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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PEREGRINAÇÃO AO JAPÃO

 

Contagem decrescente – Japão (1)
Faltam pouco mais de cem dias para a partida da nossa Peregrinação ao Japão (27 de Novembro). Começaremos hoje a publicar pequenos textos sobre a expedição, para animar o apetite. A embaixada cultural portuguesa será um momento alto das comemorações da velha amizade luso-nipónica! Eis uma nota auto-biográfica de Wenceslau de Moraes (1854-1929): "Sou português. Nasci em Lisboa no dia 30 de Maio de 1854. Estudei o curso de marinha e dediquei-me a oficial da marinha de guerra. Em tal qualidade fiz numerosas viagens, visitando as costas da África, da Ásia, da América, etc. Estive cerca de cinco anos na China, tendo ocasião de vir ao Japão a bordo de uma canhoneira de guerra e visitando Nagasaki, Kobe e Yokoama. Em 1893, 1894, 1895 e 1896 voltei ao Japão, por curtas demoras, ao serviço do Governo de Macau, onde eu estava comissionado na capitania do porto de Macau. Em 1896, regressei a Macau, demorando-me por pouco tempo e voltando ao Japão (Kobe). Em 1899 fui nomeado cônsul de Portugal em Hiogo e Osaka, lugar que exerci até 1913. Em tal data, sentindo-me doente e julgando-me incapaz de exercer um cargo publico, pedi ao Governo português a minha exoneração de oficial de marinha e de cônsul, que obtive, e retirei-me para a cidade de Tokushima, onde até agora me encontro, por me parecer lugar apropriado para descansar de uma carreira trabalhosa e com saúde pouco robusta. Devo acrescentar que, em Kobe e em Tokushima, escrevi, como mero passatempo, alguns livros sobre costumes japoneses, que foram benevolamente recebidos pelo publico de Portugal"

 

Uma Europa com Estados e cidadãos

 

José Manuel Fernandes (JMF) deu-me o gosto de prosseguir esta polémica amena sobre a democracia europeia. E insiste na dificuldade, que julga ser insuperável, da conciliação entre as duas legitimidades que a Europa exige: a dos Estados e a dos cidadãos. E lembra bem que, no debate da Convenção Europeia, eu próprio defendi que a representação dos povos europeus se deverá fazer num sistema bicamaral, com uma Câmara eleita em sistema proporcional e com um Senado em que todos os Estados tivessem idêntica representação. É essa a solução que continuo a defender, uma vez que é indispensável encontrar uma organização democrática mais perfeita capaz de conciliar a legitimidade dos Estados e a participação dos cidadãos. O meu amigo José Medeiros Ferreira tem semelhante ponto de vista e António Guterres defendeu essa solução.
 
O que temos corresponde ao modelo adoptado no tratado de Roma de 1957 e o grande argumento para o manter liga-se à preservação da lógica intergovernamental do Conselho. Importa, no entanto, esclarecer que: a conciliação entre as duas legitimidades obriga a superar a pura lógica intergovernamental. Aqui separam-se as águas entre nós: enquanto procuro encontrar pistas que assegurem que os princípios do Estado de direito e da democracia passem do nível nacional para a supranacionalidade, JMF considera ser difícil garantir o consentimento democrático para além das fronteiras do Estado. E aqui o meu interlocutor apresenta um rol de argumentos sobre as fragilidades da representação no Parlamento Europeu que só me ajudam quanto à necessidade de ir mais além e de sermos mais ambiciosos na legitimidade europeia. Nada nesta ordem de ideias prejudica o “compromisso complexo” – antes pelo contrário, o que se pretende é que a exigência tem de prosseguir. E, como Giscard D’Estaing me disse no decurso da Convenção, a defesa do Senado tem pés para andar, devendo, ser preparada com o reforço dos poderes dos Parlamentos nacionais – que o Tratado de Lisboa prevê.
 
Quando falo de “consentimento complexo” quero referir-me à participação dos Estados e dos cidadãos, como actores fundamentais da “União de Estados e povos livres e soberanos”. E, como não há modelos perfeitos, o que importa é dar mais espaço à legitimação subsidiária e à ligação entre Parlamentos nacionais e Parlamento Europeu. JMF fala de uma “representação confusa, ininteligível para os eleitores”, a propósito da Comissão e do Conselho com violação das boas regras da separação de poderes. E eu pergunto: não será a definição de regras claras que nos poderá fazer avançar para uma União de direito, mobilizadora dos cidadãos?

Ora, não sendo a União Europeia um Estado, mas uma realidade constitucional sui generis, com várias legitimidades, não vejo outro caminho, para preservar a democracia e a participação cidadã na Europa, que não passe por uma audaz ligação entre Parlamentos nacionais e as instituições da União Europeia.
 

Montesquieu ensinou-nos que só o poder limita o poder. E de facto assim é; pelo que terão de ser os Parlamentos nacionais a tornar-se ponto de encontro das legitimidades dos Estados e dos cidadãos. Afinal, a separação de poderes só faz sentido se o consentimento couber aos representantes dos cidadãos. Em lugar da concessão a Bruxelas (ou a Berlim) de um direito de visto prévio na elaboração dos orçamentos nacionais, do que se trata é de fazer a subsidiariedade funcionar a sério – pondo os cidadãos a participar através dos Parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu num controlo efectivo da subsidiariedade. O Senado pretenderá reforçar essa articulação e temos de começar desde já, com o controlo pelos parlamentos das finanças públicas nacionais e comunitárias.
 

Não podemos ficar-nos pela ideia de que o desenvolvimento integrado da Europa não tem solução. O fatalismo segundo o qual a democracia europeia não é possível não é aceitável, pois a partir dele chegamos à humilhação, o que porá em causa, a democracia europeia e as democracias nacionais. Se não tivermos resposta para a democracia europeia condenaremos as democracias nacionais, pois “o directório dos grandes” ocupará o vazio que as instituições europeias e nacionais deixarem por preencher. E isto aplica-se às políticas económicas e à regulação dos mercados, bem como à preservação da competitividade europeia, à coesão económica e social e à salvaguarda do modelo social europeu. Urge que haja coordenação económica europeia e que haja democracia europeia – sob pena de a eficiência e a equidade deixarem de funcionar e de a crise se agravar. E aqui temos um ponto de acordo – é que a consolidação europeia obrigará a sermos menos ambiciosos na definição de interesses comuns europeus para sermos mais eficazes e efectivos. O que está em causa é (e isso é tudo): a paz e a segurança, o desenvolvimento sustentável e a diversidade cultural. Ou não será assim, caro amigo José Manuel Fernandes?


Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 26 de Julho a 1 de Agosto de 2010


 

O livro de Enzo Bianchi "Para uma Ética Partilhada" (Tradução de Artur Morão, Pedra Angular, 2009) é uma actual e belíssima reflexão sobre o mundo contemporâneo, sendo de uma grande oportunidade, em especial quando sentimos os efeitos da crise económica e financeira e percebemos que uma resposta ética actuante exige coerência e eficácia, para que os problemas actuais não venham a repetir-se, em condições certamente ainda mais gravosas para todos, não apenas para as contas, mas fundamentalmente para a coesão social e para a confiança nas instituições da democracia.


UMA REFLEXÃO ESPIRITUAL PARA HOJE
Enzo Bianchi (n. 1943) é um monge com uma importante intervenção ecuménica, preocupado com o lançar de pontes em diversas direcções, no sentido dos cristãos e dos não cristãos, de diversas proveniências. Fundou em 1965 a Comunidade Monástica de Bose, no dia em que o Concílio Vaticano II encerrou os seus trabalhos. O sinal foi premonitório, uma vez que Bianchi tem-se empenhado activamente na difusão de uma espiritualidade renovada, fortemente enraizada num diálogo fecundo, tantas vezes surpreendente, entre a tradição e modernidade. É útil recordar, por exemplo, a citação, que tantas vezes Bianchi repete, de uma carta a Diogneto, escrita no século II, em que os cristãos aparecem definidos deste modo tão atraente: “vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cidadãos, mas separam-se de tudo como estrangeiros. Moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu”. Nesta linha, Enzo Bianchi fala de uma cidadania espiritual, designada como politeuma, palavra grega que podemos traduzir como conversação, e que, a um tempo, significa conversa com Deus, enquanto oração, mas também compromisso com os outros. A obra que hoje nos ocupa espelha bem, de um modo simples e acessível, este mesmo entendimento. Esta conversa com Deus e com os outros é a chave de uma espiritualidade aberta, serena, respeitadora das diferenças e criadora.

TEMAS DIFÍCEIS E ACTUAIS
Os temas tratados no livro, a propósito da difícil tarefa de partilhar uma ética viva, são sucessivamente: a presença da Igreja no espaço público, a linguagem humilde para narrar a fé, o peso das palavras, a ética e a ciência à luz da fé e, por fim, há três apelos significativos aos cristãos, sobre o primado da fé, a reserva escatológica e a arte da comunicação. “Em vista de uma recuperação do primado da fé (diz-nos o autor), da expectativa das coisas últimas e de uma arte da comunicação autêntica, continua a ser indispensável a leitura e o conhecimento do evangelho entre todos os que fazem parte da comunidade cristã. De facto, se é verdade que o cristianismo é a religião do Livro, é igualmente verdadeiro que só o evangelho permite o conhecimento de Jesus Cristo, centro e coração do cristianismo”. Daí que a militância de Bianchi em torno da palavra bíblica seja um ponto fundamental a ter em consideração. “Um cristianismo em que o evangelho não inspira a vida, a esperança e a linguagem dos crentes (diz-nos ainda), como evitará tornar-se ritual, devocional, como deixará de se reduzir a facto cultural ou social, se é que não mesmo a fenómeno folclórico ou supersticioso?”. Assim, o evangelho ganha uma especial importância, e o Concílio Vaticano II teve a virtude, crucial para Bianchi, de o colocar de novo na mão dos católicos – pondo o testemunho de Jesus Cristo no centro da vida espiritual quotidiana. Por outro lado, contra a indiferença perante os outros, a escuta de humanidade torna-se fundamental. Em suma, a atenção ao Evangelho é a atenção a Cristo que encontramos a cada passo – tive fome deste-me de comer, tive sede deste-me de beber, nu vestiste-me. “Num período em que tudo está posto em causa – a concepção da relação com o seu corpo, com o outro sexo, com o sofrimento, com o tempo, com a natureza… - é necessário elaborar respostas de sabedoria que digam quem é o ser humano e como se pode humanizar mediante uma qualidade de vida pessoal e de convivência”. A fé precisa, afinal, da razão para não cair no paganismo, mas exige também a partilha de responsabilidades na cidade das pessoas, a polis. Cristãos e não cristãos têm, deste modo, de se perguntar em comum – quem é a pessoa humana? A luta pela humanização contra a barbárie tem de mobilizar todos. E Enzo Bianchi tem-se empenhado activamente nessa missão de abertura e de partilha – para além das fronteiras dos católicos e dos cristãos. A laicidade tem de ser entendida de forma saudável. O Estado deve ser laico, a sociedade é plural e o fenómeno religioso tem de ser aceite pelos outros no espaço público. Daí que os poderes públicos devam defender activamente a liberdade de consciência para todos, devam empenhar-se na coexistência pacífica entre todos, opondo-se a toda a violência que se acoberta das convicções religiosas.

PÓLO PROFÉTICO, PÓLO POLÍTICO
E se há sempre um pólo político e um pólo profético, como no-lo ensinaram Péguy, Maritain e Mounier - importa perceber a força do espírito, sem confusão de planos: “a Igreja e as figuras eclesiais podem dizer uma palavra só a nível profético, pré-económico, pré-político, pré-jurídico, mas não devem sugerir soluções técnicas, porque isso incumbe aos homens políticos”. Daí que Bianchi defenda um cristianismo que seja verdadeiramente civil. E é nesse contexto que aponta para um fórum político dos cristãos. Longe da ideia do “partido dos católicos” do que se trata, sim, é de assumir a diferença e de funcionar como fermento na massa. Não há política cristã, mas cristãos na vida política. “Cada cristão é remetido para a sua responsabilidade de cidadão e para a sua eventual inserção política, a fim de actuar segundo a inspiração do evangelho: as maneiras e as soluções técnicas para traduzir estas inspirações residem no âmbito da política, da economia, do direito e, enquanto tais, recaem sobre a responsabilidade do indivíduo crente-cidadão”. Passa então do profético ao político, assume responsabilidades, corre riscos, compromete-se. A diferença cristã exige o compromisso, percebendo-se, porém, que “nenhum partido pode dizer que é o único depositário da mensagem cristã numa sociedade pluralista animada por projectos políticos em concorrência, os quais só poderão extrair benefícios de um confronto sério com a ‘diferença cristã’ tornada eloquente por católicos responsáveis e empenhados”. Este tema é, no entanto, muito mais difícil do que pode parecer à primeira vista, uma vez que o passar do pólo profético para o pólo político obriga a sujar as mãos e a correr o risco da incompreensão, uma vez que então estamos diante do confronto entre a promessa e a capacidade de a cumprir, acrescendo que o cristianismo não é, por definição teocrático.

CHAMADOS AO COMPROMISSO
Os cristãos são chamados à responsabilidade na polis, mas nunca poderão reivindicar a virtude apenas por serem cristãos. Daí as cautelas postas na Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” – os cristãos não podem eximir-se a responsabilidades, mas não poderão justificar a verdade política com base na verdade religiosa. Cristo não foi chefe político e não o quis ser, mas não afasta os seus discípulos do compromisso com a sociedade e os outros. Lembremo-nos de Giorgio La Pira, foi síndaco de Florença e deputado do Partido Democrata Cristã italiano, mas nunca renunciou a combater a acomodação, apelando constantemente à responsabilidade ética, profética e pré-política. Bianchi fala, por isso, de um “justo uso político da fé”. Há um dever da Igreja se fazer ouvir. Para tanto tem de encontrar modos e tempos para uma intervenção autorizada. Trata-se, na proposta de Enzo Bianchi, de usar uma linguagem política “não banal nem arrogante, mas passível de ser escutada também por quem não partilha a fé que a gera”. “O espírito do homem é demasiado importante para ser deixado nas mãos de fanáticos e de intolerantes ou de espiritualidades que estão na moda. Sem dúvida, cada religião alimenta-se de espiritualidade, mas há lugar também a uma espiritualidade sem religião, sem Deus”.  Daí que “o cristianismo precise de testemunhos, não de depoimentos”, o exemplo é fundamental, havendo que evitar o mero efeito imediato das propostas políticas, que impressionam, mas não resolvem. Não pode haver ilusões sobre a criação do mundo perfeito, mas tem de haver o compromisso de procurar séria e determinadamente a justiça e a verdade.

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 19 a 25 de Julho de 2010

 

 

 

 

As obras completas de Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941) estão a ser publicadas pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, constituindo uma excelente oportunidade para tomar contacto com um dos melhores prosadores do século XX. Em 2009, saiu o segundo volume, que reúne “Gente Singular” (1909), “Novelas Eróticas” (1935) e “Maria Adelaide” (1938), com Prefácio de Urbano Tavares Rodrigues e notas do mesmo e de Helena Carvalhão Buescu e Vítor Wladimiro Fereira. Estamos perante belos textos que realçam personalidades multifacetadas, lugares de magia cosmopolita, o Algarve que o autor amava e a sensualidade em estado puro… 

 

 

UM GRANDE ESCRITOR
Manuel Teixeira-Gomes, cujos 150 anos do nascimento passaram há pouco (a 27 de maio), é um escritor incompreensivelmente pouco lembrado. Foi um cidadão do mundo, de vistas largas, de requintado gosto, com um especial talento literário. Foi Presidente da República e singularizou-se por um exigente magistério cívico. Recordá-lo é um dever de elementar justiça. É um caso em que o notável escritor se liga ao diplomata e ao cidadão exemplar. Leia-se a entrevista de Norberto Lopes realizada na Argélia, “O Exilado de Bougie”, e perceba-se a inteligência, a capacidade de entender o mundo e o grande amor a Portugal, a começar pelo seu Algarve. O percurso de vida de Teixeira-Gomes parte de Portimão, passa pelos estudos na cidade onde nasceu, mas também em Coimbra, onde frequenta Medicina e Direito sem os concluir. É o tempo das «reprovações e anos perdidos; peregrinações estéreis pelas várias escolas do país; conflitos com a autoridade paterna; boémia descabelada, miséria, fome e… literatura». Convive com João de Deus, Fialho de Almeida, Sampaio Bruno, Soares dos Reis, João de Barros e António Patrício. O comércio dos frutos secos leva-o à Bélgica, à Holanda e à Alemanha, tornando-o cosmopolita. A seguir à implantação da República é nomeado ministro plenipotenciário em Londres, onde ficará até ao sidonismo, com magníficas provas dadas. Aproxima-se primeiro de Brito Camacho, depois do Partido Republicano e, por fim, do grupo da «Seara Nova». É eleito Presidente da República em 1923 e mantém-se em funções até 1925, momento em que a intriga e a má-língua o levam a renunciar. Mário Soares afirma, com inteira justiça, que «Teixeira-Gomes, personalidade de uma rara elegância cívica e moral, com uma consciência muito realista das dificuldades e carências nacionais, fez todos os esforços ao seu alcance para convencer os políticos dos diferentes partidos a porem-se de acordo sobre uma política de salvação nacional. Em vão!»

 

«GENTE SINGULAR»
Mas recorde-se o escritor. É em «Gente Singular» (1909) que se encontra a referência mais fiel e rigorosa (no sentido mais incómodo do termo) às vicissitudes que um cidadão do final de oitocentos tinha de penar para chegar à cidade de Faro. Como afirma Urbano Tavares Rodrigues, o cómico e o fantástico combinam-se extraordinariamente nesse conto, integrado na obra com o mesmo título, dedicado a Ricardo Malheiros, que constitui um retrato irónico da província do fim do século XIX. «Duríssima travessia! A linha férrea mal chegava a Beja, onde se tomava a dolorosa diligência de Mértola que, por seu turno transbordava os viajantes num vaporzinho manhoso sobre o qual descia o Guadiana até à foz, e dali, na pombalina Vila Real de Santo António, outra diligência nos joeirava os já desconjuntados ossos pelo decurso das muitas horas necessárias a alcançar Faro». «Calamitosa jornada» é a qualificação com que o escritor nos brinda para dar a imagem de como era dramática essa deslocação, que em alternativa poderia fazer-se por mar, mas que até ao século XX teve normalmente essas conotações inacreditáveis. Tudo isto, muito antes das dramáticas curvas da serra do Caldeirão, com a memória histórica do Remexido, o José do Telhado destas paragens, em fundo. O tal vaporzinho era uma autêntica «frigideira dos passageiros», entre o calor ambiente e as «catódicas labaredas», que pareciam anunciar um incêndio iminente. E havia ainda as «sufocantes nuvens de ardente poeira da estrada algarvia». Numa palavra, tudo era sofrimento. «Cheguei a Faro de noite e batiam ronceiramente as nove no relógio da Sé quando eu tangia a sineta de um imenso portão, em casa apalaçada, aonde me conduzia o portador da minha bagagem, espécie de macrocéfalo a quem indicara o nome do cónego Simas». Diz a tradição que tudo se passaria no Largo do Pé da Cruz (ou Poço dos Cântaros) – mas o autor nunca o confirmou. O quadro era enigmático, o macrocéfalo denotava «insuficiência intelectiva» e a abertura da porta da casa do Monsenhor Romualdo Simas durou uma eternidade, a ponto de visitante e carregador adormecerem em cima do baú, tudo por causa de uns figos lampos, que são melhores quando colhidos à noite. Sucederam-se então inconcebíveis peripécias, dominadas pela escuridão que as lanternas não aclaravam (e recordo o cheiro dos candeeiros da minha infância e as sombras que tudo povoavam). Na casa de jantar escura, onde o viajante foi conduzido, havia um imponente prato de figos lampos, acabados de apanhar, responsáveis (soube-o depois) pela interminável demora na abertura do ferrolho.

 

UM CONTO TRAGICÓMICO
«Gente Singular» revela-se tragicómica e, a pouco e pouco, percebemos que estamos num manicómio. Para complicar tudo, a chegada do forasteiro coincide com a morte da mãe do cónego, cujo corpo está a ser velado quando chega o viajante. As inconsoláveis três irmãs do clérigo, Sebastiana, Prudência e Faustina, reagem bizarramente e mascaram-se de ursos com trombas de elefante para, dizem, brincar com a defunta, num episódio tétrico e hilariante. E Romualdo revela ao recém-chegado que não consegue adormecer sem o som da chuva, que ali há pouca, pelo que precisava de um maquinismo que «permitia soltar água de um regador sobre umas latas, produzindo o ruído da chuva». A conversa é perturbadora. E tudo se precipita quando Simas duvida da bagagem do hóspede, cuja chave do baú falta, e entra em convulsões ao desconfiar de que lá dentro há um morto ou um vivo. Solução para o conviva? Pôr-se a mexer. «…Atirei-me pela escada abaixo, consegui correr o complicado ferrolho e desatei a fugir pelas ruas de Faro». Ali não poderia ficar. E encontrou felizmente uma hospedaria para descansar e fugir da loucura em que caíra. Mas ficou confuso e perturbado com tudo o que presenciara. O «levante» («afrontoso vento cujo efeito nos forasteiros é deplorável») parecia ter efeitos maléficos, como fonte de melancolias e outras enfermidades. Mas o andar do tempo pareceu sarar as mentes. Pelo menos assim pareceu. A visita às ruínas de Milreu e a S. Brás, o contacto com a ria e o mar – tudo contribuiu para a reconciliação com o lugar e até com o cónego. Mas eis que tudo termina numa rematada loucura, com a misteriosa inauguração de uma retrete que custou trezentos mil réis. O muito idoso Vigário Geral é convidado e forçado a abrir o melhoramento em casa do Monsenhor e das suas impagáveis irmãs. Mas estas tiveram receio que o luxo não fosse suficientemente apreciado e administraram ao Vigário uma dose razoável de tártaro emético, indicada pelo boticário. Resultado? O efeito superou todas as expectativas e o Vigário ficou às portas da morte. E não houve comiserações, mas uma estranha sensação de facécia conseguida… «Subtilíssima dosagem de instinto e inteligência, de sensualismo e de humor, de plenitude física e de bom gosto cultural, não encontra paralelo em toda a literatura portuguesa» - David Mourão-Ferreira dixit.

Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

 

PATRIMÓNIO

Universidade Internacional Menendez y Pelayo

 

Fragmento da intervenção de GOM na Universidade Internacional Menendez y Pelayo a 14 de Julho de 2010 em Santander:

 

Os últimos anos têm sido caracterizados pela crescente importância da sustentabilidade ambiental e do equilíbrio ecológico – que exigem um maior envolvimento da sociedade e dos cidadãos através de uma tomada de consciência cívica e  de uma responsabilidade acrescida quanto ao conhecimento da evolução científica. Esta atitude contrasta com a consideração da conservação patrimonial como um fim em si. Conservação patrimonial liga-se cada vez mais à consciência ambiental e às responsabilidades da sociedade relativamente à qualidade de vida e ao desenvolvimento humano sustentável. Daí o seguimento de novos conceitos relevantes no âmbito patrimonial como: património comum, património imaterial, paisagens protegidas, património natural e cultural...

Por outro lado, a subsidiariedade e a descentralização tornaram-se referências cruciais para a compreensão e salvaguarda do património cultural (material e imaterial, construído, paisagístico e natural). O centralismo e o domínio tecnocrático ou burocrático têm de ceder lugar à proximidade dos cidadãos e das pessoas.

A subsidiariedade conduz à necessidade de descentralizar as decisões para os níveis adequados, evitando, a seu tempo, o domínio panificador (distante e pouco controlável) e a fragmentação dos interesses locais imediatos. De facto a subsidiariedade procura garantir que a descentralização evite simultaneamente o risco de um paternalismo conservacionista e da pressão dos interesses fragmentários. Insista-se  que o valor do património cultural para a sociedade contemporânea obriga a considerar a coesão territorial, a diversidade cultural, o desenvolvimento humano sustentável e a referência prioritária à dignidade da pessoa humana.

O valor do património para a sociedade obriga, pois, a garantir um equilíbrio entre proteger e conservar, de um lado, criar e inovar, de outro.

Os valores, os direitos, a identidade, a diversidade, a mobilidade e a inclusão tornaram-se referências não abstractas, mas com potencial mobilizador para os cidadãos. O bem, o bom, o belo, o justo e o verdadeiro não podem deixar-nos indiferentes.

Os direitos humanos pressupõem o reconhecimento universal da dignidade humana e o assumir de responsabilidades de acção e de salvaguarda. A identidade tem de ser vista como um factor de coesão e como um reconhecimento de diferenças, que mutuamente se enriquecem, em lugar de se excluírem. A diversidade é a consequência natural do pluralismo e da sociedade aberta – onde o intercâmbio, as trocas e os dons são elementos de confiança e de respeito. A mobilidade obriga a considerar a história como o reconhecimento da incerteza e do movimento enquanto criadores e transformadores. A inclusão obriga, por isso, a alargar os horizontes do respeito mútuo.

E se falamos de valores patrimoniais, temos de recordar que eles são próprios ou intrínsecos, mas mais do que isso: institucionais (ligados às responsabilidades sociais e às funções ligadas ao bem comum e à ideia de obra que permanece na vida social), instrumentais (que têm a ver com os meios que usamos para prosseguir  as finalidades e os objectivos que nos estão confiados, passando pela cooperação científica e académica) e económicos (relacionados com a actividade criadora, com o investimento, com o emprego ou com a sustentabilidade dos recursos materiais disponíveis).

Hoje, o património cultural, tal como se encontra referenciado na Convenção do Conselho da Europa, assinada em Faro a 27 de Outubro de 205, é considerado como um activo na promoção da coesão, da inclusão, mas também na participação cívica e na consideração da ética da responsabilidade. Daí que os valores intrínsecos e próprios da conservação e da protecção do património cultural tenham de se articular cada vez mais com os aspectos institucionais, instrumentais e económicos. A política cultural e a consideração do património cultural deixou de se reportar à dualidade entre património histórico e criação contemporânea. Património histórico e criação contemporânea são faces de uma mesma moeda. Não se trata de fazer aí escolhas prejudiciais ou de assumir dilemas de solução radical por uma ou outra das vias. Do que se trata é de criar mecanismos de “vai-e-vem” que permitam articular interesses e respeitar preocupações e prioridade. Veja-se a leitura de um monumento histórico paradigmático – uma catedral ou um templo de uma cultura distante. Facilmente perceberemos que as grandes referências civilizacionais correspondem a vários períodos e a diversas intervenções. As pedras mortas projectam necessariamente as pedras vivas. Afinal, em cada momento a história vai-se completando num movimento incessante. Resta saber como assumiremos essa opção difícil de conservar. Conservar não é restituir, uma vez que essa escolha obrigaria a parar no tempo, a definir um momento de paralisação. Daí a necessidade de ligar património, herança e memória. Impõe-se que as pedras mortas se liguem às pedras vivas e que o respeito histórico não traia o valor que a sociedade contemporânea está disponível a atribuir.

Na Convenção de Faro é por isso que “o património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução. Inclui todos os aspectos do meio ambiente resultantes da interacção entre as pessoas e os lugares através do tempo”. Estamos, deste modo, perante “reflexo e expressão” de “valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução”. Daí a necessidade de assumirmos o método do “vai-e-vem” ou de uma “naveta” que tem de ir permanentemente à identidade e à diferença, à coerência e ao pluralismo, à ciência e à vida, à história e às pessoas. Daí que tenhamos de compreender a noção de comunidade patrimonial “composta por pessoas que valorizam determinados aspectos do Património cultural, que desejam através da iniciativa pública manter e transmitir à gerações futuras”. Esta noção de comunidade conduz-nos ao respeito mútuo, à complementaridade, à ligação da memória futura à memória passada – muito mais do que a lembrança (que na portuguesa “saudade” se une ao desejo).

Trata-se de ligar a cultura criadora que une as diversas gerações. E assim o Património comum abrange todas as formas de património cultural (...) que, no seu conjunto, constituam uma fonte partilhada de memória, compreensão, identidade, coesão e criatividade”, bem como “os ideais, princípios e valores resultantes da experiência adquirida com progressos e conflitos passados, que favoreçam o desenvolvimento de uma sociedade pacífica e estável, baseado no respeito dos direitos do homem, da democracia e do estado de direito”.

Em suma, a nova Convenção sobre o Património Cultural baseia-se, no fundo, na consideração do património cultural como um recurso que serve não só ao desenvolvimento humano e à promoção do diálogo entre culturas, mas também ao progresso económico e social, seguindo os princípios da utilização sustentável dos recursos disponíveis. Vai, assim, mais longe do que as Convenções anteriores (Granada, 1985; La Valetta, 1992 e Florença, 2000), uma vez que aborda igualmente os riscos do uso abusivo do património, que se traduz na deterioração dos bens ou numa má interpretação do património “como fonte duvidosa de conflito”, pondo igualmente a tónica, de forma inédita e inovadora, no conceito de património comum da Europa e na organização de uma responsabilidade partilhada, considerando a importância da participação dos cidadãos».

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS


de 12 a 18 de Julho de 2010


Em vésperas de completar oitenta anos de idade e sessenta de vida literária, Albano Martins (n. 24.7.1930) acaba de ver editada a antologia “As Escarpas do Dia – Poesia 1950-2010” (Afrontamento, 2010), que constitui mais do que uma homenagem, a oportunidade de podermos ter acesso à produção literária de um poeta de créditos firmados, que tem interpretado a terra, a vida e o quotidiano de um modo sentido e talentoso, apesar da discrição, sempre acompanhada por uma grande exigência literária. Com António Ramos Rosa foi um dos fundadores da “Árvore – Folhas de Poesia” e, ao lado de José Augusto Seabra, foi dos principais animadores da revista e movimento sedeado no Porto da “Nova Renascença”.


UM POETA ORIGINÁRIO DA BEIRA-SERRA
«Sou um homem do sul, da claridade sem mácula, dos horizontes largos, lavados, varridos pelos ventos da Estrela e da Gardunha. A minha infância é uma écloga de pastores, boieiros e ganhões. Cresci entre fetos, fenos, juncos; entre o coaxar das rãs, o trilho dos pardais, a cegarrega das cigarras, o grasnar dos corvos, o canto dos ralos, das rolas e dos grilos, o arrulho dos pombos nos beirais dos telhados. Andei aos ninhos, como todos os rapazes da minha idade. Percorri, em sobressalto, as veredas e atalhos dos campos, os labirintos dos bosques, os meandros das sarças; persegui perdizes no recolhimento estival das searas e armei ciladas aos tordos nos terrenos lavrados, sob as árvores; colhi amoras nas sebes perfiladas à beira dos caminhos e sorvi o pólen açucarado da flor das acácias. Tive uma infância feliz. Perfumada. Em redor da casa cresciam eucaliptos e castanheiros e, lá ao fundo, depois das hortas e dos lameiros, a ribeira desdobrava o seu perfil de enguia líquida, em cujas águas se dessedentavam salgueiros, choupos e amieiros. Quem conhece a minha poesia sabe que esta é uma reserva que trago escondida no bornal e me serve de sustento na “lôbrega jornada”, como dizia Antero». Assim encontramos Albano Martins, poeta, escritor, cidadão. Sentem-se aqui as origens da Beira-Serra, e estas raízes projectam-se na sua presença portuense, cidade livre, terra de autonomia e de emancipação.


UM CIDADÃO DA “NOVA RENASCENÇA”

Conheci Albano Martins através do nosso saudoso amigo José Augusto Seabra, a propósito da “Nova Renascença”, que encheu a vida cívica e literária do poeta, ensaísta e diplomata, que nos deixou inesperadamente, sem que tivéssemos oportunidade de nos despedirmos. E se houve uma segunda alma no projecto de Seabra foi a do poeta hoje invocado, na tarefa oportuníssima de seguir os passos (tornando-os redivivos) de Teixeira de Pascoaes e de toda a plêiade que fez da Renascença Portuguesa o grande movimento cultural português da primeira metade do século XX – Cortesão, Proença, Sérgio, Bruno, Leonardo, António Carneiro, Fernando Pessoa e tudo. E essa ideia de “Renascença” tem de ser recordada nos dias de hoje, cem anos depois da implantação da República, numa oportunidade em que não podemos esquecer as raízes portuenses do republicanismo, no sentido mais aberto e abrangente, de Rodrigues de Freitas e do 31 de Janeiro, mas também da Liga Patriótica do Norte, ou não fora esta cidade exemplo arreigado de independência cívica, desde tempos imemoriais. Simbolicamente, o Porto baptizou o seu movimento cultural republicano de Renascença, como no século XIX, desde 1820, arvorara a ideia de Regeneração, sempre a partir da fidelidade aos valores mais exigentes da liberdade.


ESPÍRITO INDEPENDENTE

E se falo do espírito independente, a propósito de Albano Martins (natural de Telhado, no concelho do Fundão) é também porque estou de acordo com Eduardo Lourenço quando este refere que a característica do nosso poeta é “a inscrição da sua vida interior na escrita da paisagem, o seu romantismo controlado, a sua visão da poesia como lugar de excesso e perda intimamente ligados”. De facto, o artista “modula com um acerto que é só seu uma música que o transcende, como ele se transcende nela”. Com olhar clínico e análise fina, o ensaísta do “Labirinto da Saudade” põe Albano Martins num lugar especial, onde a palavra e a vida se encontram. Lembremo-nos de “As Casas” no “Exercício de dizer” (1981), em que vários poetas homenagearam a cidade do Porto e o pulsar do granito: “Altas / Emigram. / De água / Se sustentam. / Raízes / E asas. / São as casas”. Simples e linearmente, as construções misturam-se com o povo que as habita, não um povo anónimo, mas as pessoas concretas que importa olhar. E a palavra é concisa, despojada, humanista. António Ramos Rosa, poeta que tem dialogado intensamente com Albano Martins, vai ao encontro dessa mesma ideia, ao ligar a poesia do seu antigo companheiro da fundação da revista “Árvore” à clareza e à limpidez: “Há na tua poesia o aroma de um fruto / O sabor de uma cor fresca / Impelida pelo vento no mar / A tua linguagem é natural / Límpida e delicada / Contornando as coisas e os seres”. E Teresa Sá Couto cita, oportunamente, lembrando Albano Martins, um texto emblemático de José Régio: «Eis como tudo se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço». A referência é feliz.


UMA IDEIA ESPECIAL DE COMPROMISSO

E ser-nos-á possível ficar indiferentes perante o “compromisso” que o poeta põe diante das nossas vidas? «Pertence-te /ser homem, afirmar /todos os dias que tens /um compromisso: ser claro /e brando como a luz /e, como ela, /necessário. E não deixar crescer à tua porta /ervas daninhas». Não, não é possível. E esse singelo empenho leva-nos à simplicidade da relação com as coisas e a natureza. E é essa transparência que nos conduz naturalmente até ao poeta “renascente” e à sua capacidade de ser - «Que não. Que não sabes, / dizes. Também / a água não sabe, e nunca / diz não, e nunca / se desdiz». Oiçamos a finalizar essa pulsão de renascença no belíssimo “Rodomel Rododendro” (1989): «E voltarás ao sótão para colher o fruto proibido ali guardado e que não soubeste alcançar então. O fruto da embriaguez que assim te era oferecido sem outra contrapartida que não fosse a sua dádiva exclusiva e recíproca, colocada ao alcance dos lábios e da mão. Dirás que era cedo; o fruto, verde e impuro; que o galo não cantara ainda. Era aí, porém, que em verdade tu nascias. Porque é preciso, às vezes, morrer antecipadamente, para renascer inteiro».

ANTOLOGIA
No dizer de Fernando J. B. Martinho: “A poesia de Albano Martins (“Assim são as Algas – Poesia, 1950-2000”, 2000) orienta-se por um princípio grato à tradição simbolista, o de que a poesia não é apenas o efémero, mas também o duradouro do efémero”.
Na expressão de Albano Martins sobre “A Árvore”: “a Revista foi aquilo que eu sempre chamei ‘caldo de pedra’, porque era uma espécie de sopa, à qual cada um acrescentava o seu ingrediente pessoal. Foi a experiência da pluralidade na diversidade. O que nos unia era a autenticidade da poesia”.

Guilherme d'Oliveira Martins

 Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

DEMOCRACIA EUROPEIA NÃO PODE SER ILUSÃO

por Guilherme d’Oliveira Martins

 

Tratado de Lisboa

 

José Manuel Fernandes (JMF) escreveu há dias sobre «a loucura suicidária do ‘mais Europa’» (Público, 19.6.10) e referiu uma prosa minha de há alguns dias, dizendo que alguns, como seria o meu caso, “procuram superar a dificuldade que levanta a necessidade de os cidadãos terem representação e voz activa falando de um ‘consentimento complexo’ que os actuais tratados permitiriam conseguir». E acrescentava ser tal entendimento uma ilusão – por duas razões, “porque não existe coincidência entre o espaço em que os cidadãos sentem que têm alguma coisa a dizer – que, goste-se ou não, ainda é e será o espaço dos Estados nacionais – e o espaço onde se tomam cada vez mais decisões e decisões mais impopulares”. E ainda porque não seria “dando mais protagonismo aos actores europeus” que se criaria “essa identidade”, uma vez que na União Europeia não haveria possibilidade de substituir “de forma pacífica o seu governo”. Por fim, JMF lembra que “pode demitir-se a Comissão no Parlamento, mas não só não se pode demitir o Conselho, como nenhum eleitor europeu elege o PE a pensar em quem será o próximo presidente da Comissão. E, amavelmente, aconselha os que duvidam desta asserção a ler Karl Popper e Ralf Dahrendorf. Este seria um ponto central “porque não há mais união política sem mais transferências de soberania nem haverá ‘governo económico’ digno desse nome sem um verdadeiro orçamento europeu”.

 

Todos estes argumentos são conhecidos e não beliscam minimamente o meu ponto essencial (a partir das considerações de Jürgen Habermas). E qual é esse meu ponto? É o da necessidade da democracia supranacional europeia, que tem de ser prosseguida, preservada e aprofundada. Mas vamos por partes. Sabe JMF que há muito insisto na necessidade de considerar a construção europeia não como o resultado de um processo tendente à criação de um Estado europeu, mas como um caminho de criação de uma verdadeira união de Estados e Povos livres e soberanos – e aqui está toda a diferença. Por isso, na Europa temos duas legitimidades: dos Estados e dos cidadãos; só podendo a União ter sucesso se garantir o equilíbrio entre a afirmação da democracia supranacional e a consolidação das democracias nacionais, através de uma complementaridade efectiva entre a consciência cívica nacional e a consciência cívica europeia. Uma e a outra têm de ir a par. Daí a necessidade de assumirmos a subsidiariedade com todas as suas consequências. O Estado nacional é uma peça fundamental, mas deixou, há muito, de ser o alfa e o ómega do direito público, tornando-se cada vez mais mediador entre os planos infra-estadual e supranacional. Afinal, a globalização exige a coordenação de políticas económicas nos grandes espaços de integração económica, em nome da concorrência, de competitividade, da inovação e da coesão económica e social. Se queremos evitar a lógica de um Directório, precisamos de encontrar novos mecanismos de legitimação democrática que envolvam a participação dos cidadãos. Isto é fundamental e tem menos a ver com qualquer voluntarismo do que com a compreensão de uma tendência actual. E a questão da legitimidade obriga a apresentar resultados aos cidadãos. A União Europeia, como democracia, precisa de se aproximar dos cidadãos – no completar do mercado interno, na superação da crise financeira, na concepção da política macro-económica, na sustentabilidade da moeda e na melhor regulação, bem como nas reformas do modelo social europeu. Ora nada disto pode ser feito numa lógica puramente nacional. Como afirmou Francisco Seixas da Costa, o que deve preocupar-nos é que “toda esta aparente ‘federalização’ da gestão financeira europeia começa a assentar já não nas instituições regulares, mas apenas nos arranjos, um tanto ad hoc, impostos pela Alemanha e aceites pelos restantes parceiros como inevitáveis, cujo controlo democrático, a nível europeu, é hoje mais do que discutível”. Afinal, a democracia “não é um conceito instrumental, mas sim uma condição sine qua non para aceitação das soluções pelas pessoas” (Público, 19.6.10). Ora, é exactamente esta a minha questão. Não ponho em causa o que ensinaram Popper e Dahrendorf, com os quais concordo (tendo-os conhecido pessoalmente) – o que digo hoje é que a democracia não pode ficar-se apenas nas fronteiras nacionais, tem de chegar também aos espaços supranacionais. De nada nos valerá dizermos que é difícil aprofundar a democracia europeia. O que importa é encontrar vias para dar voz aos cidadãos. E essa voz tem de ser defendida e salvaguardada. De facto, quanto às Finanças Públicas, é preciso um orçamento europeu que se veja, mas antes disso é essencial que as competências dos parlamentos nacionais sejam preservadas, sob pena de deixarem de ter importância efectiva. Precisamos de parlamentos que de facto decidam em nome dos cidadãos. Daí que o reforço dos parlamentos nacionais e a necessidade de articulação com o Parlamento Europeu e os órgãos comunitários esteja na ordem do dia. O Tratado de Lisboa obriga a que os Parlamentos nacionais intervenham activamente, ao abrigo do novo sistema de controlo da subsidiariedade. Esse acompanhamento torna-se crucial, devendo os cidadãos perceber que tal controlo pode interromper o curso de iniciativas que se revelem desadequadas. Não se trata de discutir se é Bruxelas (ou Berlim) que define critérios de disciplina orçamental, mas de construir um processo democrático que leve à definição de objectivos e interesses comuns europeus – em que a estabilidade de preços tem de se ligar à criação de empregos ou à produção de riqueza e em que moeda e economia real, concorrência e coesão, competitividade e justiça se liguem de facto. Responsabilidade, representação e participação são questões que se põem hoje no Estado-nação, mas também na democracia supranacional. Eis por que razão, em vez da diluição do projecto europeu devemos apostar na clarificação de objectivos comuns e na concretização das duas legitimidades (dos Estados e dos cidadãos). E quando falo de “consentimento complexo” digo-o pois a única maneira de evitar a tentação do Directório é criar um sistema de freios e contrapesos institucionais no seio da União, que os cidadãos compreendam e sintam como seus. Caso contrário, serão os valores democráticos e a eficiência económica a perder… A sociedade aberta precisa da tentativa e do erro, mas não pode parar, e necessita sobretudo da persistência das pessoas para que a responsabilidade cívica não seja ideia vã.