Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Contagem decrescente - Japão (3) A primeira espingarda do Japão - Hoje convocamos o próprio Fernão Mendes Pinto para nos dizer como foi introduzida uma espingarda no Japão. A descrição é conhecida e apetitosa. Recorremos à versão de Maria Alberta Menéres. É sempre muito bom relermos a “Peregrinação”: “…Nós os três portugueses, como não tínhamos veniaga em que nos ocupássemos, gastávamos o tempo em pescar e caçar, e ver templos dos seus pagodes que eram de muita majestade e riqueza, nos quais os bonzos, que são os seus sacerdotes, nos faziam muito gasalho, porque toda gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversadora. No meio desta nossa ociosidade, um dos três que éramos, de nome Diogo Zeimoto, tomava algumas vezes por passatempo atirar com uma espingarda que tinha de seu, a que era muito inclinado, e na qual era assaz destro. E acertando um dia de ir ter a um paul onde havia grande soma de aves de toda a sorte, matou nele com a munição, uma vinte e seis marrecas. Os japões, vendo aquele novo modelo de tiros que nunca até então tinham visto, deram rebate disso ao nataquim que neste tempo andava vendo correr uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o qual espantado desta novidade, mandou logo chamar o Zeimoto ao paul onde estava caçando, e quando o viu vir com a espingarda às costas, e dois chins carregados de caça, fez disto tamanho caso que em todas as coisas se lhe enxergava o gosto do que via, porque como até então naquela terra nunca se tinha visto tiro de fogo, não sabiam determinar o que aquilo era, nem entendiam o segredo da pólvora e assentaram todos que era feitiçaria".
Contagem decrescente - Japão (2) A Peregrinação que preparamos para o fim do ano será acompanhada aqui a par e passo. O Embaixador Martins Janeira recorda deste modo a chegada dos portugueses ao Japão. Trata-se de uma invocação que dá bem nota da importância deste contacto dos primeiros europeus com o Império do Sol Nascente: “A praia onde os Portugueses primeiro desembarcaram fica em Nishimura Ko-ura. É uma longa fímbria de areia branca entre a manta verde da terra e o espelho azul do mar. Contemplei-a do cimo dum castelo de rochedos altíssimos, erguidos contra os ventos do largo, e de cuja altura se desfruta um panorama admirável sobre o oceano infinito. A este abrigo veio dar o junco dos portugueses, impelido por uma tempestade, talvez um dos tufões terríveis que no fim do Verão, princípios do Outono, costumam assolar o Japão, espalhando devastações e mortes. No alto dos rochedos foi, em 1927, levantada uma pedra rústica, de uns três metros de altura, com uma inscrição japonesa relativa à introdução da espingarda – teppo –, sem alusão aos Portugueses. Há ainda um pequeno templo xintoísta e uma estela de cimento com uma inscrição dedicada aos mortos da última guerra – a todos os mortos. É curioso notar que todos os monumentos aos mortos desta guerra que se vêem no Japão são dedicados a todos os mortos, de todos os países, incluindo os inimigos. Admirável sentimento humano do país mais patriótico de todos, que aboliu os ressentimentos do patriotismo e quer lembrar e despertar apenas o sentimento de amor-dos-homens, da irmandade na morte. É um novo sentimento de humanidade, que finalmente começa a dealbar na consciência dos homens e a substituir o antigo culto militar dos heróis e do nacionalismo estreito. (...) Além do estranho aspecto dos Portugueses e das suas bárbaras maneiras de comerem com os dedos, do modo ruidoso e emotivo como falavam, o que mais chamou a atenção dos Japoneses foi as espingardas que traziam. O senhor da ilha, Tokitaka, compreendeu imediatamente o seu extraordinário valor no Japão militar, e pensou: «Isto é um tesouro singular que não tem igual na Terra.» Chamaram-lhe teppo, nome que ainda persiste e que teria valor decisivo no futuro do Japão, dando a vitória aos senhores que compreenderam o alcance da nova técnica e a introduziram nos seus exércitos.» - Armando Martins Janeira, Figuras de Silêncio – a Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje.
O Embaixador Martins Janeira com o escritor Shusaku Endo (1968).
O Mário era da minha geração, tínhamos a mesma idade. Conhecemo-nos há mais de trinta anos, graças ao João Gomes e ao Mário Mesquita, num tempo em que nas páginas de Análise Política do DN eu tinha uma coluna que, em homenagem a Alexandre Herculano, baptizei de “O Calcanhar de Aquiles”. Falávamos então todas as semanas, para garantir a prosa, primeiro em linguados manuscritos, depois em folhas dactilografadas… Fizemos amizade e depressa encontrámos afinidades electivas comuns – a começar nos Açores, em Antero e Nemésio. Admirei o seu equilíbrio, a sua serenidade, a sua inteligência, que tantas vezes recordo, sobretudo com amigos comuns em Ponta Delgada. Era um analista político muito fino e informado. Era o melhor e o mais fiável. Releia-se o que disse ao longo de trinta anos, e facilmente se confirmará isso mesmo. Os seus juízos claríssimos encerravam muita reflexão e um profundo conhecimento dos factos. Era muito exigente e trabalhou sempre até ao fim, quando notávamos já os efeitos da doença, contra a qual combateu heroicamente. Jornalista e cidadão – faz falta o seu exemplo!
Acaba de sair uma importante obra da autoria de Vítor Aguiar e Silva, professor da Universidade do Minho e antigo professor da Universidade de Coimbra, académico ilustre, que merece uma leitura atenta e que põe a tónica no momentoso problema. Falo de «As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa» (Almedina, 2010), instrumento precioso pela pertinência das considerações que contém e pelos apelos que nos obriga a considerar. Li e reli com prazer e deleite os diversos textos (alguns dos quais já conhecia) e encontrei matéria suficientíssima para muitas reflexões e para sérios motivos mobilizadores – em prol da cultura, da língua, da educação e da ciência, contra cépticos e dogmáticos.
Biblioteca joanina de Coimbra
ENTRE CRISES E INTERROGAÇÕES Num tempo de crises e de interrogações, de dúvidas e perplexidades, faz sentido pôr o dedo na ferida do vazio das Humanidades, que pressupõe análises e diagnósticos diferenciados. O problema não é apenas lusitano, mas como com o mal dos outros podemos nós bem, é indispensável que partamos do que ocorre cá por casa, para tentarmos perceber com que linhas nos iremos coser e o como deveremos agir. A causa das Humanidades é defendida (e outra coisa não seria de esperar) com elevação e inteligência e demarcação nítida de qualquer «requisitório anti-moderno contra os malefícios da sociedade técnica e industrial», com uma preocupação com a abertura de novos horizontes para a ciência como cultura e para a cultura como diálogo entre os vários saberes. George Steiner tem falado, em vários tons e registos, mas sempre com especial veemência, destes temas. E temos de nos perguntar (sem ceder aos discursos tremendistas sobre a educação, que só servem para enquistar posições e piorar as coisas) se «a nossa escolaridade, hoje, é amnésia planificada», como afirma o crítico, que também nos alerta para o facto de «a investimentos milionários no arquivo e na conservação do património bibliográfico, documental e artístico» se contrapor a «objectiva secundarização a que são votadas quotidianamente as Humanidades no ensino, na investigação e na irradiação social».
RECUSAR O CONGELAMENTO DA MEMÓRIA De facto, temos de recusar o congelamento da memória, ou a sua museificação, que conduz ou à subalternização das Humanidades (como se fossem reminiscências arcaicas), ou à sua consideração puramente formal ou sistémica, como se a realidade se pudesse estudar em museus de cera ou com figuras empalhadas… Esterilizar a literatura através de análises esquemáticas e estereotipadas conduz à desmotivação, ao desinteresse e ao insucesso. Participei, aliás, há dias, em Santander, no inesquecível Palácio da Madalena, a convite de Josemaria Ballester, numa extraordinária reflexão sobre o novo conceito de Património Cultural, que procura acabar com a velha oposição entre património e criação contemporânea e dá lugar à ligação entre pedras vivas e pedras mortas, entre património, herança, memória e criação. Assim, ganha sentido a protecção do património material e imaterial e o tema das Humanidades torna-se crucial, como salvaguarda do que é comum e do que diferencia. E, com muita saudade, lembrámos a memória do mestre (que o foi de muitos de nós), que nos lançou no estudo e aprofundamento de todos estes difíceis temas – refiro-me a Pepin Vidal-Beneyto.
CRISE DE CONHECIMENTO Mas voltemos ao livro. Aí se afirma que a crise das Humanidades encontra as suas raízes na «crise do conhecimento da língua materna, que depois condiciona a prática da leitura e a compreensão dos textos literários, históricos, filosóficos etc. Todas as Humanidades se fundam no conhecimento e na prática da língua e sobretudo na leitura e na interpretação de textos, em particular de textos literários». Neste sentido, o autor fala de grandes reformas urgentes, a efectuar na educação: «melhorar, fortalecer e enriquecer o conhecimento da língua portuguesa». Não se trata, porém, de uma proposta ao lado de tantas outras, mas de uma prioridade fundamental, centrada não em «tecnicismos logocráticos e abstrusos», mas no incentivo da leitura dos textos, na prática da expressão oral e escrita, na interpretação e numa especialíssima atenção aos textos literários de diferentes épocas e géneros. Não há nitidez de espírito sem ideias claras e distintas, não há conhecimento sem o contacto com os autores e os textos originais. A pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem na exposição, a indigência das ideias – tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença que atingem as Humanidades e a literatura. As cabeças bem feitas, de que falava Montaigne, e Edgar Morin recorda, exigem abertura de espírito, diálogo entre saberes, capacidade de conhecer e compreender.
A MAIS ESPLENDOROSA IRRADIAÇÃO DE PORTUGAL A língua portuguesa é vista por Vítor Aguiar e Silva como «a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal». É verdade. No entanto, isso obriga-nos a especiais responsabilidades no bom domínio do português e na sua defesa e protecção. Mas a responsabilidade essencial centra-se na valorização da cultura e da ciência, como faces da mesma moeda. Lembremo-nos de Pico della Mirandola, para quem as Humanidades iam do conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao espírito filosófico e científico. Nada pode ser estranho às Humanidades. E se se nota, presentemente, descrença relativamente a essa opção, no ensino e na escolha de uma profissão, a verdade é que não estamos a falar de um domínio fechado e cabisbaixo, mas a procurar novas perspectivas, susceptíveis de abrir novas oportunidades. Afinal, não podemos esquecer que a grave crise financeira que vivemos deveu-se fundamentalmente à desvalorização da capacidade de criar e de inovar, nas duas últimas décadas. Ora, se a cultura e um novo espírito, capazes de acolher e aprofundar as Humanidades, entrarem na ordem do dia, isso significará que se dá especial ênfase ao seguinte: «o discurso das Humanidades tem de ser sempre (…) a defesa intransigente contra os dogmáticos, os tiranos e os espoliadores da liberdade e da dignidade do homem, no plano das ideias e dos valores, e no plano das práticas concretas». Veja-se, pois, que a apologia das Humanidades nada tem a ver com uma referência datada ou retrospectiva. Trata-se de um apelo ao universalismo do diálogo entre saberes. Percebe-se que o autor, ao longo do livro, insista na «elaboração das Humanidades», como «saberes sistematizados que ensinem o homem a falar, a discorrer, a interpretar, a argumentar, a ponderar os valores, a tomar decisões na esfera política, a representar poética e simbolicamente as suas acções, as suas virtudes, as suas misérias e os seus sonhos». Humanidades relacionam saberes básicos que, por sua vez, pressupõem competências, com instrumentos para compreender e produzir textos de diversa índole, com património escrito pelas gerações que nos antecederam e com a tomada de consciência da dignidade e das limitações da humanidade. Aguiar e Silva assume, com coragem, essa atitude, até porque «são os textos, nas suas formas e nos seus sentidos, que consubstanciam a literatura».
UMA CITAÇÃO “As Humanidades são saberes disciplinares ensinados e cultivados nas Escolas, desde o Ensino Básico até à Universidade, que se têm constituído ao longo dos séculos e que têm como objecto de estudo o homem enquanto asnimal que fala, que escreve, que se exprime e comunica através de textos orais e de textos escritos, assim criando mitos, religiões, poemas, narrativas, leis, ordenamentos políticos, sistemas filosóficos, teorias científicas, etc., que consubstanciam as civilizações e as culturas. As Humanidades são, por isso mesmo, saberes indissociáveis da memória histórica do homem e saberes cuja teoria e cuja prática são fundamentais na construção do presente e do futuro. Esta obra é uma reflexão preocupada, mas não pessimista, sobre a relevância do ensino das Humanidades num mundo e em Escolas em transformação profunda e célere”.