RUI DUARTE CARVALHO (1941-2010)
A melhor homenagem é lê-lo, a sua obra está publicada na Cotovia e merece ser visitada e revisitada. Eis um testemunho tocante do escritor:
«Hoje continuo a não conseguir andar por fora muito tempo sem devolver-me ao murmúrio de Luanda, à noite, que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, onde a vizinhança me trata por brancurui, e sem continuar a meter-me sempre que posso por esses suis abaixo, a penetar desertos e a inventar pastores. Procurei sempre, sob qualquer situação ou regime, e fosse quem fosse que estivesse a mandar, viver a condição de cidadão comum. Lido mal com o privilégio, caiba ele a quem couber, até a mim mesmo, e nunca consegui deixar de sentir-me, tanto antes como depois da independência, tido como minoritário, quer dizer, subalterno ou intruso que incomoda sempre, desde que dê nas vistas. Acho que entretanto sosseguei bastante, na vida, quando, já faz algum tempo, dei conta que afinal não só jamais viria a ser o melhor do mundo, quanto mais cá na banda. E que também não tinha obrigação nenhuma de o ser. Mas uma das questões pessoais que se me anda agora, com a idade, a por com mais frequência, é a de saber se será possível continuar a envelhecer sem sucumbir de todo a uma senilidade insuportavelmente azeda ou sem incorrer também numa dessas beatitudes patetas e patéticas que pretendem fundamentar-se numa sabedoria qualquer que a idade acumulada por si só garantiria. É verdade que um percurso biográfico se faz de tempos, de lugares, modos, percepções, ocorrências, experiências, resultados, aquisições, perplexidades, digestões e ressacas. Mas também é verdade que eu não vou nunca deixar de permanecer muito irremediavelmente ingénuo, embora não de todo burro, e de lidar muito mal com toda a ordem de leviandade, de irresponsabilidade, de arbitrariedade, de mentira, de prepotência, chantagem, esperteza, insolência e soberba, e de achar que o que mais envenena as relações entre as pessoas, quaisquer relações, é o uso e o abuso da boa-fé dos outros. E é disso que o mundo está cheio e a bem dizer se faz. E há de fazer-se sempre, talvez, porque afinal, parece, é assim mesmo que ele é. Temo não chegar nunca a ser capaz, mesmo senil, de vir a conformar-me com isso. E o resto são umas ideias minhas que ando ainda cá com elas.»
Ruy Duarte de Carvalho