, inúmeras alusões culturais, palavras em várias línguas, convergindo na meditação da própria língua portuguesa.

Em Pássaro Paradípsico (Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1979) - com ilustrações de Mário Cesariny – cada verso é uma palavra e cada poema construído à maneira de uma composição musical. Em Nada Brahma (Assírio e Alvim, 1991), obra escrita em verso e integrando um texto dramático – retomando o caminho traçado por O Desequilibrista -, procura realizar o ideal da poesia como arte musical, decantando ao extremo a procura do essencial dos seus universos, na poesia que é, na poesia que a si própria se pensa, lembrando o princípio aristotélico do “pensamento que a si próprio se pensa”. A poesia ainda expressão e voz do silêncio, a poesia como som – Nada, em sânscrito – do Todo, Deus – Brahma, em sânscrito, deixando perpassar, em particular neste livro, e dispersamente noutros livros, a presença discreta de Sintra.

Apesar de algumas afinidades com o classicismo num sentido lato, o surrealismo, o pós-simbolismo e o neo-construtivismo, a poética de M.S. Lourenço seguiu um caminho individual, solitário, perseverando na procura, a um tempo, de liberdade, contenção e abertura no pensamento e na palavra.

Os ensaios que publicou na revista Colóquio-Letras e as crónicas que publicou no semanário O Independente estão reunidos no livro Os Degraus do Parnaso (Assírio e Alvim, 1991, 2ª edição integral, 2002) -, distinguido com o prémio Dom Dinis, da Fundação Casa de Mateus, em 1991. Nesta obra de referência para o ensaio, a cultura e a literatura portuguesa do século XX, pela pertinência e variedade dos temas abordados, a meditação sobre a vida, a filosofia e a arte, a literatura, as interrogações, a actualidade e a crítica, vigora a procura de reformulação narrativa do mesmo ideal da escrita como arte musical.
Pássaro Paradípsico, os livros de filosofia e as traduções de livros filosóficos estão assinados por Manuel Lourenço.

Manuel António dos Santos Lourenço foi galardoado com a Grã Cruz da Ordem de Santiago de Espada (foto) e a Cruz de Honra de I Classe da República da Aústria.

Foi homenageado, na sua presença, em 2006 e 2007. Em 2006 - ano da jubilação como professor catedrático -, na Faculdade de Letras de Lisboa -, com Maria de Lurdes Ferraz, no âmbito da cadeira de Teoria da Literatura, tendo, na sessão de homenagem, argumentado sobre a necessidade de um curso de Lógica para o estudo da Teoria da Literatura. Em Maio de 2007, no Palácio Valenças, em Sintra, no III Encontro de História de Sintra, numa conferência de Liberto Cruz, poeta e crítico literário sintrense da mesma geração (Sintra, 1935) – sobre a sua obra poética, intitulada “M.S. Lourenço, o Desequilibrista definitivo”, e numa exposição bibliográfica da sua obra poético-literária, conjunta com a de Liberto Cruz, por nós organizada.

Numa longa entrevista de Miguel Tamen – publicada em A.M. Feijó & Miguel Tamen (eds.) A Teoria do Programa. Uma homenagem a Maria de Lourdes Ferraz e M.S. Lourenço. Lisboa: Programa em Teoria da Literatura. 2007. Pp 313-364 – M. S. Lourenço esclarece aspectos cruciais do seu itinerário intelectual, não omitindo a inexistência do seu gosto pela discussão pública, o facto de a sua obra ser praticamente desconhecida do público. A Autobiografia, ainda inédita, anunciada por Liberto Cruz, na conferência acima referida – publicada online, www.alagamares.net -, permitirá novas achegas para a compreensão da sua vida e obra.

M. S. Lourenço deixou no prelo a Obra Completa poético-literária, que foi lançada no dia 28 de Outubro, de 2009 na Faculdade de Letras de Lisboa e em cujo título - O Caminho dos Pisões, Assírio e Alvim, 2009, 687 páginas - faz convergir o caminho pessoal como escritor – remetendo para o título da Carta Aos Pisões ou Arte Poética do poeta latino Horácio - e a presença de Sintra – Caminho dos Pisões é o nome antigo de um caminho da Vila Velha de Sintra onde M. S. Lourenço passeava e meditava, na sua juventude - entre a Vila Velha e a Regaleira. Esta obra, como outras, é dedicada aos seus pais. Obra rara de um autor sintrense e internacional, na complexidade e profundidade dos seus mundos, escrita com notável mestria da língua portuguesa, uma presença diferente, a investigar, no panorama da literatura, filosofia, ensino da filosofia, da cultura em língua portuguesa.

Ouvimos alguns dos seus textos poético-literários de Manuel Lourenço que ele nos ditava, para os escrevermos à mão, na sala da casa de seus pais, na Vila Velha (finais dos anos 50 e início dos anos 60), ouvimos comentários em que nos tentava explicar poemas da sua própria obra (finais dos anos 50, anos 60 e 70), até decidir remeter-se ao silêncio. Continuámos a ler e a meditar a obra, em silêncio. Esperamos que venha a ser conhecida das gerações actuais e vindouras.

Sempre foi nosso intento fazer homenagens em vida. Liberto Cruz, com a sua comunicação e nós com a exposição bibliográfica, em 2007, homenageámos em vida o nosso conterrâneo Manuel Lourenço, visivelmente satisfeito, no Palácio Valenças. Não sabíamos que era a última vez que o veríamos. Que Sintra saiba preservar a sua memória.

Neste roteiro usaram ainda da palavra para sentidas e coloridas intervenções a sua amiga Ana Maria Benard da Costa e sua filha Catarina Lourenço (fotos abaixo), que nos levou à casa onde viveu, tendo igualmente sido recordado o momento em 2007, no III Encontro de História de Sintra, organizado pela Alagamares, em que Liberto Cruz, outro escritor sintrense insigne fez uma comunicação sobre a sua obra, e a que o próprio M.S.Lourenço, incógnito na assistência, assistiu.... A História testemunha a Vida.

Morto o Artista, nasceu a Imortalidade. O seu espólio seguiu já para a Biblioteca Nacional. Mas outros gestos significantes faltam levar a cabo com algum significado: que podem começar pelo gesto simples da Câmara de Sintra mandar colocar uma lápide no local onde viveu, nesse caminho dos Pisões onde as várias personalidades que vestiu deambularam numa solidão organizada, dum desiquilibrista compulsivo. Sintra agradece.

       

    
O grupo no Jardim da Preta                                                    A filha, Carolina


Ana Maria Bénard da Costa