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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

de 29 de Novembro a 5 de Dezembro de 2010

 

Celebram-se os oitenta anos de vida do autor da “Crónica dos Anos da Peste” (1973 e 1975). É com muito gosto que me associo à justa homenagem! Eugénio Lisboa é um ensaísta singularíssimo. Ao longo da sua vida tem sido um incansável estudioso do segundo modernismo português e da nossa cultura, com especial atenção para José Régio. Contudo, é um escritor multifacetado, com luz própria, com uma sensibilidade e uma argúcia dignas de referência especial. Com inteligência fina, tem sabido aliar a grande erudição à capacidade de compreender a realidade literária, cultural e social, distinguindo o que tem valor do que não tem. Percebe-se bem que Eugénio Lisboa apreende, com grande lucidez, os valores seguros, isto é, o que tem condições para ficar para além do sucesso efémero e passageiro. Há dias, falando de lusofonia, perguntavam-me sobre as grandes referências da literatura de Moçambique – e não tive dúvidas em referir, com Craveirinha e Mia Couto, o magistério fundamental de Eugénio Lisboa e de Rui Knopfli.

 

 

 

 

UMA VOZ INDEPENDENTE
Eugénio desde sempre afirmou-se como uma voz independente, não vulnerável a tendências ou modas. Sendo engenheiro de formação, soube ligar um sentido prático da vida à consideração da cultura como o modo mais sublime de dominar a natureza. Não há, pois, dois compartimentos na vida do intelectual – o engenheiro e o escritor completam-se naturalmente. Conheci-o em Londres e depressa percebi que nos iríamos dar muito bem, o que de facto tem acontecido. Temo-nos encontrado muitas vezes (desde a UNESCO às batalhas da cultura e da cidadania, passando pelos amigos comuns) e a empatia é natural, por convergência de valores e preocupações, de atitude e de obrigação crítica. Desconfio das torres de marfim, e Eugénio Lisboa também. As suas conferências, os seus ensaios, as suas críticas têm sempre algo de muito especial e próprio. Cada citação, cada referência corresponde à ênfase necessária e adequada de um sentido crítico. Nunca vi em Eugénio Lisboa uma concessão ao fácil, ao imediato ou à tendência do momento. E em momentos cruciais, usufruímos do seu acutilante sentido crítico, em termos que conduzem a que o tempo lhe dê razão, apesar das perplexidades imediatamente sentidas. No fundo, é um justo, que procura dizer o que pensa e o que sente, mesmo que não seja compreendido no curto prazo ou surpreenda pela rispidez da crítica. E o certo é que a sua fidelidade a José Régio e à “presença” tem correspondido a um equilíbrio sábio entre o reconhecimento da importância dessa plêiade e a capacidade para perceber quer fragilidades ou limitações quer a força inovadora e a perenidade desse grupo que tornou possível a projecção universal do “Orpheu” e de Fernando Pessoa. Hoje, é natural sentirmos que o primeiro modernismo português se afirmou por si, graças à genialidade do poeta dos heterónimos e à relevância dos seus companheiros, no entanto a qualidade dos animadores da “presença” permitiu a compreensão (e a projecção) da riqueza excepcional do grupo do “Orpheu”. Eugénio Lisboa entendeu-o bem – pondo a tónica na continuidade e na descontinuidade dos dois modernismos: continuidade no assumir da modernidade, descontinuidade na tensão entre os diferentes caminhos dos dois grupos.
 
UMA ATITUDE SERENA
A propósito da célebre consideração de Eduardo Lourenço sobre o alegado «contra-revolucionarismo» de Régio, Eugénio Lisboa fala de simplificação do ensaísta de “Labirinto da Saudade”, mas demarca-se de João Gaspar Simões na sua obsessão de desagravo, uma vez que para uma polémica ser interessante e rica é preciso que os argumentos sejam sólidos, em lugar de uma interpretação nominalista, mais baseada em supostas intenções do que na exigência crítica… Hoje sabemos que Eduardo Lourenço não quis dar um sentido político (em sentido lato) à sua apreciação, mas quis porventura salientar a diferença entre o carácter radicalmente inovador do “Orpheu” e um sentido de revisitação e de projecção da “presença”. A «contra-revolução» é nitidamente metafórica ou literária, sem o alcance pejorativo que Gaspar Simões considera. E Eugénio Lisboa entende-o com clareza, defendendo, assim, muito mais eficazmente José Régio. “Comparando o ‘Orpheu’ e a ‘presença’, (diz Eugénio Lisboa) poderíamos resumir o confronto numa fórmula talvez sumária mas com algo de verdadeiro: o primeiro modernismo foi um momento de convulsão e o segundo um momento de reflexão e consolidação” («José Régio ou a Confissão Relutante», s.d., 1988).
 

ORIGINALIDADE E SINCERIDADE
Eugénio Lisboa procura ser fiel (com inteligência e sem cedências quanto à independência crítica) a uma preocupação de Régio, bem patente no citadíssimo artigo de fundo do primeiro número da “presença” (“Literatura Viva”) – “pretendo aludir (…) a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade”. Enquanto a originalidade tem a ver com “dizer aquilo que nós realmente pensamos”, a sinceridade é um corolário dessa atitude fundamental, em nome da coerência entre pensamento e arte. E manda a verdade que se diga que Eugénio Lisboa é um mestre da clareza, que nos ensina e ler e a dizer o que se pensa do que se leu, em vez de fazer exercícios de estilo («acrobacias neogongóricas ou sistemáticos estupros»)  para dissimular ou esconder – porque se não leu, ou porque não se compreendeu. E os dois vícios, contra os quais Eugénio Lisboa se tem erguido, são muito mais comuns do que se possa julgar. Por isso, a primeira lição do mestre, parte do que dizia Spitzer – a regra de ouro da análise crítica é “ler, ler e ler” - «ler com atenção despreconcebida. Ler aguardando, sem a malícia de um programa prévio» (in Pórtico de «As Vinte e Cinco Notas do Texto», INCM, 1987). E este entendimento é fundamental, uma vez que através de Eugénio Lisboa sabemos com o que contamos. Sabemos que é um leitor criterioso, que nos dá a sua perspectiva, exigindo que ao lermos sejamos fiéis a um sentido crítico pessoal e próprio. Percebe-se, pois, porque digo que não há dois Eugénios, há uma personalidade coerente e rigorosa, em que o engenheiro e o homem de cultura formam um só carácter. E sobre essa coerência oiçamo-lo ainda: “há hoje uma espécie de receio neurótico da clareza, que anda, penso eu, a pedir diagnóstico. Dizia Vauvenargues que a clareza é a boa fé dos filósofos, que é como quem diz: quem não deve não teme. Eu diria, com maior atrevimento, que o desejo da clareza é a pedra de toque da boa fé de quem quer que se exprima” (Ididem). E António Sérgio vem à baila, com a conhecida afirmação de pedagogo: “Não confundamos. Um eclipse do sol é uma escuridão; mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara”… Se o poeta pode ser obscuro, o crítico tem de ser claríssimo. E neste mês em que assinalamos os cem anos da morte de Tolstoi, podemos citar o escritor russo: “Não alcançamos a liberdade, buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência”. O ofício de ler é a grande exigência de Eugénio Lisboa, que o tempo tem revelado como lição perene e necessária. E que melhor ensino podemos tirar de um mestre senão o culto das ideias claras e distintas? Muitos parabéns Querido Amigo!      

 

Guilherme d'Oliveira Martins

  

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Grupo de Teatro Fernando Pessoa

 

  

Caros Amigos
 

Só o facto de me encontrar em Joanesburgo, me impede de estar no São Luís, como era meu desejo para poder celebrar os cinquenta anos do Grupo Fernando Pessoa. Permitam-me que, por todos, invoque a memória do Dr. Fernando Amado, figura crucial neste projecto e na valorização do Teatro, como factor de Liberdade. De facto, não podemos esquecer (como a nossa querida Helena Vaz da Silva teve oportunidade de fazer recordar na sala do Centro) que em Junho de 1960 Fernando Amado dirigiu no CNC "O Marinheiro" e daí nasceu um grupo em breve alargado com velhos e novos colaboradores, que se manteve activo nos três anos seguintes, fazendo espectáculos no Centro Nacional de Cultura e noutras salas (como no Algarve, sob o impulso de Fernanda de Castro, de que me recordo ainda pequeno). Como é possível falar do Centro e da Cultura sem a referência ao Teatro, a Fernando Amado e a Almada Negreiros? É, pois, com muita emoção que aqui estamos hoje, no coração da cultura portuguesa, como o atesta a extraordinária fotografia de membros destacados do grupo (que o tempo consagraria) com as maiores glórias da cultura da língua portuguesa (Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais). Foi esse grupo que abriu com a colaboração do nosso também saudoso João Osório de Castro o teatro de bolso "A Casa da Comédia", retomando uma designação e um projecto dos primórdios do Centro Nacional de Cultura. O amor ao teatro sente-se aqui. Recriar a vida é dar vida a uma memória activa e futurante. E relendo a célebre auto-entrevista de Fernando Amado sobre a "Caixa de Pandora" ouvimos: "Descubro D. João Tenório de grande chapéu de plumas e larga capa negra; uma Clitemnestra, que sugere uma estátua e uma Gata Borralheira andrajosa e descalça, de cujo cabelo pendem duas tranças sedosas teatrais. A pouco e pouco, no palco, vai tomando forma um quadro que parece ter surgido da paleta de um pintor imaginoso". Estão aqui todos os ingredientes. Batem as pancadas de Molière ou de Francisco Manuel de Melo, e Fernando Amado volta a estar connosco e com ele Fernando Pessoa e Almada Negreiros! Muito obrigado a todos. E com muita emoção que o Centro Nacional de Cultura recorda os seus artistas - porque a memória da cultura se faz de espectáculo e aventura.

 

Oiçamos, sintamos o teatro da vida. Bem hajam!

 

Guilherme d'Oliveira Martins 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS


de 22 a 28 de Novembro de 2010

 

  

“Se não estudas estás tramado” de Eduardo Marçal Grilo (Tinta da China, 2010) é um conjunto de textos sobre a importância da Educação e da aprendizagem, como factores fundamentais de desenvolvimento. As reflexões de um especialista com provas dadas são uma oportunidade excelente para tirarmos lições para os dias de hoje sobre a necessidade de assumirmos, com todas as consequências, uma sociedade educativa apta a corresponder aos estímulos do mundo global em que vivemos. “Nada será conseguido, no entanto, (diz o autor) se os nossos alunos e as suas famílias não assumirem que estudar implica trabalho, esforço, dedicação e sacrifício, para os quais tem de se estar preparado”. E acrescenta: “O País mover-se-á muito em função do que for o trabalho das suas escolas, numa perspectiva de complemento da educação ministrada pelos pais e pela família”.

João de Deus ensina a ler.

VALORIZAR A EDUCAÇÃO
A história da educação merece uma reflexão especial. Há demasiadas simplificações relativamente às quais temos de estar de sobreaviso. A educação como valor não tem sido suficientemente considerada entre nós, enquanto questão fundamental e de sobrevivência. Lembramo-nos da Carta de Bruges enviada pelo infante D. Pedro, o das Sete Partidas, a seu irmão D. Duarte. Aí se dizia que as sociedades civilizadas davam importância à educação, e que esse era o melhor caminho para superar o parasitismo, a ociosidade e a indiferença. No entanto, com o tempo, se houve diversos sobressaltos, o certo é que a arte de educar não teve o lugar social que se lhe exigiria. Houve diagnósticos severos, julgamentos impiedosos, acusações mútuas. Hoje, com as melhores das intenções, digladiam-se diversos argumentos e escolas de pensamento – e invectiva-se a perda de qualidade da instrução e a responsabilidade dos sistemas. Tenho muita dificuldade em entrar nas explicações unívocas e simplificadoras. Fico sempre com a sensação de que por melhores intenções que haja, o que importa é seguir persistentemente o caminho que defina objectivos e que escolha instrumentos adequados, com pragmatismo e um sentido apurado de exigência, disciplina e rigor. Quanto mais estudamos a história comparada da educação mais se chega à conclusão de que não há receitas, modelos ou sistemas perfeitos e infalíveis. O que funcionou com uns não funciona com outros, e o importante é pôr no centro das preocupações sociais a educação e a aprendizagem como valores. Não me canso de citar o caso da Noruega em que a igreja reformada luterana ao proibir, no início do século XIX, o casamento de iletrados (por obrigação de transmitir a mensagem da Bíblia) conseguiu acabar com o analfabetismo em duas gerações, por força do papel multiplicador desempenhado pelas mulheres. Em Portugal, temos ecos das críticas severas que rodearam a introdução do método João de Deus na aprendizagem da leitura bem como das grandes dúvidas alimentadas sobre a prioridade dada à alfabetização. Na Primeira República, apesar da determinação que rodeou as reformas de António José da Almeida, de Leonardo Coimbra e de João Camoesas não foi possível ter, como se desejava, os resultados almejados (desde a alfabetização até ao incremento nas taxas de escolarização e na qualificação da população do país).


PAÍS FECHADO, PAÍS ABERTO
A ideia do Estado Novo de um país rural e fechado fez marcar passo a instrução. Apesar dos avanços dos anos sessenta e setenta, chegámos a 1974 com 25% de taxa de analfabetismo e baixos níveis de qualificação da população activa. Só em 1986, a Lei de Bases do Sistema Educativo adoptou nove anos de escolaridade obrigatória. A rede das escolas foi sujeita a uma pressão inédita e o recrutamento de professores teve de acompanhar o rápido crescimento da população estudantil. Porém, massificação e qualidade contradizem-se. De 1960 para 1990, o número de alunos matriculados nos 2º e 3º ciclos do ensino básico foi multiplicado, respectivamente, por 3 e por 4. No ensino secundário, enquanto em 1961 concluíram o antigo 7º ano dos liceus cerca de 2700 estudantes, em 1970 foram 6800 e nos anos 90 cerca de 170 mil alunos tiveram aproveitamento no 12º ano… Os números impressionam e são muito pouco recordados. Esta é a evolução real que tivemos, o que impede comparações simplificadoras entre o liceu de há cinquenta anos e o secundário actual. Mas se as diferenças são gritantes e se os progressos nos últimos anos são evidentes, a verdade é que tudo isso não pode levar-nos a qualquer displicência. Há um longo caminho a percorrer.


AVANÇAR COM PEQUENOS PASSSOS
No final dos anos noventa foi dado um salto enorme na educação pré-escolar, que até então muitos desvalorizavam na sua função educativa fundamental. As novas escolas profissionais (criadas nos anos oitenta) tornaram-se peças essenciais para o novo ensino secundário, preenchendo um vazio e animando uma nova filosofia de certificação correspondente ao nível 2 de formação. O desenvolvimento do ensino superior (universitário e politécnico) e a articulação com a investigação científica fez-se pela internacionalização e pela complementaridade entre o estatal e o privado. Temos, porém de compreender que não há política educativa de curto prazo. É indispensável a formação de consensos duráveis e sérios, quanto a objectivos estratégicos e quanto a uma avaliação exigente e rigorosa dos progressos obtidos. Daí que tenhamos de perceber não ser possível transigir com a facilidade. Avançámos muito, mas com as fronteiras abertas temos de verificar que os nossos concorrentes directos (os países mais desenvolvidos) avançam mais depressa. Daí que tenhamos de trabalhar muito mais, de ser muito mais exigentes e de praticar uma diferenciação positiva que incentive e reconheça os melhores e o seu mérito, que assegure a igualdade de oportunidades, que combata a exclusão. Mas cuidado! O “serviço público de educação” (a rede que não se confunde com o ensino estatal) é chamado a compreender a complexidade da democratização: em que a educação para todos tem de se ligar ao combate à mediocridade e ao reconhecimento da qualidade e das diferenças.

APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO
A sociedade tem de assumir a responsabilidade de reconhecer a aprendizagem como valor do desenvolvimento humano. Educar obriga a que o triângulo escola – família – comunidade seja actuante, que o investimento social na formação das pessoas seja partilhado por todos, que a cidadania activa e a formação cívica se liguem à liberdade e à exigência no ensinar e aprender. Nesse sentido, importa contrariar a ideia de que a educação apenas cabe à escola. A família e a sociedade, como realidades heterogéneas, têm de estar na primeira linha. Aos educadores profissionais que são os professores temos de ligar os educadores naturais que estão nas famílias. Eis porque a desvalorização social da arte de educar se deve, não tanto aos sistemas, mas à própria sociedade. No caso dos países nórdicos, a sociedade toda é que se mobilizou para pôr a educação no centro do desenvolvimento e da democracia. Se continuarmos a pensar a política educativa como reservada aos técnicos e aos pedagogos, continuaremos a recusar-lhe o valor que lhe é exigido. Se estamos insatisfeitos (e é legítimo que tal aconteça), assumamos as responsabilidades todas – e percebamos que há consensos estratégicos a assumir para um prazo alargado. Não basta invocar o caso finlandês e os seus resultados – designadamente quanto ao objectivo de combater as reprovações e o desperdício de energias. É preciso entender que estamos perante um tema de todos e não só de alguns. Por isso, Knut Wicksell exigia consensos que ultrapassassem os ciclos eleitorais.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

de 15 a 21 de Novembro de 2010

 

“La Legitimité Démocratique” de Pierre Rosanvallon (Seuil, 2008) põe-nos perante os problemas suscitados pela institucionalização da democracia na sociedade contemporânea. Mais do que o tradicional dilema entre democracia representativa e democracia participativa, Rosanvallon analisa a sociedade complexa dos dias de hoje, à luz das mudanças ocorridas nas últimas décadas, pondo sobre a mesa as questões suscitadas pela legitimação cidadã. A coesão social, a participação e a representação têm, de facto, nos dias de hoje, um conteúdo e um sentido profundamente diferentes daqueles que encontramos no último século, sobretudo porque os conflitos sociais, a configuração das classes e a relação entre Estado, economia e sociedade registaram profundas transformações depois de 1945 e de 1989 e com a afirmação da sociedade da informação e do conhecimento.

 

 

 

QUE DEMOCRACIA, HOJE?
As instituições da democracia-eleitoral representativa têm de ser consideradas ao lado das instituições da democracia indirecta. A sua articulação, segundo Rosanvallon, permite conciliar o factor maioritário e a unanimidade, que constituem os pólos relevantes da legitimidade democrática. Com efeito, a ideia democrática assenta na contradição entre o reconhecimento da legitimidade dos conflitos e a aspiração dos cidadãos ao consenso. O pluralismo pressupõe a aceitação da divergência de interesses e opiniões, o que permite organizar a competição eleitoral e renovar a legitimidade da origem. E a democracia obriga a que haja escolhas para resolver os diferendos e definir os caminhos. Daí a importância de tomar partido, de escolher o campo e de assumir uma cidadania comprometida. Não há democracia sem a formação de um “mundo comum” e sem o reconhecimento de quais os valores partilhados, que permitam regular conflitos e evitar as guerras civis. Compreende-se, deste modo, a distinção entre instituições de consenso e de conflito – para que possa abrir-se caminho à existência de condições de equilíbrio entre a regulação imediata das divergências e a criação de condições duradouras aptas a favorecer a coesão social. Por outro lado, há ainda a contradição entre um princípio realista de decisão (a maioria) e um princípio de justificação (a unanimidade), necessariamente mais exigente. Não há democracia possível e efectiva se não há a possibilidade de decidir e de agir com prontidão e se não se reconhecer a necessidade de proceder a arbitragens e escolhas, capazes de garantir a governabilidade e a confiança. Mas também não pode haver democracia sem instituições aptas a assumir em permanência o sentido do interesse geral e a contribuir (ao menos parcialmente) para a sua realização. Eis por que razão a maioria e a unanimidade têm de ser consideradas na sua especificidade e complementaridade. Trata-se das duas facetas da legitimidade moderna, que muitas vezes não são consideradas adequadamente, ora por sobrevalorização da maioria, ora por dificuldade em compreender a importância dos consensos duradouros. O pluralismo partidário tem de coexistir sempre com a capacidade de definir interesses comuns e formas duradouras de organização. Autores como Wicksell, Buchanan e Tullock foram pondo a tónica no tema, no entanto persiste uma significativa indiferença relativamente a essa ligação necessária, sem a qual se perde a consistência e durabilidade da democracia.

 

COMPREENDER A FICÇÃO DEMOCRÁTICA
Temos de perceber que há uma espécie de “ficção democrática”, que funciona se for vista como factor de eficiência e de coesão. O governo de maioria deve ser prosaicamente compreendido como uma convenção empírica, diz-nos Rosanvallon. E essa convenção repousa numa legitimidade imperfeita, que precisa de ser confrontada com outras formas de legitimação democrática. Se há, porém, um dualismo nas instituições (o consenso e o conflito), há também dois pólos estruturantes da democracia como governo. De facto, importa compatibilizar o geral e o particular, o global e o local – de um lado, a democracia das decisões (decorrente da legitimidade do voto) e de outro a democracia das condutas (ligada à legitimidade do exercício e à cidadania). E é assim que a sociedade dos indivíduos iguais tem de se articular com um regime de soberania colectiva. A democracia reúne, desse modo, as múltiplas histórias de liberdade, de emancipação e de autonomia, que marcaram a experiência humana. Essas experiências são fundamentais, em cada um dos seus contributos e na sua diversidade. Não bastam fórmulas vagas (poder do povo, soberania popular) nem referências a uma oposição entre poder colectivo e garantia das liberdades pessoais. É fundamental perceber a complexidade social, e ver a democracia como ordem de uma actividade cívica, de um regime político, de uma forma de sociedade e de um modo de governo. E o certo é que essa relação se estabelece de modo separado, concorrente ou simultâneo. Ora, a complexidade social obriga a integrar estes diferentes aspectos a fim de que a legitimação se aperfeiçoe em nome da representatividade, da participação, da confiança, da coesão e da eficiência.

IMPARCIALIDADE, REFLEXIVIDADE E PROXIMIDADE
No século XVII, Montesquieu falou-nos sobretudo de equilíbrio de poderes, de freios e contrapesos. Hoje, para preservar essa necessidade, temos de entender que há formas subtis de pôr em causa o bem fundado da democracia representativa (por força da força condicionadora dos meios de comunicação de massas), daí que, além do pluralismo, das diferenças e da importância das opções concorrentes, seja necessário garantir que haja espaços de imparcialidade – englobando o contrato social maioritário, a preservação dos princípios republicanos, a garantia da coesão nacional e o enquadramento dos interesses particulares. É preciso, no fundo, através da regulação independente (que a crise financeira tornou fundamental), encontrar uma linha adequada de partilha entre a política maioritária e a política da imparcialidade, velando-se pelo tratamento equitativo dos indivíduos, pelo combate de todas as discriminações e pela igualdade de possibilidades e capacidades de todos. A existência de entidades independentes, com garantias efectivas de isenção, reforça o Estado de direito, organizando positivamente a distinção e a complementaridade da sociedade concorrencial e plural. Se há uma lição claríssima da recente crise económica e financeira, essa é a da necessidade de preservar uma política de imparcialidade eficiente e com resultados (desde a regulação à prestação e ao julgamento de contas). Por outro lado, importa dar à reflexão (no julgamento ou na decisão) um papel efectivo, que evite as decisões precipitadas ou ditadas por razões de curto prazo ou circunstanciais. O interesse geral impõe que as decisões sejam ponderadas e justificadas – mas que haja condições para a definição de caminhos e de programas de acção. Tão perniciosa é a demagogia da decisão como a demagogia do bloqueio. Daí que tenha de haver regras consensuais (válidas para todos) sobre as políticas do conflito e do consenso, sobre as decisões conflituais e sobre o modo de respeitar o interesse geral sem bloquear a governação dos povos. A democracia precisa de ser reflexiva e de ter instituições aptas a ponderar as suas decisões. Precisa sempre de tempo, mediação e reflexão. Condorcet defendeu, por isso, a diversificação cruzada de tempos e de modos de expressão da legitimidade popular – segundo o que P. Rosanvallon designa como “soberania complexa”. O povo eleitoral, o povo social e o povo princípio coexistem e completam-se, ora porque votam, ora porque vivem, ora porque afirmam a igualdade jurídica e cívica. Impõe-se, assim, favorecer a expressão de cada um desses domínios, com a sua especificidade própria, evitando a todo o custo a “destruição partidária das instituições”. E se se fala de reflexão, temos ainda de referir a proximidade, das pessoas e o reconhecimento social (na acepção de Charles Taylor). À indiferença temos de contrapor a atenção (e o cuidado) e uma ideia de democracia da interacção e de representação permanente. As pessoas e as situações particulares, a diferenciação positiva, a igualdade e a diferença, eis o que importa!    

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

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A VIDA DOS LIVROS

 

de 8 a 14 de Novembro de 2010

Anselmo Borges, num pequeno livro acabado de publicar pela Imprensa da Universidade de Coimbra - Religião e Diálogo Inter-Religioso (2010) -  interroga-se sobre o diálogo religioso e cultural e põe o dedo no essencial do tema, que é controverso e tem gerado muitas dúvidas e perplexidades. Não sendo questão fácil, pelas muitas implicações que suscita, é extremamente importante poder contar com um livro como este, para irmos além das considerações vagas e bem intencionadas, entrando plenamente na discussão do diálogo efectiva, que pressupõe uma troca e uma partilha de ideias, de valores, de projectos e de desígnios. Num tempo em que a memória das tragédias do século XX se desvanece e em que a ameaça da violência no assalta em cada dia que passa, é indispensável empenharmo-nos em construir, dia a dia, as bases da paz de que precisamos, para que não se invoque Deus para legitimar a guerra, mas para que se parta do sagrado e da liberdade religiosa, para a paz dos corações, e não para a inútil e vã paz dos cemitérios.

     

  

UMA IDENTIDADE ABERTA
«A identidade não é estática, fixa, determinada de uma vez para sempre. Claro que cada um, cada uma, é ele, ela, de modo único e intransferível – a experiência suma desse viver-se cada um como único e irrepetível dá-se frente à morte, na angústia do confronto com a possibilidade do nada e da aniquilação do eu: ‘ai que me roubam o meu eu’, clamava M. Unamuno – mas fazendo-nos uns aos outros, de tal modo que ser e ser em relação coincidem». É que muitas vezes, ao falar-se de identidade, há a tentação de dar ênfase ao que é próprio, em lugar de olhar o outro e de procurar compreendê-lo. José Mattoso, ao reflectir sobre a identidade histórica não se tem cansado de insistir na necessidade de vermos o que nos caracteriza e o que nos distingue, como sinal de abertura e não de fechamento, como exigência de diálogo e de compreensão. No entanto, a tentação do fechamento e da uniformidade assalta a cada passo. Por isso, o multiculturalismo tem sido por vezes empobrecedor – não pelo apelo ao pluralismo, mas pelos caminhos paralelos que tendem a ignorar-se e resistem a intersectar-se e a influenciar-se mutuamente.

 

NUM TEMPO SECULAR
Charles Taylor, o filósofo canadiano, autor de A Secular Age (2007), que tem feito uma investigação exaustiva sobre o diálogo entre culturas e religiões, chama a atenção para que a compreensão e o respeito mútuo são factores fundamentais para que haja diálogo efectivo, reconhecimento do lugar dos outros e da diferença, coesão social e confiança – elementos cruciais para que exista democracia. «Os ateus precisam de falar com os crentes, os crentes precisam de falar com os ateus, e as religiões têm de falar umas com as outras». O diálogo é a chave para a solidariedade nas comunidades plurais do século XXI. A identidade faz-se, desfaz-se e refaz-se nas sociedades abertas e complexas e o grande apelo do presente é no sentido de a globalização não se tornar uma marca de indiferença e de uniformização. É fundamental que haja diferença, que cada qual seja ele próprio, mas também que a identidade seja cosmopolita, compósita e planetária, «com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de complexidades e possíveis rupturas». Como lembra Anselmo Borges, «o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça» - «porque o outro é outro como eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu». Esta é a ambiguidade e a dificuldade suscitada pelo outro. Hóspede e hostil têm, afinal, a mesma etimologia, como hospitalidade e hostilidade. Eis a ironia da vida das palavras.

 

UM TEMA ACTUALÍSSIMO
Se o tema da identidade é actualíssimo, a verdade é que ele contém a ambiguidade que resulta da dificuldade e das resistências que há sempre na relação com o outro. A relação da Europa com a imigração hoje é ilustrativa dessa contradição. Os medos que se acumulam são disso mesmo demonstração. O mesmo se diga do tema da paz: Hans Küng tem dito que só o diálogo entre as religiões pode criar bases seguras para a paz («sem paz entre as religiões não haverá paz entre as nações, e essa paz supõe o conhecimento e o diálogo entre as religiões»). E lembre-se ainda o tema da violência, no qual o homem julga poder apoderar-se de um Deus infinito e omnipotente para compensar o seu carácter finito e mortal. Anselmo Borges insiste na ideia de que o nome de Deus não pode ser invocado como motivo de violência: «é intolerável que Deus se revele de muitos modos, quando cada um o considera propriedade exclusiva». E importa acrescentar o tema dos fundamentalismos, tão referido, mas tão pouco entendido. Os fundamentalismos de diversas índoles ligam-se à tentação de cada um se julgar possuidor da verdade toda. «Quem é o homem, um ser finito, para considerar-se senhor do Fundamento?». E daqui temos de seguir até ao tema da necessária dessacralização da política e à consequente separação das igrejas do Estado, que torna os cidadãos «livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma», em virtude da desconfessionalização do espaço público. Por exemplo, quando lemos o Tratado de Lisboa, verificamos que se fala de um diálogo aberto, transparente e regular com as igrejas e as comunidades religiosas. No fundo, a sociedade aberta precisa de uma relação cooperativa e de respeito diante do fenómeno religioso. Como diz Jürgen Habermas: «os cidadãos secularizados, no exercício do seu papel de cidadãos, não podem negar liminarmente um potencial de verdade às imagens religiosas do mundo nem pôr em causa o direito de os seus cidadãos crentes contribuírem, na linguagem que lhes é própria, para as discussões públicas». O antigo Presidente alemão Johannes Rau invocou a «secularidade esclarecida» como método de acção numa sociedade solidária. E Régis Debray, com quem tive o gosto de falar sobre estes temas, defendeu que o diálogo inter-religioso, como condição de paz e solidariedade, pressupõe um conhecimento das religiões – o que obriga a escola a aprofundar uma inteligência reflexiva e crítica sobre o fenómeno religioso. E não afirmou E. Schillebeeckx que «podemos e devemos dizer que há mais verdade (religiosa) em todas as religiões juntas do que numa só, e isto é válido também para o cristianismo»?

 

QUE DIÁLOGO AUTÊNTICO?
O diálogo autêntico é, porém, difícil, por isso Juan Masiá refere cinco pontos que nele devem estar presentes: conhecimento mútuo e partilha do que é comum; consciência do que aproxima e do que afasta e é incompatível; sentido autocrítico e reconhecimento do lastro da história que transportamos; capacidade para começar a construir um horizonte comum de linguagem e diálogo, não confundível com qualquer sincretismo ou esperanto das religiões; e entendimento de uma espiritualidade para além da perspectiva de cada religião. Daí a lembrança da parábola dos três anéis. O sultão Saladino perguntou ao judeu Melquisedech qual das três Leis (judaica, cristã ou islâmica) julgava ser verdadeira. E este recordou a parábola do anel belíssimo e precioso que deveria transmitir-se como sinal de permanência e de virtude de uma família. Chegou um dia em que um pai tinha três filhos, todos virtuosos, a que amava por igual. Como não soubesse como escolher, encomendou dois outros anéis, absolutamente iguais e contemplou os três sem ter de eleger um só herdeiro… «A questão ficou pendente, e assim continuou até hoje, sem se poder determinar o verdadeiro herdeiro». O tempo ficou suspenso, à espera de quem mostrasse a verdade da fé «mediante boas obras e amor». Lévinas fala de Ulisses e Abraão, um, viaja e regressa, o outro, parte e transfigura-se. A identidade e a diferença está nos dois, mesmo que Abraão simbolize a capacidade de se transcender…

  

NOTA – Esta obra será apresentada pelo autor, por Juan Masiá e por Miguel Oliveira da Silva em sessão do Centro de Reflexão Cristã – na Galeria Fernando Pessoa do CNC, dia 16 de Novembro, pelas 18,30h. 

  

  

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

 

 

CARLOS AMADO

 

Faleceu a 1 de Novembro, no dia em que completava 74 anos.
Escultor, Cenógrafo e Professor da Faculdade de Belas Artes Jubilado.

 

                     E ASSIM, LIÇÃO POR LIÇÃO
                     QUE A POUCO E POUCO APRENDEMOS
                     DE OUTROS, A OUTROS DAREMOS
                     QUE A MUITOS OUTROS DARÃO

                                                             Carlos Amado

 

A longa relação entre Lagoa Henriques e Carlos Amado, de Mestre / Discípulo que breve também seria Mestre, evoluiu, sedimentou-se e transformou-se em companheirismo inseparável em momentos significativos das suas vidas, enriquecido por uma partilha que em espiral atraia ao seu convívio outras pessoas artistas do teatro, da escrita, porta que se mantinha sempre aberta a quem viesse por bem, na liberdade do pensamento que flui numa criação espontânea, única e significativa. 

Carlos Amado assumiu-se como discípulo de Mestre Lagoa Henriques mesmo para além da sua morte ocorrida em Fevereiro de 2009. E talvez o sentido dessa expressão, nos tivesse aproximado ao ter a Fundação LIGA decidido homenagear aquele Mestre. E num tempo curto mas intenso, conseguimos unir esforços com o Mestre Carlos Amado, juntar outros discípulos e amigos de uns e de outros e realizar a exposição ”Lagoa Henriques, um percurso de vida”, muito para além do que sonháramos mas que inesperadamente, viria a concretizar a última vontade de Carlos Amado de celebrar Lagoa Henriques e avivar a presença do Homem, do Artista, do Mestre e sobretudo do Amigo.

 

Quis Mestre Lagoa Henriques criar a oportunidade de nos aproximar do Mestre Carlos Amado e compreendermos afinal os que unia: “a disciplina do ver, a disciplina do ser” (no dizer de Gustav Malher, a transmissão do fogo, não a veneração das cinzas).

in http://www.fundacaoliga.pt
 

de 1 a 7 de Novembro de 2010

Invoquei a memória de José Augusto Seabra na conferência do Porto sobre “Projectos e Realizações da República”, glosando um pequeno livro da autoria do poeta, universitário e ensaísta – “Cultura e Política – Ou a Cidade e os Labirintos” (Vega, 1986) - já que considero fundamental reflectir sobre a herança do republicanismo português, a partir da fecunda experiência intelectual da “Renascença Portuguesa” e da revista “A Águia”. Trata-se, sem dúvida, do mais importante movimento cultural português do século XX, não só pelo que representou em si, mas pela extraordinária sementeira de ideias que produziu. A propósito dele, encontramos, a um tempo, a heterogeneidade da ideia republicana e uma interessante síntese plural, que permite compreender a identidade portuguesa moderna.

REPUBLICANISMO PLURAL
A «Renascença Portuguesa» constitui um exemplo de como o republicanismo teve diversas leituras e exerceu uma influência multifacetada na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento (em 1911), Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram dois projectos de manifesto que, sendo bastante diferentes, representam aos olhos de hoje uma imagem significativa do que foi originalmente o projecto da “Renascença”. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito actual, a cultura actual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas partidárias redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram». As palavras Renascença e Regeneração são usadas no Portugal moderno de influência liberal, pelo menos desde 1820. “Renascer é regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida” (na expressão ainda do homem de Gatão). Vêm à memória os sinais renovadores provindos do Porto – 1820, o cerco, o impulso de D. Pedro após o desembarque dos bravos do Mindelo (onde estiveram Garrett, Herculano e o pai de Antero de Quental…), a influência portuense do Setembrismo (em que pontificaram os irmãos Passos), a guerra civil, a Maria da Fonte e a Patuleia, a Regeneração de 1851, o movimento da “Vida Nova” (1885), o magistério de Rodrigues de Freitas, a presidência de Antero de Quental na Liga Patriótica do Norte, o 31 de Janeiro, o manifesto dos emigrados políticos encimado por Alves da Veiga, o “Porto Culto” de Sampaio Bruno… Nos antecedentes próximos do 5 de Outubro de 1910 temos, assim, factores políticos (o Ultimatum, o 31 de Janeiro, os adiantamentos à Casa Real, a ditadura de João Franco), económicos (a perda de confiança, as imposições dos credores externos, a desorganização), financeiros públicos (o peso da dívida, a bancarrota de 1891, a falta de receitas fiscais estáveis), constitucionais (o esgotamento do rotativismo regenerador, a degradação do sistema partidário), educativos (a taxa de analfabetismo próxima dos 80%, a insuficiente cobertura escolar, o mal estar académico de 1907), culturais (o ambiente urbano favorável ao republicanismo, Junqueiro temível propagandista), e sociais em sentido amplo (tensões cidade/campo, falta de industrialização, ausência de política social).

PLURALISMO E CIDADANIA
Os republicanismos e as suas raízes são, assim, múltiplos. A partir de uma tradição forte, a “Renascença” e a revista “A Águia”, cuja 1ª série, dirigida por Álvaro Pinto, foi iniciada em 1 de Dezembro de 1910 (numa especial celebração), procuram um pluralismo eclético e aberto, apesar do apego de Pascoaes à saudade, não como referência passadista, mas “no sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento ideia, a emoção reflectida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina”. Na “Renascença” estão Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, António Carneiro, Leonardo, mas também Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, António Sérgio, Raul Proença, João de Barros, Mário Beirão, Câmara Reis e Afonso Duarte, além de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Mas na origem estão Álvaro Pinto e Jaime Cortesão (vindos da “Nova Silva”, de inspiração anarquista, onde também pontificava Leonardo Coimbra), tendo o segundo chamado a Pinto “coluna vertebral do movimento”. Compreende-se, pela diversidade de intervenientes, que a “Renascença Portuguesa” tenha sofrido diversos sobressaltos – no entanto, olhando o impulso inicial, depressa descobrimos que, como movimento original representa a origem do que de mais significativo encontramos na cultura portuguesa do século XX – de Pascoaes a Leonardo, de Cortesão a Pessoa, do simbolismo ao modernismo, do lirismo ao racionalismo. Afinal, como dizia Raul Proença, havia necessidade de «homens de inteligência e de direcção espiritual», para dar dimensão à nova República. E Cortesão frisava: «a Renascença Portuguesa não era incompatível com as aspirações modernas».

COMBATER OS ERROS ANCESTRAIS
Leia-se “A Vida Portuguesa”, quinzenário do movimento, e veja-se que a preocupação fundamental é futurante: «resgatar a nacionalidade dos erros em que o desleixo e a incompetência dos políticos a lançaram». Cortesão é cortante em relação àqueles que se esqueciam das suas responsabilidades: «quase todos eles, nas suas ideias e projectos, têm um vago ar de filhos de pais incógnitos, um pouco esquecidos de que são portugueses”. E Leonardo Coimbra dizia ser fundamental “dar uma finalidade à vida nacional”, lembrando Cortesão (na senda de “Os Factores Democráticos na Formação de Portugal”, considerando que o Porto foi a nossa única cidade Estado) que o berço da Renascença é o Porto: «foi, na verdade, pelas suas origens, carácter e tendências, um movimento portuense». Leiam-se os textos de “A Águia”, em 1910 ou em 1912, e note-se a prevalência da elevação das ideias, o respeito mútuo e a serenidade da razão e do sentimento (como, por exemplo, no número 2, na invocação de Tolstoi), contra a cegueira sectária. Estamos, de facto, perante uma fecunda convergência, desde uma perspectiva espiritualista, representada por Pascoaes (e depois por Leonardo) até à razão cosmopolita de Sérgio e Proença, passando pelo modernismo e pelo futurismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada ou pelo humanismo universalista – capaz de tentar explicar a complexidade de quem somos. Nota-se a herança de Herculano e Garrett, a vontade nacional e a tradição romântica, mas também o sentido renovador e revolucionário de Antero, Eça, Oliveira Martins e Junqueiro e da Geração de Setenta, além do positivismo, do pensamento libertário e do socialismo cooperativo. Se falámos de projectos, verifiquemos que as realizações republicanas são fortemente condicionadas por factores complexos. No plano político, à ideia de regeneração da Pátria sucedeu instabilidade (dos partidos, dos governos, do regime, com emergência do sidonismo na conjuntura de guerra e regresso da nova República velha). No campo económico, em lugar da fixação da riqueza e da produção, houve os efeitos da Grande Guerra com inflação galopante e crise monetária. Nas finanças públicas, houve dois exercícios superavitários com Afonso Costa, mas persistiu a falta de receitas tributárias estáveis que a reforma fiscal de 1922 não resolveu, merecendo destaque a política de saneamento monetário de Álvaro de Castro. Quanto à Constituição, o parlamentarismo e a subalternidade da figura do Presidente da República geraram instabilidade (interrompida por Sidónio Pais). Na educação, houve muitas expectativas positivas, nas reformas de António José de Almeida (1911), de Leonardo Coimbra (1919) e de João Camoesas (1923) que, apesar de não terem efeitos imediatos na frequência escolar, definiram orientações positivas na valorização da qualidade do ensino. Na cultura, o cosmopolitismo e a abertura afirmaram-se, a exemplo da “Renascença Portuguesa” e das suas influências. No campo social, em sentido amplo, houve desvalorização dos movimentos sindicais e dos corpos intermédios, bem como uma perda na participação dos cidadãos, além de não ter havido condições para superar durável e positivamente a grave questão religiosa… Hoje, ao contrapormos projectos e realizações da República, sentimos na “Renascença Portuguesa” o fenómeno político e cultural, muito para além das correntes dominantes do Partido Republicano Português. As visões reformista, evolucionista, legalista, e revolucionária; o positivismo e as novas perspectivas filosóficas e científicas tiveram repercussões e produziram alertas, que se projectaram até à República de 25 de Abril de 1974, num sentido aberto, plural e democrático. Eis o que importa considerar.

Guilherme d'Oliveira Martins