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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PEREGRINAÇÃO AO JAPÃO

Contagem decrescente - Japão (2)
A Peregrinação que preparamos para o fim do ano será acompanhada aqui a par e passo. O Embaixador Martins Janeira recorda deste modo a chegada dos portugueses ao Japão. Trata-se de uma invocação que dá bem nota da importância deste contacto dos primeiros europeus com o Império do Sol Nascente: “A praia onde os Portugueses primeiro desembarcaram fica em Nishimura Ko-ura. É uma longa fímbria de areia branca entre a manta verde da terra e o espelho azul do mar. Contemplei-a do cimo dum castelo de rochedos altíssimos, erguidos contra os ventos do largo, e de cuja altura se desfruta um panorama admirável sobre o oceano infinito. A este abrigo veio dar o junco dos portugueses, impelido por uma tempestade, talvez um dos tufões terríveis que no fim do Verão, princípios do Outono, costumam assolar o Japão, espalhando devastações e mortes. No alto dos rochedos foi, em 1927, levantada uma pedra rústica, de uns três metros de altura, com uma inscrição japonesa relativa à introdução da espingarda – teppo –, sem alusão aos Portugueses. Há ainda um pequeno templo xintoísta e uma estela de cimento com uma inscrição dedicada aos mortos da última guerra – a todos os mortos. É curioso notar que todos os monumentos aos mortos desta guerra que se vêem no Japão são dedicados a todos os mortos, de todos os países, incluindo os inimigos. Admirável sentimento humano do país mais patriótico de todos, que aboliu os ressentimentos do patriotismo e quer lembrar e despertar apenas o sentimento de amor-dos-homens, da irmandade na morte. É um novo sentimento de humanidade, que finalmente começa a dealbar na consciência dos homens e a substituir o antigo culto militar dos heróis e do nacionalismo estreito. (...) Além do estranho aspecto dos Portugueses e das suas bárbaras maneiras de comerem com os dedos, do modo ruidoso e emotivo como falavam, o que mais chamou a atenção dos Japoneses foi as espingardas que traziam. O senhor da ilha, Tokitaka, compreendeu imediatamente o seu extraordinário valor no Japão militar, e pensou: «Isto é um tesouro singular que não tem igual na Terra.» Chamaram-lhe teppo, nome que ainda persiste e que teria valor decisivo no futuro do Japão, dando a vitória aos senhores que compreenderam o alcance da nova técnica e a introduziram nos seus exércitos.» - Armando Martins Janeira, Figuras de Silêncio – a Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje.


O Embaixador Martins Janeira com o escritor Shusaku Endo (1968).

 

JORNALISTA E CIDADÃO

por Guilherme d’Oliveira Martins

 

MÁRIO BETTENCOURT RESENDES (1952-2010)
Mário Bettencourt Resendes (1952-2010)

 

O Mário era da minha geração, tínhamos a mesma idade. Conhecemo-nos há mais de trinta anos, graças ao João Gomes e ao Mário Mesquita, num tempo em que nas páginas de Análise Política do DN eu tinha uma coluna que, em homenagem a Alexandre Herculano, baptizei de “O Calcanhar de Aquiles”. Falávamos então todas as semanas, para garantir a prosa, primeiro em linguados manuscritos, depois em folhas dactilografadas… Fizemos amizade e depressa encontrámos afinidades electivas comuns – a começar nos Açores, em Antero e Nemésio. Admirei o seu equilíbrio, a sua serenidade, a sua inteligência, que tantas vezes recordo, sobretudo com amigos comuns em Ponta Delgada. Era um analista político muito fino e informado. Era o melhor e o mais fiável. Releia-se o que disse ao longo de trinta anos, e facilmente se confirmará isso mesmo. Os seus juízos claríssimos encerravam muita reflexão e um profundo conhecimento dos factos. Era muito exigente e trabalhou sempre até ao fim, quando notávamos já os efeitos da doença, contra a qual combateu heroicamente. Jornalista e cidadão – faz falta o seu exemplo!

A VIDA DOS LIVROS


de 2 a 8 de Agosto de 2010

  

Acaba de sair uma importante obra da autoria de Vítor Aguiar e Silva, professor da Universidade do Minho e antigo professor da Universidade de Coimbra, académico ilustre, que merece uma leitura atenta e que põe a tónica no momentoso problema. Falo de «As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa» (Almedina, 2010), instrumento precioso pela pertinência das considerações que contém e pelos apelos que nos obriga a considerar. Li e reli com prazer e deleite os diversos textos (alguns dos quais já conhecia) e encontrei matéria suficientíssima para muitas reflexões e para sérios motivos mobilizadores – em prol da cultura, da língua, da educação e da ciência, contra cépticos e dogmáticos.

Biblioteca joanina de Coimbra

ENTRE CRISES E INTERROGAÇÕES
Num tempo de crises e de interrogações, de dúvidas e perplexidades, faz sentido pôr o dedo na ferida do vazio das Humanidades, que pressupõe análises e diagnósticos diferenciados. O problema não é apenas lusitano, mas como com o mal dos outros podemos nós bem, é indispensável que partamos do que ocorre cá por casa, para tentarmos perceber com que linhas nos iremos coser e o como deveremos agir. A causa das Humanidades é defendida (e outra coisa não seria de esperar) com elevação e inteligência e demarcação nítida de qualquer «requisitório anti-moderno contra os malefícios da sociedade técnica e industrial», com uma preocupação com a abertura de novos horizontes para a ciência como cultura e para a cultura como diálogo entre os vários saberes. George Steiner tem falado, em vários tons e registos, mas sempre com especial veemência, destes temas. E temos de nos perguntar (sem ceder aos discursos tremendistas sobre a educação, que só servem para enquistar posições e piorar as coisas) se «a nossa escolaridade, hoje, é amnésia planificada», como afirma o crítico, que também nos alerta para o facto de «a investimentos milionários no arquivo e na conservação do património bibliográfico, documental e artístico» se contrapor a «objectiva secundarização a que são votadas quotidianamente as Humanidades no ensino, na investigação e na irradiação social».

 

RECUSAR O CONGELAMENTO DA MEMÓRIA
De facto, temos de recusar o congelamento da memória, ou a sua museificação, que conduz ou à subalternização das Humanidades (como se fossem reminiscências arcaicas), ou à sua consideração puramente formal ou sistémica, como se a realidade se pudesse estudar em museus de cera ou com figuras empalhadas… Esterilizar a literatura através de análises esquemáticas e estereotipadas conduz à desmotivação, ao desinteresse e ao insucesso. Participei, aliás, há dias, em Santander, no inesquecível Palácio da Madalena, a convite de Josemaria Ballester, numa extraordinária reflexão sobre o novo conceito de Património Cultural, que procura acabar com a velha oposição entre património e criação contemporânea e dá lugar à ligação entre pedras vivas e pedras mortas, entre património, herança, memória e criação. Assim, ganha sentido a protecção do património material e imaterial e o tema das Humanidades torna-se crucial, como salvaguarda do que é comum e do que diferencia. E, com muita saudade, lembrámos a memória do mestre (que o foi de muitos de nós), que nos lançou no estudo e aprofundamento de todos estes difíceis temas – refiro-me a Pepin Vidal-Beneyto.

CRISE DE CONHECIMENTO
Mas voltemos ao livro. Aí se afirma que a crise das Humanidades encontra as suas raízes na «crise do conhecimento da língua materna, que depois condiciona a prática da leitura e a compreensão dos textos literários, históricos, filosóficos etc. Todas as Humanidades se fundam no conhecimento e na prática da língua e sobretudo na leitura e na interpretação de textos, em particular de textos literários». Neste sentido, o autor fala de grandes reformas urgentes, a efectuar na educação: «melhorar, fortalecer e enriquecer o conhecimento da língua portuguesa». Não se trata, porém, de uma proposta ao lado de tantas outras, mas de uma prioridade fundamental, centrada não em «tecnicismos logocráticos e abstrusos», mas no incentivo da leitura dos textos, na prática da expressão oral e escrita, na interpretação e numa especialíssima atenção aos textos literários de diferentes épocas e géneros. Não há nitidez de espírito sem ideias claras e distintas, não há conhecimento sem o contacto com os autores e os textos originais. A pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem na exposição, a indigência das ideias – tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença que atingem as Humanidades e a literatura. As cabeças bem feitas, de que falava Montaigne, e Edgar Morin recorda, exigem abertura de espírito, diálogo entre saberes, capacidade de conhecer e compreender.

A MAIS ESPLENDOROSA IRRADIAÇÃO DE PORTUGAL
A língua portuguesa é vista por Vítor Aguiar e Silva como «a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal». É verdade. No entanto, isso obriga-nos a especiais responsabilidades no bom domínio do português e na sua defesa e protecção. Mas a responsabilidade essencial centra-se na valorização da cultura e da ciência, como faces da mesma moeda. Lembremo-nos de Pico della Mirandola, para quem as Humanidades iam do conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao espírito filosófico e científico. Nada pode ser estranho às Humanidades. E se se nota, presentemente, descrença relativamente a essa opção, no ensino e na escolha de uma profissão, a verdade é que não estamos a falar de um domínio fechado e cabisbaixo, mas a procurar novas perspectivas, susceptíveis de abrir novas oportunidades. Afinal, não podemos esquecer que a grave crise financeira que vivemos deveu-se fundamentalmente à desvalorização da capacidade de criar e de inovar, nas duas últimas décadas. Ora, se a cultura e um novo espírito, capazes de acolher e aprofundar as Humanidades, entrarem na ordem do dia, isso significará que se dá especial ênfase ao seguinte: «o discurso das Humanidades tem de ser sempre (…) a defesa intransigente contra os dogmáticos, os tiranos e os espoliadores da liberdade e da dignidade do homem, no plano das ideias e dos valores, e no plano das práticas concretas». Veja-se, pois, que a apologia das Humanidades nada tem a ver com uma referência datada ou retrospectiva. Trata-se de um apelo ao universalismo do diálogo entre saberes. Percebe-se que o autor, ao longo do livro, insista na «elaboração das Humanidades», como «saberes sistematizados que ensinem o homem a falar, a discorrer, a interpretar, a argumentar, a ponderar os valores, a tomar decisões na esfera política, a representar poética e simbolicamente as suas acções, as suas virtudes, as suas misérias e os seus sonhos». Humanidades relacionam saberes básicos que, por sua vez, pressupõem competências, com instrumentos para compreender e produzir textos de diversa índole, com património escrito pelas gerações que nos antecederam e com a tomada de consciência da dignidade e das limitações da humanidade. Aguiar e Silva assume, com coragem, essa atitude, até porque «são os textos, nas suas formas e nos seus sentidos, que consubstanciam a literatura».

UMA CITAÇÃO
“As Humanidades são saberes disciplinares ensinados e cultivados nas Escolas, desde o Ensino Básico até à Universidade, que se têm constituído ao longo dos séculos e que têm como objecto de estudo o homem enquanto asnimal que fala, que escreve, que se exprime e comunica através de textos orais e de textos escritos, assim criando mitos, religiões, poemas, narrativas, leis, ordenamentos políticos, sistemas filosóficos, teorias científicas, etc., que consubstanciam as civilizações e as culturas. As Humanidades são, por isso mesmo, saberes indissociáveis da memória histórica do homem e saberes cuja teoria e cuja prática são fundamentais na construção do presente e do futuro. Esta obra é uma reflexão preocupada, mas não pessimista, sobre a relevância do ensino das Humanidades num mundo e em Escolas em transformação profunda e célere”.


Guilherme d'Oliveira Martins