A VIDA DOS LIVROS
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Em vésperas de completar oitenta anos de idade e sessenta de vida literária, Albano Martins (n. 24.7.1930) acaba de ver editada a antologia “As Escarpas do Dia – Poesia 1950-2010” (Afrontamento, 2010), que constitui mais do que uma homenagem, a oportunidade de podermos ter acesso à produção literária de um poeta de créditos firmados, que tem interpretado a terra, a vida e o quotidiano de um modo sentido e talentoso, apesar da discrição, sempre acompanhada por uma grande exigência literária. Com António Ramos Rosa foi um dos fundadores da “Árvore – Folhas de Poesia” e, ao lado de José Augusto Seabra, foi dos principais animadores da revista e movimento sedeado no Porto da “Nova Renascença”.
UM POETA ORIGINÁRIO DA BEIRA-SERRA
«Sou um homem do sul, da claridade sem mácula, dos horizontes largos, lavados, varridos pelos ventos da Estrela e da Gardunha. A minha infância é uma écloga de pastores, boieiros e ganhões. Cresci entre fetos, fenos, juncos; entre o coaxar das rãs, o trilho dos pardais, a cegarrega das cigarras, o grasnar dos corvos, o canto dos ralos, das rolas e dos grilos, o arrulho dos pombos nos beirais dos telhados. Andei aos ninhos, como todos os rapazes da minha idade. Percorri, em sobressalto, as veredas e atalhos dos campos, os labirintos dos bosques, os meandros das sarças; persegui perdizes no recolhimento estival das searas e armei ciladas aos tordos nos terrenos lavrados, sob as árvores; colhi amoras nas sebes perfiladas à beira dos caminhos e sorvi o pólen açucarado da flor das acácias. Tive uma infância feliz. Perfumada. Em redor da casa cresciam eucaliptos e castanheiros e, lá ao fundo, depois das hortas e dos lameiros, a ribeira desdobrava o seu perfil de enguia líquida, em cujas águas se dessedentavam salgueiros, choupos e amieiros. Quem conhece a minha poesia sabe que esta é uma reserva que trago escondida no bornal e me serve de sustento na “lôbrega jornada”, como dizia Antero». Assim encontramos Albano Martins, poeta, escritor, cidadão. Sentem-se aqui as origens da Beira-Serra, e estas raízes projectam-se na sua presença portuense, cidade livre, terra de autonomia e de emancipação.
UM CIDADÃO DA “NOVA RENASCENÇA”
Conheci Albano Martins através do nosso saudoso amigo José Augusto Seabra, a propósito da “Nova Renascença”, que encheu a vida cívica e literária do poeta, ensaísta e diplomata, que nos deixou inesperadamente, sem que tivéssemos oportunidade de nos despedirmos. E se houve uma segunda alma no projecto de Seabra foi a do poeta hoje invocado, na tarefa oportuníssima de seguir os passos (tornando-os redivivos) de Teixeira de Pascoaes e de toda a plêiade que fez da Renascença Portuguesa o grande movimento cultural português da primeira metade do século XX – Cortesão, Proença, Sérgio, Bruno, Leonardo, António Carneiro, Fernando Pessoa e tudo. E essa ideia de “Renascença” tem de ser recordada nos dias de hoje, cem anos depois da implantação da República, numa oportunidade em que não podemos esquecer as raízes portuenses do republicanismo, no sentido mais aberto e abrangente, de Rodrigues de Freitas e do 31 de Janeiro, mas também da Liga Patriótica do Norte, ou não fora esta cidade exemplo arreigado de independência cívica, desde tempos imemoriais. Simbolicamente, o Porto baptizou o seu movimento cultural republicano de Renascença, como no século XIX, desde 1820, arvorara a ideia de Regeneração, sempre a partir da fidelidade aos valores mais exigentes da liberdade.
ESPÍRITO INDEPENDENTE
E se falo do espírito independente, a propósito de Albano Martins (natural de Telhado, no concelho do Fundão) é também porque estou de acordo com Eduardo Lourenço quando este refere que a característica do nosso poeta é “a inscrição da sua vida interior na escrita da paisagem, o seu romantismo controlado, a sua visão da poesia como lugar de excesso e perda intimamente ligados”. De facto, o artista “modula com um acerto que é só seu uma música que o transcende, como ele se transcende nela”. Com olhar clínico e análise fina, o ensaísta do “Labirinto da Saudade” põe Albano Martins num lugar especial, onde a palavra e a vida se encontram. Lembremo-nos de “As Casas” no “Exercício de dizer” (1981), em que vários poetas homenagearam a cidade do Porto e o pulsar do granito: “Altas / Emigram. / De água / Se sustentam. / Raízes / E asas. / São as casas”. Simples e linearmente, as construções misturam-se com o povo que as habita, não um povo anónimo, mas as pessoas concretas que importa olhar. E a palavra é concisa, despojada, humanista. António Ramos Rosa, poeta que tem dialogado intensamente com Albano Martins, vai ao encontro dessa mesma ideia, ao ligar a poesia do seu antigo companheiro da fundação da revista “Árvore” à clareza e à limpidez: “Há na tua poesia o aroma de um fruto / O sabor de uma cor fresca / Impelida pelo vento no mar / A tua linguagem é natural / Límpida e delicada / Contornando as coisas e os seres”. E Teresa Sá Couto cita, oportunamente, lembrando Albano Martins, um texto emblemático de José Régio: «Eis como tudo se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço». A referência é feliz.
UMA IDEIA ESPECIAL DE COMPROMISSO
E ser-nos-á possível ficar indiferentes perante o “compromisso” que o poeta põe diante das nossas vidas? «Pertence-te /ser homem, afirmar /todos os dias que tens /um compromisso: ser claro /e brando como a luz /e, como ela, /necessário. E não deixar crescer à tua porta /ervas daninhas». Não, não é possível. E esse singelo empenho leva-nos à simplicidade da relação com as coisas e a natureza. E é essa transparência que nos conduz naturalmente até ao poeta “renascente” e à sua capacidade de ser - «Que não. Que não sabes, / dizes. Também / a água não sabe, e nunca / diz não, e nunca / se desdiz». Oiçamos a finalizar essa pulsão de renascença no belíssimo “Rodomel Rododendro” (1989): «E voltarás ao sótão para colher o fruto proibido ali guardado e que não soubeste alcançar então. O fruto da embriaguez que assim te era oferecido sem outra contrapartida que não fosse a sua dádiva exclusiva e recíproca, colocada ao alcance dos lábios e da mão. Dirás que era cedo; o fruto, verde e impuro; que o galo não cantara ainda. Era aí, porém, que em verdade tu nascias. Porque é preciso, às vezes, morrer antecipadamente, para renascer inteiro».
ANTOLOGIA
No dizer de Fernando J. B. Martinho: “A poesia de Albano Martins (“Assim são as Algas – Poesia, 1950-2000”, 2000) orienta-se por um princípio grato à tradição simbolista, o de que a poesia não é apenas o efémero, mas também o duradouro do efémero”.
Na expressão de Albano Martins sobre “A Árvore”: “a Revista foi aquilo que eu sempre chamei ‘caldo de pedra’, porque era uma espécie de sopa, à qual cada um acrescentava o seu ingrediente pessoal. Foi a experiência da pluralidade na diversidade. O que nos unia era a autenticidade da poesia”.
Guilherme d'Oliveira Martins
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