Uma Europa com Estados e cidadãos
José Manuel Fernandes (JMF) deu-me o gosto de prosseguir esta polémica amena sobre a democracia europeia. E insiste na dificuldade, que julga ser insuperável, da conciliação entre as duas legitimidades que a Europa exige: a dos Estados e a dos cidadãos. E lembra bem que, no debate da Convenção Europeia, eu próprio defendi que a representação dos povos europeus se deverá fazer num sistema bicamaral, com uma Câmara eleita em sistema proporcional e com um Senado em que todos os Estados tivessem idêntica representação. É essa a solução que continuo a defender, uma vez que é indispensável encontrar uma organização democrática mais perfeita capaz de conciliar a legitimidade dos Estados e a participação dos cidadãos. O meu amigo José Medeiros Ferreira tem semelhante ponto de vista e António Guterres defendeu essa solução.
O que temos corresponde ao modelo adoptado no tratado de Roma de 1957 e o grande argumento para o manter liga-se à preservação da lógica intergovernamental do Conselho. Importa, no entanto, esclarecer que: a conciliação entre as duas legitimidades obriga a superar a pura lógica intergovernamental. Aqui separam-se as águas entre nós: enquanto procuro encontrar pistas que assegurem que os princípios do Estado de direito e da democracia passem do nível nacional para a supranacionalidade, JMF considera ser difícil garantir o consentimento democrático para além das fronteiras do Estado. E aqui o meu interlocutor apresenta um rol de argumentos sobre as fragilidades da representação no Parlamento Europeu que só me ajudam quanto à necessidade de ir mais além e de sermos mais ambiciosos na legitimidade europeia. Nada nesta ordem de ideias prejudica o “compromisso complexo” – antes pelo contrário, o que se pretende é que a exigência tem de prosseguir. E, como Giscard D’Estaing me disse no decurso da Convenção, a defesa do Senado tem pés para andar, devendo, ser preparada com o reforço dos poderes dos Parlamentos nacionais – que o Tratado de Lisboa prevê.
Quando falo de “consentimento complexo” quero referir-me à participação dos Estados e dos cidadãos, como actores fundamentais da “União de Estados e povos livres e soberanos”. E, como não há modelos perfeitos, o que importa é dar mais espaço à legitimação subsidiária e à ligação entre Parlamentos nacionais e Parlamento Europeu. JMF fala de uma “representação confusa, ininteligível para os eleitores”, a propósito da Comissão e do Conselho com violação das boas regras da separação de poderes. E eu pergunto: não será a definição de regras claras que nos poderá fazer avançar para uma União de direito, mobilizadora dos cidadãos?
Ora, não sendo a União Europeia um Estado, mas uma realidade constitucional sui generis, com várias legitimidades, não vejo outro caminho, para preservar a democracia e a participação cidadã na Europa, que não passe por uma audaz ligação entre Parlamentos nacionais e as instituições da União Europeia.
Montesquieu ensinou-nos que só o poder limita o poder. E de facto assim é; pelo que terão de ser os Parlamentos nacionais a tornar-se ponto de encontro das legitimidades dos Estados e dos cidadãos. Afinal, a separação de poderes só faz sentido se o consentimento couber aos representantes dos cidadãos. Em lugar da concessão a Bruxelas (ou a Berlim) de um direito de visto prévio na elaboração dos orçamentos nacionais, do que se trata é de fazer a subsidiariedade funcionar a sério – pondo os cidadãos a participar através dos Parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu num controlo efectivo da subsidiariedade. O Senado pretenderá reforçar essa articulação e temos de começar desde já, com o controlo pelos parlamentos das finanças públicas nacionais e comunitárias.
Não podemos ficar-nos pela ideia de que o desenvolvimento integrado da Europa não tem solução. O fatalismo segundo o qual a democracia europeia não é possível não é aceitável, pois a partir dele chegamos à humilhação, o que porá em causa, a democracia europeia e as democracias nacionais. Se não tivermos resposta para a democracia europeia condenaremos as democracias nacionais, pois “o directório dos grandes” ocupará o vazio que as instituições europeias e nacionais deixarem por preencher. E isto aplica-se às políticas económicas e à regulação dos mercados, bem como à preservação da competitividade europeia, à coesão económica e social e à salvaguarda do modelo social europeu. Urge que haja coordenação económica europeia e que haja democracia europeia – sob pena de a eficiência e a equidade deixarem de funcionar e de a crise se agravar. E aqui temos um ponto de acordo – é que a consolidação europeia obrigará a sermos menos ambiciosos na definição de interesses comuns europeus para sermos mais eficazes e efectivos. O que está em causa é (e isso é tudo): a paz e a segurança, o desenvolvimento sustentável e a diversidade cultural. Ou não será assim, caro amigo José Manuel Fernandes?
Guilherme d’Oliveira Martins