Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
José Eduardo Agualusa acaba de publicar “Milagrário Pessoal”(D. Quixote, 2010) uma ilustração viva do diálogo da língua e das línguas e um apelo à criatividade e à ligação forte entre a linguagem e a vida: “Assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. Mesmo que não o façamos de forma deliberada, todos tendemos a seleccionar palavras que utilizamos com maior frequência e esse uso forma-nos ou deforma-nos, no corpo e no espírito”. O livro é entusiasmante, arrasta-nos não apenas pelo enredo, mas também pela causa que ele pressupõe – a defesa da língua como pátria de várias pátrias e expressão de múltiplos sentimentos. O tema da busca de neologismos entrelaça-se com o do amor – e uma espécie de liberdade libertária procura a causa da língua como um tema de combate…
HETEROGENEIDADE DA LÍNGUA A lusofonia é heterogénea, é multifacetada, é inesperada. Reúne povos diferentes e sensibilidades múltiplas pelo mundo repartidas. O que a caracteriza? Antes do mais, a própria diversidade, a leveza, a abertura, a complementaridade, o diálogo. Estamos perante uma língua de várias culturas, e em face de uma língua que anima várias línguas. Não há uma lusofonia, mas lusofonias. E quando lemos Sérgio Buarque de Holanda, nas suas inesquecíveis “Raízes do Brasil”, encontramos na «cordialidade» um tema lusófono por excelência. Como diz António Cândido: “o homem cordial é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do individuo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários” A cordialidade não é formal, não é conformista, refere-se a “expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Georges Bernanos maravilhou-se com a invenção de um povo apostado numa vida decente, contra todas as dificuldades. A cordialidade lusófona é mais ampla e complexa do que a do Brasil, mas tem a mesma raiz. Como afirmou Mia Couto: “o português vai-se deslocando do espartilho da oficialidade para zonas mais íntimas”. Gilberto Freire estudou o luso-tropicalismo e universalizou-o. Fernando Henrique Cardoso reconheceu a intuição do autor de “Casa Grande e Senzala” e disse que o Brasil é culturalmente integrador e socialmente injusto, e Darcy Ribeiro reconheceu que Gilberto “de certa forma, fundou – ou, pelo menos, espelhou – o Brasil no plano cultural”. A lusofonia caracteriza-se pelas “sociedades sincréticas e harmónicas assentes na mestiçagem”. A convergência cultural supera as diferenças étnicas. E a ideia de comum pátria maior, que Vitorino Nemésio designava como “pan-lusismo”, alarga ainda mais essa convergência e essa síntese. E julgo que aqui o meu amigo Miguel Real compreenderá a minha preocupação de ler a cultura portuguesa à luz da não ruptura e da síntese. A lusofonia pressupõe uma dialéctica e uma convergência – a partir dos antagonismos da economia e da cultura – a cultura europeia em diálogo com as culturas indígenas, a presença africana, a relação tensa do bandeirante e do senhor de engenho, o pano de fundo da presença do senhor e do escravo.
O CASO ESPECIAL DE CABO VERDE Nesta convergência, Cabo Verde é um caso especial (por isso me bati tanto pela classificação da Cidade Velha como património da humanidade), é uma placa giratória da lusofonia universal. Tal característica merece especial atenção. E a obra pioneira de Baltazar Lopes da Silva, cultor da língua portuguesa e porta-voz da especificidade cultural crioula, como factor de unidade e não de divisão, à frente da “Claridade” leva-nos a compreender o fenómeno. O paradoxo (ser uma língua de várias culturas) é expressão da diversidade e dos antagonismos, apelando a uma espécie de “distância unitiva”, de que falava Emmanuel Mounier, em nome da dignidade das pessoas. E em Cabo Verde, temos de invocar a «morabeza» (lida pausadamente, com destaque da tónica), sinónimo de afabilidade e gentileza ou de expansividade e trato fácil, associados a um sentido criador e culto (que o Padre Vieira bem notou na sua passagem pela Cidade Velha). E se referimos a cordialidade e a morabeza, não podemos deixar de recordar a “morrinha” galego-portuguesa, a nossa melancolia, que nos leva à saudade (de D.Duarte a Garrett, Rosalia de Castro, Pascoaes e Cesária Évora), a lembrança e o desejo, o mal de que se gosta e o bem de que se padece, sinal do paradoxo que corporizamos e da “maravilhosa imperfeição” de que fala Eduardo Lourenço. Mas António Tabucchi põe-nos de sobreaviso, ao recusar a lusofonia como uma invenção meta-histórica. Lusofonia é vida e diferença. De facto, num tempo de globalização, impõe-se dar-lhe um sinal não explicativo, não uniformizador, não paternalista, mas de diferença e de abertura. Daí que a literatura e a arte tenham um papel especial na afirmação e no desenvolvimento da lusofonia. Saídos do que podemos designar como a “década Saramago”, correspondente ao momento em que a língua portuguesa teve o primeiro Prémio Nobel da Literatura, é tempo de cuidar do património comum da lusofonia. É indispensável reforçar a dignidade e a projecção do Prémio Camões, que já distinguiu na sua vida as maiores referências da lusofonia literária. Mas a maior exigência é a do conhecimento mútuo, uma vez que, só assim, haverá compreensão. Recordemos de memória (esquecendo tantos): Pepetela e Ruy Duarte de Carvalho, Craveirinha e Mia Couto (mas também Rui Knopfli, Fernando Gil e Eugénio Lisboa), Vera Duarte e Germano de Almeida, António Baticã Ferreira, Alda do Espírito Santo e Albertino Bragança, Fernando Sylvan e Luís Cardoso…E na pátria irmã brasileira, a lista é interminável. António Cândido foi e é um incansável cicerone dessa geografia fantástica de um património imaterial que precisamos pôr em confronto na encruzilhada lusófona. Presisamos, no fundo, de nos conhecermos melhor portugueses e lusófonos.
MILAGRÁRIO COMO APELO MUITO SÉRIO José Eduardo Agualusa deixa bem claro em “Milagrário Pessoal” que, assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam a nós. E cita um conto ovimbundo, em que a linguagem ágil e harmoniosa que era a dos pássaros é roubada. E o lema de toda a obra pode resumir-se numa máxima gloriosa e «revolucionária» – «a língua é a nossa mátria». E uma das personagens, Fadário da Luz do Espírito Santo, um professor timorense, resistente da liberdade, fazia a sua luta a recitar sonetos de Camões – «Se quando vos perdi, minha esperança…». E a palavra esperança (lida pausadamente) ganhava uma força especial (em vez da «esprança» estropiada que usamos, esquecendo a pronúncia de Camões, pausada e com as vogais abertas). Caetano Veloso vem à memória: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Que é a lusofonia senão esse diálogo universal centrado na cordialidade e na distância unitiva da dignidade pessoal? Amin Maalouf faz-se ouvir – “quanto mais identidades partilhamos mais singulares nos tornamos”.
NOTA Aníbal Pinto de Castro, um cultor requintado da língua e da literatura, deixou-nos há dias. Conheci-o bem e contei com a sua amizade, com o seu saber e com a sua ironia. E tantas vezes falámos da dimensão imaginária do tempo, em diálogo com os clássicos que amava. Quando soube da notícia da morte e recordei-o pelo muito que nos legou, em especial sobre o Padre António Vieira e sobre Camilo Castelo Branco – supremos artífices da língua como a realidade mais viva que a cultura tem. É em sua memória que alinho as reflexões que se seguem.
Guilherme d'Oliveira Martins
Mais para ler
de 18 a 25 de Outubro de 2010
Nas “Lendas e Narrativas” (1851), Alexandre Herculanoprocura construir o imaginário colectivo da pátria, através da criação de mitos através da ficção histórica. “Alcaide de Santarém”, “Arras por foro de Espanha”, “O Castelo de Faria”, “A Abóbada”, “A Dama do Pé de Cabra”, “O Bispo Negro”, “A Morte do Lidador”, mas também o relato da viagem “De Jersey a Granville” e a novela “Pároco de Aldeia” foram publicados de 1839 a 1844 no “Panorama” e têm um sentido pedagógico e criador de uma tradição verosímil que se deveria constituir em elemento fundamental para erigir o “espírito do povo”.
HERCULANO COMO REFERÊNCIA CULTURAL Como diz A.M. Machado Pires: “na celebração do bicentenário do seu nascimento, os portugueses dos conturbados inícios do século XXI devem olhar o autor de Eurico e da História de Portugal não como um ‘velho’ romântico sentimental e um patriota exaltado e fora de moda, mas como um raro exemplo de criatividade literária, de profundo amor à séria investigação historiográfica e de coerência de conduta”. Sendo um exemplo moral, Alexandre Herculano foi o cientista e o cidadão na acepção que ainda hoje podemos compreender e seguir, cuja exemplaridade deve ser referenciada. A sua coerência intelectual levou-o a romper com a mentalidade dominante no seu tempo, tendo dissabores fortes por causa desse choque. No entanto, passado o tempo e feita a releitura dos acontecimentos e das polémicas, podemos dizer que o intelectual se eleva no longo prazo como um símbolo, que se junta à figuras maiores da cultura portuguesa, como Camões, Sá de Miranda e Vieira. A sua vida está recheada de provas desde o exílio do jovem envolvido numa conspiração fracassada até ao exercício de uma vida cívica, autenticamente, desprendida de honras e prebendas. Soldado incógnito lutou de armas na mão pelo que acreditava - a causa da liberdade. Quando lemos as suas considerações sobre os ideais, notamos, por isso, que há o testemunho vivo de quem não fala no domínio dos sonhos, mas no plano realíssimo das dificuldades, das provações e dos dramas. E depressa trocou as armas pela pena e pelo estudo dos arquivos documentais. Apesar de todas as polémicas e incompreensões, de todos os juízos injustos e precipitados dos seus adversários, de todas as iras de que compreensivelmente foi assaltado ou das suas próprias paixões, manteve-se coerente na relação com Deus e os homens – “creio que Deus é Deus e os homens livres”…
LIGAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA História e literatura, liberdade e criação tinham de se ligar. E Herculano fê-lo com serenidade e determinação, mas também com personalidade temperamental e nunca indiferente ou conformista. Em nome das convicções mais íntimas não pôde acomodar-se ao fanatismo dos clérigos miguelistas ou à cegueira dos que não queriam ver a importância do exercício crítico na análise dos acontecimentos históricos. O que o preocupava era a procura do ânimo capaz de realizar a vontade. Sem memória, o futuro torna-se pobre e frágil. Daí ter sido o pioneiro (de modo diferente, mas complementar de Garrett) no conhecimento do País, do seu património histórico, na respectiva preservação. A revista “Panorama”, órgão da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, é um exemplo único. Ainda hoje essa lição merece ser relida e actualizada e esse espírito tem de ser aprofundado. Bem recorda Machado Pires o que Vitorino Nemésio escreveu sobre “A Mocidade de Herculano”, uma obra-prima da literatura, do autêntico espírito universitário e um testemunho vivo sobre uma personalidade de excepção e uma época fundamental no lançamento das bases do tempo que ainda vivemos. Ao lermos a antologia literária, cuidadosamente preparada por A.M. Machado Pires (com Maria Helena Santana) vem-nos à recordação o entendimento de Maria de Lourdes Belchior sobre o facto de a poesia de Herculano ser um verdadeiro “breviário romântico”. E ainda hoje podemos perceber nessa escrita tensa e sentida uma compreensão exacta da época romântica e dos seus cânones, assumidos pelos grandes cultores europeus. E, ao lermos Eurico, o Presbítero ou O Monge de Cister, sentimos a encruzilhada da história recôndita e das inquietações contemporâneas. Eurico é a história, mas também é a confissão pessoal do autor – que lavava Nemésio (ainda ele) a dizer certeiramente que o romântico “desabafava nas costas dos mortos”.
UMA OBRA FUNDAMENTAL A poesia marca a sua relação com o sagrado e com a pátria, O Bobo (1843) trata do mito fundacional português e procura exercer o valor pedagógico da narrativa, Eurico, o Presbítero (1844), com Hermengarda, representa a apresentação de “ícones do amor absoluto” romântico, que é também apelo a uma mentalidade livre, O Monge de Cister (1848) trata ainda da solidão sacerdotal, mas depressa se afasta do tema, para se centrar na culpa, no perdão, na honra e na descrição de uma justiça desumana e aleatória, já Lendas e Narrativas (1851) procura construir o imaginário colectivo nacional, através da ficção histórica (“a história conta-nos o facto; a tradição os costumes. A história é verdadeira, a tradição verosímil; o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria” – lê-se em “O Bispo Negro”), mas também da narrativa contemporânea (de Jersey a Granville). É verdade que, no final, Herculano se tornou o “Solitário de Vale de Lobos”. A figura romântica tomou sobre os seus ombros um destino – e afastou-se da ribalta que ajudou a encenar, sobretudo como alma paradoxal da Regeneração. E se falo de paradoxo tal se deve ao facto de ter construído num primeiro momento a hipótese positiva da governança (o termo é herculaniano), mas também de ter aberto o caminho à limitação do poder e à criação de uma oposição histórica. Afinal, fazer e desfazer o poder era para o cidadão fundamental, uma vez que o centro do liberalismo estava na limitação dos poderes e na capacidade de dar espaço aos povos e aos cidadãos, numa palavra, ao “governo do País pelo País”. O paradoxo acompanha-o sempre – é conservador perante a Revolução de Setembro de 1836, em nome da legitimidade criada em Évora Monte (1834), mas reformula o seu entendimento diante da nova Constituição de 1838, do mesmo modo que será o grande inspirador da acalmação do Acto Adicional à Carta Constitucional de 1852, em nome de uma sábia síntese entre cartismo e constitucionalismo. E é assinalável verificar como este conservador liberal nunca conseguiu ser reconhecido como tal – uma vez que, apesar do seu apego a princípios ancestrais e históricos, os mais conservadores nunca entenderam Herculano, uma vez que se deixaram enquistar numa lógica retrospectiva sem compreenderem a evolução do Antigo Regime para a liberdade. De qualquer modo, conhecemos em Herculano as resistências e as polémicas, as desconfianças e as críticas relativamente aos melhoramentos materiais e à abertura de fronteiras.
ROMÂNTICO E LIBERAL Sempre que se tratou de escolher a liberdade com todas as suas consequências nunca hesitou, porém, como quando levantou a voz perante a proibição das Conferências do Casino Lisbonense – certo de que as ideias dos jovens promotores (que tanto o admiravam) não eram exactamente as suas. Assim, o agricultor de Vale de Lobos (revivendo a “aurea mediocritas” virgiliana) nunca deixou de estar atento ao que se passava no seu País – como patriota convicto no sentido romântico, preocupado com os fundamentos mas sobretudo com a vivência na acção e no governo da coisa pública. E, longe de um sebastianismo atávico e retrospectivo, Alexandre Herculano encontra o seu próprio “Desejado”, não como figura de um tempo ultrapassado (como na tragédia “Frei Luís de Sousa” do seu amigo Garrett), mas como personalidade viva e fugaz – o jovem e chorado D. Pedro V. Nele o historiador vê as qualidades do monarca liberal, do príncipe culto, do protector das artes e dos artistas, mas sobretudo defensor da justiça em todas as suas consequências.
«Tudo o que Sempre Quis Saber sobre a Primeira República em 37 mil palavras» (ICS, 2010) da autoria de Luís Salgado de Matosé uma pequena obra feita com grande cuidado, e com extraordinários espírito de síntese e sentido pedagógico. No ano das comemorações do centenário da República Portuguesa tivemos um vasto conjunto de livros alusivos à data, de valia desigual e com interesse muito irregular. Felizmente que entre as boas excepções consta este livrinho que, apesar de ter uma extensão reduzida, pressupõe uma grande reflexão e tem atrás de si muito estudo e sentido cívico. De facto, a Primeira República não pode ser analisada nos dias de hoje sem um forte sentido crítico, até porque a República restaurada em 25 de Abril de 1974 e a Constituição de 1976 foram muito marcadas pela necessidade de não se repetir os erros que tornaram fugaz e trágica a experiência iniciada em 1910. Luís Salgado de Matos optou, e bem, por analisar os claros e os escuros, as razões da vitória e os motivos da decadência, e o resultado aí está uma obra que surpreende positivamente pelo pormenor, pelo rigor dos elementos e pela clareza expositiva.
OS VALORES DA REPÚBLICA Os valores da República vêm da Antiguidade. Encontramo-los nas cidades gregas e na República Romana e, quando percorremos a Itália, recordamos as mais remotas referências políticas. É a lógica republicana que sentimos – apesar (ou por causa dela) da tensão entre o Papado e o Sacro Império, representada na proverbial oposição entre guelfos e gibelinos. O próprio Maquiavel ocupou-se da reflexão sobre a unificação italiana – o que o obrigava a vislumbrar uma República que pudesse harmonizar virtude e fortuna. E se dúvidas houvesse, eis-nos a lembrar a «Respublica Christiana» e a sua complexidade. E recordamos ainda a Suiça, ancestralmente influente neste debate, onde a qualidade de cidadão da República de Genebra podia ser adquirida por nascimento, como com Jean-Jacques Rousseau, ou por vontade, como no caso de Voltaire. Cidade de Refúgio, república de cidadãos livres, eis o lema que ainda ostenta a pátria que recebeu João Calvino. O século XIX francês, na sequência do “terror” e da Vendeia, tornou a Revolução de 1789 uma referência, apesar das vicissitudes, designadamente as tentativas realistas e o impasse entre Bourbons e Orleães, que consolidou a III República, por quase todos considerada impossível ou efémera. Alexis de Tocqueville, no seu fundamental “L’Ancien Régime et la Révolution”, explica o fenómeno a partir de uma legitimidade popular e cidadã, que permitiu a participação, a coesão e a autonomia individual, na linha das raízes antigas. Foi a paixão da liberdade que se afirmou ao longo do tempo, ora em alta, ora decaindo, ora renascendo. E assim só vê apenas trevas na revolução francesa quem a quiser ver isoladamente, como se esta não se inserisse na História.
LEMBRANDO ALEXIS DE TOCQUEVILLE No centenário da República em Portugal passa-se algo de semelhante ao que preocupava Tocqueville, uma vez que o regime saído em 1910 não pode ser visto isoladamente. De facto, o republicanismo português original não pode reduzir-se ao fugaz regime que durou até 1926. A revolução de 1820 teve raízes republicanas, a Constituição de 1822 teve um parentesco evidente com a Constituição espanhola de Cádis de 1812, a Revolução de Setembro de 1836 conteve uma configuração liberal radical, que, de algum modo, se projectou na Constituição de 1838, enquanto ainda houve óbvias influências republicanas desde as guerras civis (Maria da Fonte e Patuleia) à Regeneração de 1851, e em quase tudo o que se lhe seguiu. A monarquia liberal e os seus próceres beberam muitas vezes nessa tradição, que a própria Carta Constitucional veio a incorporar, com pragmatismo e inteligência, no Acto Adicional de 1852. E se considerarmos a intelectualidade, encontramos as repercussões do iluminismo pombalino a prosseguir no nacionalismo liberal e romântico de Garrett e Herculano, no republicanismo social da Geração de 70 e das Conferências do Casino Lisbonense (sob o magistério de Antero de Quental) e nos sinais de modernidade, de vários sentidos, da Renascença Portuguesa – desde Teixeira de Pascoaes e dos exilados do 31 de Janeiro, seguidores de Sampaio Bruno, aos futuros democratas seareiros (Cortesão, Proença e Sérgio), passando pela audácia futurista de Fernando Pessoa e do “Orpheu”.
TUDO O QUE SEMPRE QUEREMOS SABER… No pequeno livro de Luís Salgado de Matos, muito bem elaborado, publicado por ocasião do centenário da República de 1910, com o rigor e a serenidade a que nos tem habituado e que sempre se exigem na abordagem de um tema como o da actualidade do republicanismo, o autor considera que a Primeira República não durou por fragilidades próprias, mas nunca pelo facto de ser República. De facto, só tarde «começou a interiorizar a importância da disciplina parlamentar» e a perceber «a importância do facto maioritário, tanto no país como nas urnas». Por outro lado, nunca compreendeu a necessidade do sufrágio universal nem do Estado social. E o certo é que LSM, como profundo conhecedor das relações entre ordens e instituições, considera, e bem, que «a Primeira Guerra Mundial libertou zonas ocultas de violência e forçou reestruturações em Portugal», reforçando as ordens à custa das instituições. A hesitação entre a concepção da «República para os republicanos» de Afonso Costa e a «República para todos os portugueses» de António José de Almeida revelou-se fatal. A exclusão prevaleceu, o que impediu a integração plena da classe operária e dos camponeses e meios rurais na República, conduzindo à perpetuação da questão do regime. Apesar dos primeiros sinais de disciplina financeira (com os Orçamentos superavitários de Afonso Costa), a verdade é que a modernização do país tornou-se impossível pelo efeito da Guerra, sendo a reforma administrativa insuficiente. De facto, a Guerra teve consequências dramáticas, abalou as classes médias, suscitou a descrença e o descrédito. As três grandes questões (a do regime, a religiosa e a social) só foram agravadas. As duas primeiras não foram resolvidas e a última foi potenciada pelo regresso da crise financeira que precipitara o fim da monarquia constitucional. Por outro lado, as Forças Armada «deixaram de confiar nos políticos» e a Igreja Católica «fez apenas meia adesão ao regime, apesar da tendência para o «ralliement», defendida por Bento XV e Pio XI. De facto, o extremismo laicista não permitiu a normalização necessária e possível (que podemos entender melhor, conhecendo a acção de António Lino Neto à frente do Centro Católico).
O QUE FICOU DA REPÚBLICA? Luís Filipe Salgado de Matos diz que o que ficou da Primeira República foi acima de tudo a República, como possibilidade de auto-governo dos portugueses. O liberalismo monárquico tentou mudar o País, a partir do Estado, enquanto os republicanos de 1910 procuraram (sem êxito) transformar as Forças Armadas e a Igreja Católica, à sua imagem e semelhança. A instabilidade dos governos, os problemas de ordem pública, o défice do Estado (e a crise monetária, corajosamente contrariada por Álvaro Xavier de Castro), na sequência da Guerra - levaram a que regressasse a descrença que se seguiu ao Ultimato inglês. Mesmo assim, a humilhação de 1890 procurou ser combatida através de uma política de consolidação colonial (que abrangeu o reconhecimento da importância das missões e do Padroado) e da participação de Portugal ao lado dos vencedores em Versalhes. Numa palavra, a República procurou afirmar a «alegria nacionalista», apostando no restabelecimento da confiança dos portugueses em si mesmos. No entanto, a dificuldades acumularam-se. O Estado Novo procurou capitalizar a partir da instabilidade, apontando o caso da Primeira República como um «contra-exemplo». Tudo isto, apesar de Salazar ter reconhecido (em 1966) que a República «trouxe consigo um sopro de vida nova ao País, cansado e descrente».
o Escritor para quem La Literatura es fuego. Por Teresa Vieira.
O escritor peruano Mario Vargas Llosa é o Prémio Nobel da Literatura de 2010.
Para mim a Literatura é também um reflexo do real, um horizonte, um real literário e cultural um tudo no que Mallarmé disse naquela célebre frase “tout existe pour aboutir un livre”.
Vargas Llosa que está em Manhattan a leccionar neste momento na Universidade de Princeton, nunca deixou por dizer o quanto a Literatura fora o seu primeiro berço simbólico.
Vargas Lhosa teve, na minha opinião, um método curiosíssimo de libertar a contradição no esclarecimento das estruturas do poder, preocupando-se particularmente com os países onde não há democracia ou onde a liberdade está ameaçada.
Vargas Llosa empenhou-se sempre na luta pela liberdade individual: na luta por um valor criativo e sem derrota. Recordo a riqueza de detalhes sobre a vida do sertão baiano. Recordo o quanto ele sabia distinguir uma verdade pensada de uma verdade enquanto resultado diferido de algo que acontece.
“A Guerra do Fim do Mundo” (1981) e a "A Casa Verde" (1966) livro muito autobiográfico, são ambos manifestações óbvias de um grau de perfeita boa consciência cultural.
Acredito que Vargas Llosa será sempre um revolucionário perfeitamente de acordo com o seu raciocínio e também um conservador que não escapando às sociedades arcaizantes, se permite em liberdade, a explicação antropológica e social que sempre condiciona o homem.
A realidade dos oprimidos e a sua arguta denúncia será sempre conteúdo a não esquecer na Literatura de Vargas Llosa.
7 Outubro 2010 sec.XXI
Mais para ler
de 4 a 10 de Outubro de 2010
Na semana do centenário da República, escolhemos “Ideias Perigosas para Portugal – Propostas que se arriscam a salvar o País” coordenado por João Caraça e Gustavo Cardoso (Tinta da China, 2010). Como não recordar a ideia perigosa: “vamos educar o povo”? Ou a de ser independente, e livre, ou a de interpretar diferentemente os textos sagrados? É um desafio a sessenta personalidades para dizerem, com toda a liberdade, o que se pode fazer por Portugal, correndo perigos e riscos, de modo, entendendo o passado, a actualidade e o futuro. E esse entendimento pressupõe inconformismo e ínfimo constrangimento. Até porque as ideias só podem dar frutos se fizerem mexer, se forem imbuídas de movimento, ou seja, se forem perigosas.
MAS O QUE SÃO IDEIAS PERIGOSAS? Está demonstrado que as ideias são por natureza perigosas. Antero de Quental lembrou-o a Castilho na célebre polémica do bom senso e do bom gosto, e ainda há pouco a editora Tinta da China reeditou uma conferência perigosa, também do poeta de S. Miguel, sobre as causas da decadência dos povos peninsulares. Para João Caraça: “uma ideia é perigosa quando há percepção de que essa ideia, se posta em circulação, vai causar uma alteração da ordem, que a ordem existente não pode conter. Naturalmente, esta percepção tem que ver com o espaço e com o tempo, com a dimensão das populações, com a distância, com os meios de comunicação e com o momento, a circunstancia, o que faz com que algumas pessoas possam estar, numa dada época, mais predispostas para um certo número de coisas do que noutra”. Com efeito, a perigosidade está ligada à capacidade de mudar, mesmo que tal conduza apenas a repensar ou a desconstruir. Pode acontecer que as ideias nem sejam imediatamente aproveitáveis, mas, como dizia um amigo meu, se alguém tiver várias ideias e eu só puder aproveitar uma, então todos já estamos a ganhar. Este livro é, por isso, indispensável, e merece ser lido com atenção. Na capa, um galo de Barcelos pensa numa bomba pronta a rebentar. O absurdo e o paradoxo funcionam com detonadores. “A perigosidade é tanto maior quanto maior for a atractividade da ideia, mas também quanto maior for o poder contra o qual a ideia se levanta” – insiste João Caraça, na entrevista a Ana Sousa Dias que abre o livro. Para Gustavo Cardoso, “uma ideia perigosa é aquela que coloca em causa o conforto, a forma como dominamos a realidade. Enquanto sociedade, procuramos a estabilidade, as rotinas, como forma de sobrevivência na busca de equilíbrios entre os recursos, nós e o espaço. No entanto, quando essa estabilidade é posta em causa, a mudança só pode ser atingida através de ideias diferentes ou, se quisermos, perigosas. Uma ideia perigosa é uma ideia que nos leva para territórios desconhecidos, onde só podemos antecipar resultados e não ter certezas. Uma ideia perigosa é aquela que encerra a expectativa de mudança, mas não a sua inevitabilidade. De qualquer modo, creio que uma ideia é perigosa porque encerra em si a possibilidade de mudar de mãos um qualquer poder, seja ele material ou conceptual”. A capacidade de limitar o poder é a força de uma ideia perigosa.
MUITOS TEMAS, DIVERSAS PISTAS O primeiro dilema do livro liga o público e o privado. Mas não é o Estado e o particular que se opõem. Os espaços públicos têm de ser espaços de cidadãos. Miguel Sousa Lobo propõe que estejamos fora de moda, em vez de seguir receitas ou tendências repetidas e acríticas. Catarina Portas fala de “avançar às arrecuas” - o nosso atraso pode ser o nosso avanço, urge não desperdiçar o que recebemos. “Abaixo a queixa!”, urge concretizar, diz Ana Margarida Passos. E se o dinheiro deixasse de ser o critério fundamental? José Miguel Rodrigues põe esse problema muito antigo. Michael Krause fala de combinar paixão e razão económica. Afinal, como ter agilidade para criar? Nelson Olim propõe que socorramos o “outro”, com método e sem amadorismo. E Luís Soares afirma, preto no branco, que os média são a escola, havendo que mergulhar na realidade, tentando evitar o perigo da irrelevância. A ideia de serviço público, por seu turno, obriga a que a resolução dos problemas sociais não seja exclusivo do sector público ou do terceiro sector (eis a preocupação de Susana Murteira). E o valor dos fracassos? E os concursos internacionais? Depois, temos um segundo dilema: mais governo ou mais anarquia? Jorge Luís Borges, porque foi educado na Suiça, costumava dizer que mereceríamos não ter governos. Nuno Mota Pinto fala-nos, oportunamente, no Orçamento de Base Zero, o que exige um trabalho difícil de convergência. Ana Catarina Santos leva a sério a proposta de Borges. João M. Almeida propõe menos representação, mais participação e mais atenção à legitimidade do exercício. Miguel Fontes defende o voto aos 16 anos de idade. David Xavier defende o “lugar aos novos” na primeira magistratura da nação. Luís Palmeirim sugere a redução de cinquenta por cento dos funcionários públicos. E se o poder fosse examinado? – advoga João Pedro Góis. Luís de Sousa propõe vouchers para financiamento partidário. “Federar a Europa, para ter Portugal” - a ideia é de Diogo Pinto. E o voto não deveria ser obrigatório? – é Marta Rebelo a propô-lo. Um terceiro grupo de questões tem a ver com “Mais Eu ou mais Nós?”. Alexandre Herculano, cujo segundo centenário celebramos, polemizou sobre isso com os jovens da Geração de 70. José Mourinho ocupa Gustavo Cardoso. Francisco Maria Balsemão põe o dedo na ferida da gestão do tempo em nome da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Isabel Xavier Canning está apreensiva com a incapacidade de ouvir ideias (como a de transformar o país em algo socialmente funcional, com igualdade de oportunidades e deveres). António Vigário liga privacidade e sociedade aberta. Nuno David descrê de políticos que não saibam dançar. Miguel Freitas fala da demografia e da falta de pessoas e de talentos. Eugénio Teófilo ironiza sobre o casamento. Inês Botelho propõe-se levar as pessoas a dar atenção à igualdade pai / mãe, aos bairros clandestinos, à consciência ecológica urbana. Sandra Mateus fala da “turistificação” nas zonas degradadas. João Afonso proclama que todos somos gregos, da Grécia Antiga. Thiago Seixas Themudo leva-nos a reler os clássicos. Vem depois a sacramental pergunta queirosiana: “Mais Cidades ou mais Serras?”. Não, não são Jacinto e Zé Fernandes que encontramos, mas, entre outros, Pedro Russo (a propor centros de qualidade fora dos centros urbanos), Susana Fonseca e Vera Rainho (em prol da redução da pegada ecológica), José Miguel Urbano (defendendo Grandes Escolas), Sónia Baptista (a dizer que é preciso imaginar para respirar) ou Helder Maiato (em nome da mudança de capital). Por fim, está em causa “Mais Crença ou Mais Razão?”. Nuno Artur Silva pede mais ficção e mais mitografia (como Bernardo Rodrigues). Rui Tavares propõe uma nova Universidade (pequena, aberta, flexível). Daniela Santiago defende a credibilidade informativa em vez da falsa objectividade. Yasser Omar desfralda a bandeira da literacia. Mónica Bettencourt Dias defende o interessante Provedor da Racionalidade.
UMA IDEIA FORTE Ao longo do livro, encontramos ideias fortes e fracas, numa preocupação geral de procurar contrariar o que subsiste de conformista e de estático. Percebemos que muitas vezes temos razão antes de tempo, ou até fora de tempo. Importa, por isso, usar as ideias, para que elas ganhem a eficácia oportuna. O passado, o presente e o futuro estão em diálogo permanente, uma vez que é na relação com o tempo que tudo se opera ou desfalece. “O estado de repouso no universo é o movimento”. João Caraça recorda esta frase, “banal e contraditória à primeira vista”. De facto, mistura “o estar parado com o estar a andar”. Mas acrescenta que “esta afirmação, na sua acepção mais rigorosa – isto é, de que na ausência de qualquer força um corpo é eternamente animado, por um movimento uniforme e rectilíneo -, é uma das ideias mais revolucionárias da história do pensamento humano sobre a natureza. É uma das bases da física moderna, e numa forma ligeiramente diferente, mais generalizada, designa-se por ‘princípio da relatividade de Galileu’. Foi este grande homem de ciência que primeiro o definiu claramente”. Afinal, deixa de ser preciso explicar a origem do movimento. Galilieu Galilei, se pudesse, seria decerto chamado a fazer o exercício de pensar ideias perigosas… E deixem-me que recorde, a finalizar, o meu saudoso amigo Fernando Gil, que gostava de ideias perigosas, quando me lembrava que nas escadas rolantes do metro, está definida uma atitude que merece atenção – mantenha-se à direita, caminhe pela esquerda. O Miguel Fontes dizia-me que aí está todo um tratado. Pomo-nos a pensar e percebemos que as ideias geram sempre dúvidas e perplexidades… Por isso, são perigosas.
Descobrir e conhecer o princípio da palavra, é um dos confrontos de especificidade inconfundível que o Escritor sempre enfrenta.
A utilização da linguagem, nomeadamente, da linguagem escrita e não desatenta à denúncia de horizontes opados, constituiu uma luta franca de Ramos Rosa à vigilância no acto de leitura do próprio acontecer.
Sempre a ressonância interior da sua escrita também visou romper o nanismo da criatividade, esse mesmo que corresponde ao homem-valor-desaparecido, e à secagem do ar que lhe é destinado por direito.
Assim, entendi a força de Ramos Rosa numa escrita que cria sempre pontes entre o homem e a sua clarificação, fermento bastante à implacável decadência de uma qualquer verdade.
Creio que os nossos dias ignoram que o mundo faz-se sonho, e sonhar faz-se mundo, como escreveu Novalis, e, ignora-se, inclusive, a inquietude do homem, tentando cessar-lhe o mosto das insensatas paixões: aquelas que são trilhos fortes e flagrantes e independentes, aquelas cuja ideia só por si age em nós.
Assistimos a tempos em que se esvai a linguagem legítima, portadora de identidades e de sentires, de tal modo que se ignora a fantástica utopia da palavra.
É então chegado o momento de recorrer mais uma e outra vez a Ramos Rosa: à sua bela e certeira palavra-flecha. E nunca é excesso recorrer à sensação do Ser saboreado.
A linguagem é uma das medidas pela qual sobressaem os homens; constitui um domínio antiquíssimo na arte da transmissão das coisas; exprime a cultura íntima à própria pátria-mãe; cria fortíssimos laços de compreensão planetária; arrasta em si a obstinação de exprimir o inexprimível; insinua-se às essências primeiras e aos fundamentos últimos; seduz em todos os limiares...
Devo dizer que receio, receio muito que os pantanosos vazios dos homens e nos quais ensaiam o exercício de supostas competências comunicacionais, obscureçam, o quanto são eles próprios os bárbaros e sua única periferia.
Em rigor, o século XXI lançou a dúvida sobre os garantes da esperança, bem como a credibilidade dos tempos do futuro, mas a conquista de adventos de novas eras, de novos saberes insubmissos, residirá em princípios de palavra que não param de datar com força-luz a interpretação dos alertas já que