Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O segundo volume de “Crónicas: Imagens Proféticas e Outras” de João Bénard da Costa(Assírio e Alvim, 2010) acaba de ser publicado e constitui um acontecimento deste final do ano, uma vez que podemos gozar em conjunto as magníficas crónicas (de 2004 e 2005) de um escritor que soube transmitir-nos como poucos uma visão do seu tempo e do seu mundo com sensibilidade e talento. A escrita é magnífica e os temas são apaixonantes. E se se fala, com muita justiça, de imagens proféticas no título é porque o tema recorrente, e sempre renovado, de modo apaixonante, é o das relações entre as pessoas e a beleza, nas diferentes expressões artísticas, num diálogo intenso e sempre inacabado, com a natureza.
SOB O SIGNO DO CORAÇÃO QUE VÊ O fotograma que reproduzimos é do filme de Rita Azevedo Gomes (2005) “A 15ª Pedra” (sobre um tema que referimos no conto deste Natal dedicado a JBC). Aí há um diálogo extraordinário entre o nosso autor e Manoel de Oliveira sobre a ideia, confirmada numa viagem ao Japão, ao encontro do mistério dos conventos zen, de que “só de vê com o coração”… E é esse ver com o coração que está bem presente nesta recolha de textos e em muitas das reflexões do escritor neste período da sua vida. Alberto Vaz da Silva no texto luminoso que serve de prefácio intui com grande conhecimento de causa essa capacidade de ver para além do imediato. Lembra, por isso, os tempos em que João “foi escutando as invulgares mensagens que Deus em si depositou; a dos instantes, a da poesia, da música, da pintura e a de todas as artes, a dos textos sagrados e a dos sonhos, que no fundo da sua inteligência – coração – memória se interpenetraram, fundiram e puseram em movimento ao estranho ritmo de vinte e quatro imagens por segundo”. Tudo, no período que medeia entre duas fotografias, uma de 1960, em que os dois jovens, João e Alberto, se apresentam, um e o outro, como se fossem de facto o Tempo e o Modo, tal como eram conhecidos pelos filhos de Sophia, onde o reflexivo cachimbo de Alberto dá o tom literário; a outra, de João Bénard em Mântua, entre brumas, lendo um roteiro e segurando um cigarro breve. E que se sente ao ler as crónicas do João? Antes de tudo, o cinema (“Ele próprio arte do sonho, arte feita de sonhos, feito para fazer sonhar quem nunca sonha”). Como não lembrarmo-nos do seu amor por Johnny Guitar? E para lá das lanternas mágicas, “girava também o inconsciente dos seus próprios sonhos, das suas viagens e encontros, dos museus, dos livros e revistas de arte, de todos os livros que lia e escrevia com a espinal-medula”. E Alberto compreende como ninguém este seu amigo de antanho, que conheceu nos bancos do liceu, igual a si mesmo, com o seu imprescindível bloco com linhas, resistente às novas tecnologias… Compara-o a Montaigne, recorda as suas distracções, capazes de originar pequenas catástrofes, lembra o seu amor pelo barroco e o gosto pela água do mar. “Ao longo da vida foi constante a sua procura de Deus, a preocupação com o encontro com Alguém que esteja em nós não sendo nós e que, como formulou Pascal, reconcilie a Sua transcendência e a nossa intimidade com a universalidade do todo”. E neste belíssimo texto, que se lê e relê com muita emoção, sente-se a amizade total e a capacidade de procurar o que pode unir até ao infinito. Uma simples mensagem de telemóvel parece resumir tudo: “não te vás embora, espera por mim”. Isso e um poema de Sophia, sempre ela, que ambos, Alberto e João, liam em conjunto entusiasmadamente, recordando o rei de Chipre: «É a clareza do trigo em tua face como quem só em ilhas habitasse».
O DESEJO DE NOS ENSINAR A OLHAR E A VER Falar de um livro de crónicas impede que sejamos exaustivos na apreciação. Os temas sucedem-se, seguem-se ou contrariam-se, as reflexões juntam-se aos sentidos. Deparamo-nos, entre retratos premonitórios, com Lucrezia Panchiatichi, de Agnolo Bronzino, que nos transporta aos Ofícios de Florença e o cronista lembra-nos a sensualidade de quem, vestida luxuosamente, é como se estivesse nua. O artista será tanto mais genial quanto mais nos obrigar a ir além das aparências e do que é revelado imediatamente e à primeira vista. Num tempo em que a tirania das aparências parece invadir tudo, temos de ir a quem em contra-corrente apenas nos vem dizer que a beleza vem da ligação entre que vê e quem fez para ser visto. E vem sempre à baila a lembrança da tal 15ª Pedra do Mosteiro da Eterna Sabedoria, que ninguém pode ver estando onde estiver à volta daquele jardim seco que figura o mundo. Mas lá estão, de facto, quinze pedras, de que nos apercebemos se circularmos. Mas se descobrimos uma das pedras faltava, logo deixamos de ver outra que temos a certeza que existe. Mas, por outro lado, também a beleza de uns salmonetes frescos na Arrábida tem consideração especial, digna de ombrear com uma caminhada gloriosa na mata do Solitário ou com a impressão soberba causada por um P. P. Rubens. Sobre o retrato da marquesa Brígida Spínola Dória, podemos ler: “As mãos compridíssimas e branquíssimas, o leque na mão direita e a entufadíssima gola de rendas contrastam com o rosto nubente (quase tímido), tornando aquela mulher um ‘montagna di stoffa’, salpicada de jóias, nascida para a luz e feita de luz, ser de prata, emanador de tal luxo e tal calma que a volúpia só decorre do excesso delas”. Como se vê, não basta o prazer, a surpresa e o encantamento. JBC vai sempre mais além, e faz dessa oportunidade de olhar e ver um motivo para transformar em palavras o que viu sobre a tela, pintado por um génio como Rubens. Em cada viagem, sente-se a curiosidade de ir aos lugares mais recônditos, onde pode estar escondido um tesouro ou um exemplo do que é belo. Esse é um motivo de entusiasmo e de curiosidade sempre renovada por parte dos seus leitores, perante a capacidade excepcional de nos ensinar a olhar e a ver. O escritor não esquece a sua condição de pedagogo, não aquele que papagueia, mas sim o que deixa pensar e leva a concluir. Nota-se um sentido maiêutico na sua atitude que lembra a condição de professor que foi. Mas nunca se deixa arrastar por simplificações. Sobre as comparações entre a escola de ontem e de hoje, JBC descobre linhas de continuidade, e demarca-se das simplificações mais ou menos saudosistas, diagnosticando: “ignorância, sim, imensa, acompanhada, em gerações mais recentes, pela arrogante ignorância dessa própria ignorância, o que é a mais explosiva mistura que imaginar se possa. Mas a apatia pode ser vencida e, daí ao resto, há um passo possível”.
COMO NAS MIL E UMAS NOITES O fotograma do filme da Rita Azevedo Gomes é como se fosse uma recordação das mil e uma noites vividas por João Bénard da Costa. Estamos diante de um contador de histórias, apaixonado por poder abrir as imaginações e os espíritos. O escritor e Duarte de Almeida, se nos quisermos recordar do seu pseudónimo como actor de filmes, existem embrenhados no sonho, ora do cinema, ora da pintura, ora da literatura… Há muito para contar, e nota-se no livro (e para quem quiser ver o filme) essa necessidade incessante de procura e de força para ir recomeçando sempre, como Penélope fazia na sua ilha de Ítaca a obra em mãos, na esperança de ver regressado Ulisses, demorado no mágico Mediterrâneo. Daí recordar: “Conheci (…) a Odisseia, mesmo se contada às crianças, em mui tenra idade e dei-a a conhecer a crianças de igual tenrura. Além de Polifemo, o Cavalo de Tróia, Circe ‘a das muitas poções mágicas’, a ilha das duas sereias, Cila com as doze pernas, os dez pescoços e as três filas de dentes, a Caríbdis temível, sugadora da água escura, e as ‘robustas ovelhas do sol’, pastoreadas pelas ninfas, de belos cabelos, Featusa er Lampécia”. Todos beneficiamos, assim, da memória prodigiosa do João Bénard da Costa por isso, ao lermos e relermos estas crónicas vamos como que aprendendo que é indispensável considerar que viver num mundo desregulado e ainda por cima em crise, como o actual, obriga a entender o silêncio…
Carlos Pinto Coelho ainda nos falava de um tempo de sacralização das referências literárias em que sendo superabundante, em qualidade, a experiência literária constituía uma recriação permanente numa realidade que acontecia.
Com a profunda admiração que Carlos Pinto Coelho nutria por Vitorino Nemésio, com essa mesma poderosa assunção de que a literatura poderá ser sempre o primeiro berço simbólico da nossa vida, assim, surgia-nos no programa Acontece a expressão de um real dotado de uma força que, às vezes, o próprio real não tem.
Foi sempre difícil neste nosso panorama televisivo saber, através de um discurso bem comunicativo , no melhor estilo da palavra, captar a atenção para o mundo dos livros e o resultado de nele entrarmos.
Julgo que Carlos Pinto Coelho, numa eternamente diferida esperança, demonstrou a tempo, o quanto é superável o princípio de todas as impossibilidades.
Publicado em 1959, Aparição permanece um dos romances mais importantes do século XX português. Permaneceu também como tendo sido o livro da inquietação de Carlos Pinto Coelho, inquietação que permanecerá uma ilha suculenta em televisão através do programa Acontece na nossa memória.
“O Centro Nacional de Cultura homenageia o seu sócio mais antigo – a quem devemos a entrega e a generosidade."
Guilherme d'Oliveira Martins
Na minha qualidade de filha de Mário de Assis Lopes Vieira, sócio 81 do CNC , venho comunicar-lhe o falecimento de meu pai, em Setembro passado.
Sei que o Dr. Oliveira Martins tinha pelo meu pai uma amizade e atenções especiais e por isso não quero deixar de lho comunicar pessoalmente – apesar de o fazer por esta via electrónica..
O meu Pai referia-se também a si com admiração e amizade muito especiais, tendo ficado altamente sensibilizado quando lhe enviou as felicitações pelo seu século de vida. Amanhã dia 21 faria 102 anos, se continuasse entre nós - ma, sendo ele como sabe, um viajante e caminhante, partiu já para nova caminhada no Além.
Precisamente porque dou muito valor ao apreço que sempre lhe testemunhou, bem como todos no CNC, tomo a liberdade de lhe enviar em anexo um soneto que o meu Pai fez aos 90 anos, onde aponta os valores de vida que o norteavam e que me transmitiu a mim e a todos os que com ele privaram ou o conheceram e que se me afiguram coincidentes com a Missão do CNC.
Aproveito para deixar aqui expresso o meu desejo de me inscrever como Associada do Centro Nacional de Cultura, o que já transmiti ao vosso secretariado. Se me permite, solicito - se for possível - que me reservem o número de associada que o meu Pai detinha com tanto orgulho, e pelo qual era conhecido há tantos anos no CNC : o número 81.
Aproveito para lhe desejar umas Felizes Festas e bom Ano Novo .
Em “Um Mês de Sonho”, José Leite de Vasconcelos(1ª edição, 1926; 2ª edição, 1992) exprime com as palavras sensíveis de um erudito o que deve ser dito sobre os Açores, de modo a compreendermos como o arquipélago tem de ser considerado o Portugal paradigmático, a pátria construída em laboratório, o lugar da identidade aberta, complexa e diversa, ponto de encontro entre a criatividade e a beleza, apesar de todas as dificuldades e resistências, que a insularidade sempre traz.
PORTUGAL EM LABORATÓRIO Os Açores são o Portugal paradigmático. E a consideração faz sentido, uma vez que se trata da criação de uma sociedade em laboratório, através de um povoamento a partir do século XV de ilhas desertas, há muito conhecidas, mas só tornadas habitáveis depois da possibilidade de haver navegações «de ir e voltar» no complicado Atlântico Norte, que apenas se tornou acessível com a introdução dessa pequena maravilha da técnica náutica que foi a caravela. E se falo de um «Portugal paradigmático», tenho de lembrar o cadinho de várias influências e de vários povoamentos, à semelhança da encruzilhada de povos da Finisterra peninsular. E ainda há, a unir Portugal e os Açores, a insularidade, bem sentida, por razões naturais, no arquipélago, mas, por razões de carácter, no continente (com fronteiras definidas por D. Dinis), onde a terra se acaba e o mar começa. Leite de Vasconcelos, ao falar do povo açoriano e sem querer resolver o problema de onde proveio a maior parte da população que foi de Portugal e de outras partes, fala, naturalmente, dos algarvios (como o faz, com ênfase, Arruda Furtado, no conhecido estudo de 1884), mas também refere os minhotos, os beirões, os alentejanos, além dos mouriscos de África. E, indo buscar razões filológicas, Vasconcelos refere o ü meridional, que se ouve tanto nos Açores como no território da Beira Baixa para sul. Mas há ainda os flamengos do Faial e da Terceira, além dos franceses (da Bretanha, por exemplo) e dos ingleses. E quando se lê as «Saudades da Terra» de Gaspar Frutuoso, lá estão as referências aos nobres e aos escravos – e sempre o encontro de gentes diversas, povoadores de ilhas diferentes, com lógicas comunitárias heterogéneas.
GENTES DE MÚLTIPLAS ORIGENS E se os Açores se fizeram com a chegada de gentes de múltiplas origens, também os seus povos partiram para o Brasil e sobretudo para a América do Norte, referindo Leite de Vasconcelos o ideal do açoriano como sendo o de «formar lá fora um pecúlio e vir depois gozá-lo na sua ilha querida». Se é abusivo fazer generalizações, o certo é que é sempre Portugal que se projecta na bela construção açoriana, designadamente quando Soares de Albergaria fala de um povo engenhoso, sagaz e muito hospitaleiro. Não por acaso, José Xavier Mouzinho da Silveira, o braço direito do regente D. Pedro no governo da Ilha Terceira, quis ser sepultado, sem sucesso, na ilha do Corvo, por ter lá encontrado a gente mais grata do mundo. E se citámos José Leite de Vasconcelos foi por causa da visita que fez aos Açores em Maio de 1924, com um grupo de escritores, artistas e intelectuais (de Antero de Figueiredo a Luís de Magalhães, passando por Armindo Monteiro e Teixeira Lopes), a convite do «Correio dos Açores» de José Bruno Carreiro, numa peregrinação que deu origem à célebre conferência na Academia das Ciências de Maio de 1925 e às impressões de viagem, que estão publicadas num precioso volume significativamente intitulado «Mês de Sonho», cuja reedição me foi oferecida pelo meu amigo Mário Mesquita, numa inesquecível deambulação matutina por Ponta Delgada há uma vintena de anos.
UM MÊS DE SONHO Sobre a impressão deixada pelas ilhas nesse grupo de eleição, basta ler a obra e o entusiástico título. Aí quase tudo se diz sobre o prazer sentido, em especial pelo académico, perante esses pedaços de paraíso. E o mais interessante é a consideração dos elos muito fortes com os Açores, capazes de contribuir decisivamente para a definição desse Portugal paradigmático de que falamos. Por exemplo, o elemento religioso impressionou o antropólogo: «o fervor (…) das gentes do Açores não é mais que a continuação dos velhos sentimentos dos seus avós continentais, alimentados e reforçados por condições de insularidade e por esforços do clero». Há aqui, de facto, uma continuidade e uma diferença, e esse Portugal ilhéu e açórico permite reconhecer a riqueza extraordinária do arquipélago de sonho, inserido no País que Orlando Ribeiro definiu como um continente em miniatura. Oiçamos ainda Leite de Vasconcelos: «quando os portugueses tomaram posse das novas terras, não só encontraram tudo deserto, senão também vazio de grande parte das espécies animais que ao presente lá vivem, e que com o tempo se introduziram, sabendo-se até de algumas da data da introdução. Mamíferos terrestre não se via um único, e Alves simplesmente as do ar. Não havia cão que ladrasse, nem galo que cantasse. Solidão pavorosa! O mar quebrava-se nos rochedos que bordam as ilhas, onde ia abrindo angras e aguçando pontas, que depois serviram de designação a heróicas ou lindas cidades. Bandos de milhafres revolteavam nos espaços. E como aos nossos antepassados se afigurou que eram açores chamaram-lhes erroneamente assim, e daí veio ao Arquipélago o nome que nós pronunciamos com tanto afecto e orgulho”. Hoje, sabemos que não é exactamente assim. É verdade que os milhafres não são açores e que a confusão existiu. Mas continuo convencido de que foram os navegadores italianos que, ao avistar ao longe os contornos azuis das ilhas encantadas, as baptizaram, como se houvesse um estranho encanto, como «azzurri», azuis (como a «suadra azzurra»), dando lugar à bela designação, que conhecemos.
ILHAS ACOLHEDORAS As ilhas são acolhedoras, mesmo com a humidade que permite que tudo seja tão verdejante. Os povos, as casas e os campos unem-se para nos dar as boas-vindas. Em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, no Campo de S. Francisco, sentimos a presença do poeta por excelência, Antero de Quental, entre a força suprema do seu talento e a sua proximidade do seu afecto. Em Angra do Heroísmo, ou na Praia da Vitória, sentimos a resistência liberal ou a memória longínqua de D. António, Prior do Crato – mas podemos ouvir ainda Vitorino Nemésio, romancista e poeta de primeira água, a apresentar-nos os Açores populares e eruditos, simbolizados na personalidade fascinante de Margarida Dulmo. E em cada império recordamos a espiritualidade e os folguedos de Pentecostes, a um tempo profanos e religiosos, com a coroação de quem não tem poder e com o alimento comunitário da sopa do Espírito Santo, da alcatra ou da massa sovada… Tudo como reminiscência do monge calabrês Joaquim de Flora, que falava de uma Idade futura de paz e abundância, de leite e de mel, que remetia para o Quinto Império do livro de Daniel, tão caro ao nosso Padre Vieira. E a verdade é que no Pentecostes há uma memória culta e popular, por entre uma natureza pródiga de pujança e de mistério. E vem à retina a imagem esplêndida das Sete Cidades, lugar mágico invocado por Jaime Cortesão no inesquecível «Romance das Ilhas Encantadas». E temos de nos lembrar do enigma da Atlântida e dos seus mitos, até à Macaronésia, que nos transporta à cultura cabo-verdiana e à escrita de Manuel Lopes, homem da «Claridade», amigo de Baltazar Lopes, referência comum a Cabo Verde e Açores. Encruzilhada açoriana, Portugal paradigmático. Muito Bom Natal!
No CNC estiveram ontem Luísa Ducla Soares, Ana Maria Magalhães e António Torrado para evocar a memória de Matilde Rosa Araújo no Jornal Falado “Ao encontro da magia da infância”. Sócia efectiva do Centro Nacional de Cultura e grande amiga de há muitos anos, Matilde Rosa Araújo é uma das grandes referências da cultura portuguesa. Foi uma escritora sobretudo para crianças e jovens, apesar de ter cultivado todos os géneros literários, destacando-se pela sensibilidade e inteligência. Educadora exemplar de toda a vida e defensora pioneira dos direitos das crianças.
Aqui fica o texto lido por Luísa Ducla Soares na sessão de ontem:
MATILDE, QUERIDA MATILDE
Pedem-me para falar sobre Matilde Rosa Araújo e eu não consigo destrinçar a amiga, a mulher, da escritora. Por isso vou recordar também um percurso de vida que virou literatura, tornando-se marco incontornável das nossas Letras, utilizando, sempre que possível , as suas próprias palavras.
“Nasci numa quinta em Benfica, no meio de árvores, flores, fontes, animais - natureza viva que me seduzia. Perto do Jardim Zoológico. De noite ouvia o gemer dorido dos leões, dos tigres, do elefante e de outros animais que não identifico: eram “vozes” de animais presos. Vozes de grades . E gritos de aves estranhas. Ficava acordada para os ouvir, não sei porquê. E doíam-me . Não seria já o “gosto amargo de saber” (que não tenho) mas a inconsciente busca de um mundo próximo e livre. (…) Não frequentei nenhuma escola. Quantas vezes subi para o telhado de casas onde vivia para olhar os meninos que iam para a escola”.( entrevista ao JL tirada da Internet)
Para se evadir daquele recinto fechado lia, lia, lia.
Terminado o liceu, sempre com professores particulares, ingressou na universidade, no curso de Românicas onde teve o privilégio de ter como condiscípulos Sebastião da Gama, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho. Foi o facto de ter vencido um concurso literário promovido pelo jornal O Século que a levou à estreia precoce, com uma novela para adultos, A Garrana.(1943)
Enveredando pela carreira do ensino (a partir de 45) foi colocada em escolas técnicas de Lisboa, Barreiro, Almada, Portalegre, Elvas, Caldas, Porto, regressando finalmente a Lisboa. Essa experiência foi crucial:
“A infância encontrou-me quando comecei a ensinar. Encontrou-me e continuou comigo no deslumbrado acontecer das aulas, deslumbrado e receoso de não saber comunicar. E fui aprendendo, tentando aprender o segredo da infância, da juventude, descoberta viva de todos os dias ”. ( mesma entrevista ao JL )
A relação professora - alunos está subjacente à sua obra.
“Eu ensinava numa escola velha, escura. (…) A escola era muito triste. Feia, Mas eu entrava nela, ou digo antes, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.
O quê? Português, francês. Hoje sei, acima de tudo, o amor da vida. Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. (…)
Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina – ou antes, a ter consciência de que a aprendia. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. (…) Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.
Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. ”
Há um poema muito singelo e bonito em que nos apresenta a escola, que gostava de vos ler:
Meninas que estais estudando
Numas banquinhas pequenas:
Lá fora o sol vai dourando
Os riscos das vossas penas.
Meninas que estais sorrindo
Numas banquinhas sentadas:
Lá fora flores vão abrindo
Com as vossas gargalhadas.
Meninas que estais sonhando
Numas banquinhas de pinho:
Lá fora canta, chamando,
O canto dum passarinho.
Ó mestra que estás falando
Em cadeirinha tão calma :
Lá fora o Sol vai dourando
As penas que tens na alma. (O livro da Tila)
Como Cecília Meireles, lutou para retirar à literatura infantil o estigma de menoridade, mostrando que escrever para crianças é como escrever para adultos, só que com mais responsabilidade.
São principalmente os meninos de pés frios, pobres, desafortunados que povoam a obra de Matilde. Alguns, como Joaquim, o rapazito abandonado que conheceu, a vender moinhos na praia de Cabedelo, como Zé Manel de Porto Santo que nunca teve um brinquedo, outros anónimos, perdidos na multidão de gente indiferente aos dramas da infância.
Evoca essa infância logo no poema introdutório de O Livro da Tila:
Meninas pobres, tão pobres,
São tão pobres, que ao vê-las,
Meus olhos, que são de cobre,
Têm a luz das estrelas!
ou neste poema de Mistérios, que reflecte uma realidade bem actual:
Ó meu menino da rua
Só, com uma chave na mão:
Quem é que brinca contigo?
Quem é que pede perdão?
As suas preocupações sociais são tão presentes que a autora tem sido associada ao neo-realismo. Mas rotula-la de neo-realista é decerto truncar a riqueza e complexidade da sua escrita, a que não é alheio o classicismo da Távola Redonda, de que foi colaboradora, e que se encontra igualmente impregnada de muitos saberes, e do gosto assumido pelas tradições populares, a que repetidamente recorre:
Ó cuco lá da roseira,
Quantos anos faltam
P´ra deixar de ser solteira?
Ó cuco lá do pinhal,
Quantos anos faltam
Pró meu enxoval?
Ó cuco lá do pomar,
Quantos anos faltam
Pra me eu casar?
E escondi, nas mãos,
A luz do meu rosto
E fiquei à espera;
E o cuco cantou
Uma vez só:
Primavera!
A característica mais marcante de Matilde é certamente a afectividade, a doçura e ternura com que envolve todos os temas, mesmo os mais agrestes. Há nela uma delicadeza de sentimentos rara, que se expressa poeticamente, até nos textos em prosa. A sua amorosa gentileza é como uma oferenda de flores.
Uma dicotomia de tristeza e alegria, de dor e encantamento perpassa os seus textos. Porque afinal, o mundo dos mais novos , para quem realmente o conhece, não é o paraíso.
Para ela todas “todas as crianças são poemas que nos dizem que a vida tem Sol, Amor, Alegria, flores, água que corre nos rios, que se levanta nos mares em ondas vigorosas. E neve, e chuva, aqueles dias em que, por detrás dos vidros, parece vermos o tempo correr” (O Sol e o menino dos pés frios, p. 43).
Todas as crianças brincam e sonham por isso Matilde se debruça sobre os brinquedos: o cavalinho de pau, o pião, o ferrinho de engomar, o baloiço, o rapa, tantos outros, principalmente sobre as bonecas. As luxuosas e um pouco distantes bonecas que vieram de Paris, como a Januária, as que foram feitas por mãos pequeninas com bocadinhos de trapo, até as improvisadas com uma papoila silvestre.
Matilde desvenda mistérios e sonhos de bebés, garotos e adolescentes, sonhos que nem sempre se conseguem concretizar:
É LINDA
-- Quer esta seda verde, minha menina ?
-- É linda !...
-- Quer um corte, minha menina ?
-- É linda !...
-- É para um vestido, minha menina ?
-- É linda !...
-- Quantos metros quer, minha menina ?
-- Quantos metros de mar ?
Quero a peça inteira !
Mas não a posso comprar…
E é linda !... (O cantar da Tila)
Mas não esquece também a velhice, que significa apenas “ter vivido mais”, emprestando-lhe colorido, beleza e alegria. Quem pode esquecer a D. Balbina com seu chapéu sempre enfeitado de cerejas, que continua a tecer projectos pois nunca é tarde para sonhar?
Há um franciscanismo patente em quase todos os seus livros. Os elementos da natureza irmanam-se com esta mulher tão sensível que compreende a língua das formigas, do louva-a-Deus, do grilo, dos sapos. Que tem como companheiro de solidão um cão:
“A meu lado, sentava-se o grande cão que, durante o ano, estava só, entre aqueles muros. Era o Top.
Castanho, de olhos mansos e bons.
Top, de vez em quando, batia-me no braço, no livro.
Como se me dissesse:
-- Estou aqui. Lembra-te que existo.” (O Sol e o menino dos pés frios)
Quantos outros poetas terão feito uma ladainha a uma aranha?
Aranha, anha
Tão muda e mole:
Teu fio de Lua
Soluça ao Sol.
Aranha, anha,
Que ninguém ama:
Teu fio de Lua
É a tua cama.
Aranha, anha,
De noite e dia
Teu fio de Lua
Ninguém o fia.
Aranha, anha,
Que o mundo mata:
Teu fio de Lua
Ninguém desata.
(O livro da Tila)
Mais que isso, há uma vivência cósmica da vida. O Sol, a Lua, as estrelas andam em perpétua rotação nas suas páginas. As cores escorrem directamente do arco íris.
A musicalidade da poesia de Matilde levou Lopes Graça a transformar os poemas do Livro da Tila em belíssimas, inesquecíveis canções. A escritora, que praticamente concluiu o curso de piano, vibra com os sons. Apaixonada de Beethoven, não se inibe de tocar as cordas da Guitarra da boneca :
Chuva de cordas brancas,
Chuva de cordas frias.
E eu tenho uma guitarra
Cigarra
De som molhado
Que agarra a alegria
Para tocar.
E minhas mãos
Para enxugar
Teu rosto amado,
Minha mãe.
Nos seus poemas e contos cantam meninos e rouxinóis, trinam os grilos, piam os passarinhos, o Senhor Galo ergue a sua voz vibrante como uma fita vermelha.
Ela própria nos conta um triste percalço a que o amor pela música a levou. Ao ouvir um tango, há uns anos, não resistiu e pôs-se a dançar sobre uma só perna, rodopiando como a papoila-boneca do seu conto. Caiu, sofreu uma fractura que a obrigou a utilizar uma bengala. Mas nem assim a “fada Matilde”, como Letria lhe chama, se deixou abater ou perdeu o gosto de cantar. Uns dos seus mais belos versos são justamente os que dedicou a essa nova companheira:
Minha bengala fininha
Tronquinho de cerejeira
Ajudas o meu andar
És a minha companheira.
Prendo-te com minha mão
Num afago que te dou
Nossa conversa é tão muda
Como um filme de Charlot
Falamos ambas da vida
Do tempo em que eu corria
Tu eras um tronco verde
Primavera que nascia
Charlot às vezes sorri-me
Entre a mão e a bengala:
Tronquinho de cerejeira
Também tem a sua fala.
Tanto e tanto haveria a dizer sobre a nossa querida Matilde. Podería falar das cuidadas antologias sobre a infância que nos deixou, do seu empenhamento nos direitos da criança, sobre a sua mestria de cultora da língua portuguesa, sobre os aspectos didácticos e lúdicos da sua obra, sobre o seu exemplo de cidadania. Etc, etc, etc.
Mas aqui e agora , neste dia que lhe é dedicado, não estando a nossa Fada mais entre nós, não posso ignorar a saudade que nos deixou. A sua obra vai perpetuá-la e a melhor homenagem que podemos fazer-lhe é lê-a com a paixão com que ela escreveu.
Miguel Real tem-se dedicado a uma tarefa fundamental que merece especial atenção de todos quantos se interessam pelo aprofundamento da reflexão sobre a cultura portuguesa. Por isso tem estudado o lugar de autores como o Padre António Vieira ou Eduardo Lourenço, com resultados muito apreciáveis pela pertinência da reflexão e pela fecundidade das pistas lançadas. Partindo de “Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa” (Quidnovi, 2008) procuramos hoje analisar algumas das constantes que caracterizam a cultura portuguesa ao longo dos séculos.
UMA PROCURA INCESSANTE Miguel Real tem procurado analisar a cultura portuguesa a partir da sua originalidade e das suas especificidades, demarcando-se quer das concepções providencialistas quer do centramento obsessivo no período dos Descobrimentos. Deste modo, tem preferido “uma via mais historicista e menos ideológica”, ousando apresentar uma configuração, “fundada em pressupostos mais históricos e menos míticos, segundo a qual cada período da cultura portuguesa vale por si”. Assim, o autor distingue quatro atitudes intelectuais que caracterizam a cultura portuguesa ao longo dos tempos. Antes do mais, refere o modelo lírico-espiritual que privilegia os aspectos metafísicos, subjectivos, ascéticos, sentimentais e morais da realidade. O próprio Camões e a sua poesia lírica e épica integram-se neste entendimento – mas, além dele, temos de D. Duarte a Sophia de Mello Breyner. Depois, importa referir a perspectiva racionalista, privilegiando menos a ciência pura e mais a prática científica, de modo a destacar os aspectos positivos e materiais da realidade, com especial valorização da experiência. Aí temos de referir de Garcia de Orta ou Pedro Nunes a Egas Moniz. Mas, dentro da mesma atitude racionalista, há ainda o ponto de vista historicista, que visa apreender o movimento dinâmico da sociedade – o que envolve dos cronistas quinhentista até António Sérgio ou Eduardo Lourenço. Em terceiro lugar, temos a atitude modernista, que procura seguir (mais do que imitar) processos, formas e conteúdos de práticas literárias e culturais europeias, merecendo realce os casos de Sá de Miranda até Camilo Pessanha ou Álvaro de Campos. Por fim, há a concepção providencialista, que privilegia os aspectos épico-messiânicos da História e que tem como defensores desde os cronistas e historiadores de Alcobaça ou do Padre António Vieira até Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.
TIRAR CONSEQUÊNCIAS Diga-se em abono da verdade que é pertinente a consideração destas quatro atitudes, ainda que as fronteiras sejam ténues e de difícil apreensão. Nota-se o caso de Fernando Pessoa, em que o autor da “Mensagem” pode ser considerado providencialista, ao contrário de outros dos seus heterónimos, como os casos de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, nos quais se nota mais nitidamente o pendor modernista. O certo é que, se os quatros campos permitem uma melhor compreensão das várias atitudes possíveis perante a explicação da identidade e da razão de ser de Portugal, temos de entender que na maior parte dos casos há uma ligação ente as diversas atitudes num completamento crítico que permite chegar à percepção da realidade complexa que uma sociedade sempre envolve. Daí que a simplificação explicativa seja empobrecedora, até porque com uma História rica, como a nossa, há sempre a coexistência de elementos contraditórios e um jogo social de forças que leva à impossibilidade de respostas unívocas relativamente aos grandes enigmas históricos e sociais que sempre existem. Miguel Real fala, por isso, de cinco períodos com características próprias: (a) da formação da nacionalidade à segunda metade do século XVI, com a presença bem marcadas das quatro atitudes referidas; (c) a força da vertente racionalista ao longo do século XVIII por influência da emergência iluminista; (d) já a conflitualidade entre as diversas atitudes vai caracterizar o século XIX, no qual a liberdade de pensamento e o individualismo irão favorecer o pluralismo, a diversidade e a tensão crítica entre as várias concepções; (e) quanto ao século XX, temos de entender que a emergência das ditaduras suscitou inevitavelmente a existência de tensões com expressão pública, entre as diferentes concepções a considerar. Neste último período, nota-se até 1926, o predomínio racionalista e o confronto com o modernismo, enquanto entre 1926 e os anos sessenta o providencialismo de Estado está confrontado com o racionalismo, o espiritualismo e o modernismo, os quais, de modos diversos, pretendem moldar a acção, de forma que a unicidade providencialista não possa pôr em causa a liberdade. Por fim, Miguel Real apresenta o que designa como dez categorias essenciais da cultura portuguesa, onde encontramos instrumentos muito úteis para o diagnóstico e tratamento dos problemas que se manifestam.
CATEGORIAS PARA NOS ENTENDERMOS As dez categorias para que aponta o ensaísta permitem conhecer melhor a realidade que nos é dada. Senão vejamos: (1) o carácter lírico da cultura portuguesa provém das origens (dos trovadores) e foi sofrendo alterações e ajustamentos; (2) a chamada teoria da saudade surge à luz do dia com o “Leal Conselheiro”, aprofundando-se sobretudo a partir de então; (3) o modernismo português vem de Sá de Miranda e parte do pressuposto que o intelectual deve ter uma atitude crítica perante o Estado; (4) a “Menina e Moça” de Bernardim representa a génese da espiritualidade especificamente portuguesa, abrindo campo à exploração psicológica e metafísica do universo interior português; (5) a dramaturgia de Gil Vicente marca a vertente da crítica social da nossa cultura; (6) o pendor fatalista encontra-se em António Ferreira e na tragédia “A Castro”, ponto de encontro de um dos mais vivos mitos portugueses, o de Inês de Castro (em que amor e poder se chocam) tratado segundo os cânones clássicos; (7) as “trovas” do Bandarra significam a afirmação do messianismo e do fatalismo, também com forte marca fatalista; (8) em contrapartida, as crónicas de Fernão Lopes põem a tónica numa vertente realista da cultura, igualmente marcante; (9) enquanto a análise historiográfica e a consideração crítica dos factos estão evidenciadas nas obras de Zurara, Rui de Pina, Castanheda e João de Barros; e (10) a perspectiva científica está bem presente nas obras de Abraão Zacuto e Duarte Pacheco Pereira, bem como em Pedro Nunes e Garcia de Orta.
QUE IDENTIDADE COMPLEXA? Ora, sendo a identidade portuguesa resultado da convergência de diversas influências, sendo o território português dominado por diferentes características (que levaram Orlando Ribeiro a falar de um continente em miniatura) e sendo o povo português resultado de um cadinho (melting pot) profundamente rico e heterogéneo, fácil é de compreender a pluralidade de categorias mentais permanentes na nossa cultura: lirismo constitutivo, presença da saudade, mimetismo relativo à influência externa, oposição intelectual ao estatismo, forte inclinação à espiritualidade, literatura como meio de denúncia, tendência fatalista e providencialista, realismo social, importância da historiografia e disponibilidade (não tão clara quanto desejável) para a ciência.
“Teoria Tridimensional do Direito, Teoria da Justiça e Fontes e Modelos do Direito” (INCM, 2003) de Miguel Reale é um volume precioso para o conhecimento e compreensão da obra do seu autor, cujo centenário do nascimento acaba de ocorrer (7.11.2010). A obra publicada em Portugal graças ao empenhamento pessoal de António Braz Teixeira, permite um contacto fecundo com uma reflexão muito rica sobre a filosofia do Direito numa perspectiva actual, a partir da experiência de alguém que parte da necessidade de fazer uma ponte entre a tradição e a modernidade. Uma vez tive o privilégio, a convite da Academia Brasileira de Letras, de invocar a memória do Mestre do pensamento, permito partilhar uma síntese da minha comunicação feita há poucos dias no Rio de Janeiro, por amabilidade do meu amigo Marcos Vinicios Vilaça, Presidente da Academia.
MIGUEL REALE, REFERÊNCIA CÍVICA Conheci Miguel Reale (1910-2006) em casa de Celso Lafer, regressado de Lisboa, onde fora homenageado. Falámos de um tema que lhe era caro – o consentimento dos cidadãos como pedra angular do Estado moderno. Aristotelicamente, o filósofo procurou o justo meio à luz do Estado contemporâneo – com as dificuldades inerentes à evolução do Estado de bem-estar, visando entender o caminho de Kant até Hegel. Foi assim que descobriu um labirinto – com a avidez do estudioso informado e do experimentador incansável, que criticou o determinismo, entendendo que o mercado não permitiria, só por si, a realização da justiça, pelo que haveria que ligar liberdade e justiça, seguindo a atraente fórmula de Carlo Rosselli: «tornar liberal o socialismo e socialista o liberalismo». Aos 21 anos encontramos esta preocupação e depois a aproxima-se de Plínio Salgado, a partir da necessidade de um Estado forte, capaz de controlar a oligarquia económica e de ser alternativa ao capitalismo e ao colectivismo. Ao ler, todavia, Labriola, Croce e Durkheim, Reale põe a tónica na necessidade de limitar os poderes do centralismo estatal. É o tempo em que acompanha a génese da política do «New Deal» de Franklin D. Roosevelt. Getúlio Vargas tornara-se, então, uma referência política contraditória, que atrai o jovem académico, o qual, no entanto, será obrigado ao exílio italiano, depois do «putsch» integralista de 1938. Em Itália, compreende o perigo do fascismo, já que havia uma grande distância entre a teoria e a prática totalitária. O anti-semitismo rampante choca-o e leva-o a outro caminho. «Qual será a ordem de amanhã? (…) a ordem de amanhã não está em nenhuma doutrina. Não está no nazismo. Não está no fascismo. Não, também, no liberalismo. Esses sacrifícios todos da humanidade estão demonstrando que marchamos para uma ordem mais humana, mais social, em que a Democracia será uma realidade».
ACADÉMICO E FILÓSOFO Em 1943, vemo-lo essencialmente académico, na cátedra da Faculdade de Direito, defendendo a determinação da natureza do Direito a partir de três facetas – o facto, o valor e a norma – que são o fio de Ariadne que conduz ao regresso a Kant, que a guerra obriga a recuperar. Em 1947, regressa à política – compreendendo que as acções de poder não são ditadas por doutrinas, mas por orientações pragmáticas. Reale chega à reflexão e à filosofia, a partir do entendimento de que «o homem é o único ente que originariamente é e deve ser, no qual ser e dever ser coincidem». Mas a emergência das utopias radicais, o avanço do totalitarismo (estudado por Hannah Arendt) leva M. Reale a temer pela afirmação da democracia. E recordo a preocupação que me exprimiu sobre a importância do fenómeno financeiro público e tributário. O cidadão está perante o Estado, armado de direitos e de garantias. O consentimento dos cidadãos contribuintes é, assim, um elemento fundamental para a separação e interdependência de poderes, de Montesquieu, pedra angular do constitucionalismo, articulando as legitimidades da origem e do exercício, o primado da lei (rule of law) e a justiça como horizonte de valor. E Reale entendeu recordar-me que, para o seu percurso individual, muito tinha contribuído o contacto com o fenómeno orçamental, que permitiu uma mais rica abordagem jus-filosófica. Como salienta José Guilherme Merquior, num ensaio luminoso sobre o mestre, experiência é «a palavra nuclear no pensamento de Reale». E assim a história é fundamental para o filósofo brasileiro, desde que corresponda a um espírito objectivo, relacional e intersubjectivo – e não apenas objectivável. Daí o primado da pessoa humana e a importância da relação comunitária. No entanto, para Merquior, há dois optimismos de valor desigual que encontramos na obra e no ensino do professor de S. Paulo: um correspondente aos valores, que o autor considera complementares e solidários entre si, num sentido harmonioso de que Merquior duvida, em face da crítica de Max Weber baseada no antagonismo e na conflitualidade de valores; e o outro, ligado à ideia de uma elevação da humanidade através da filosofia.
COMPREENDER A SOCIEDADE Reale demarca-se dos relativismos e assume (como Celso Lafer refere relativamente a Hannah Arendt) um contrato social horizontal, encarado como um pactum societatis, pondo a tónica na pessoa humana e aí baseando a teoria do Direito. Alceu Amoroso Lima falará, por isso, de «tentação da integralidade» em Reale, cuja obra filosófica é, contudo, «a mais importante sem dúvida do movimento brasileiro contemporâneo». E é esta perspectiva integradora que o leva a definir o Direito como só podendo ser «compreendido como síntese de ser e de dever ser. É uma realidade bidimensional de substractum sociológico e de forma técnico-jurídica. Não é, pois, puro facto, nem pura norma, mas é o facto social na forma que lhe dá a norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente segundo uma ordem de valores». Afinal, o «erro maior do idealismo axiológico (para Reale) foi esquecer que a ideia de valor e de dever ser nos conduz directamente ao homem, assim como a simples ideia de homem implica a ideia de valor». Deste modo, cada pessoa constitui um valor-fonte de todos os valores. E Reale, distinguindo três opções, faz uma escolha. Estão em causa as concepções técnico-formal, sociológica e cultural. O filósofo opta pela concepção cultural – que se integra no realismo contemporâneo, aplicando, no estudo do Estado e do Direito, os princípios fundamentais da Axiologia, como teoria dos valores em função dos graus de evolução cultural. Assim, o Direito surge como uma síntese entre ser e dever ser – é facto e é norma, é facto integrado na norma, tal como exigido pelo valor. E os valores jurídicos são de dois tipos – os naturais (ou conaturais) à humanidade, como o valor mesmo da pessoa humana, que é o valor-fonte da ideia de justiça; e os adquiridos através da experiência histórica.
LIBERDADE E ESTADO DE DIREITO No Estado democrático existe, porém, uma integração de liberdades, que obriga à limitação mútua de poderes (freios e contrapesos) e à partilha de responsabilidades. E assim a concepção do Estado de Reale concilia as exigências da autoridade e da liberdade – «o Estado que fere a liberdade da pessoa, atinge a sua própria essência». No campo do Direito não se concebe, porém, a soberania com exclusão da liberdade. Os valores não possuem uma existência ontológica, abstractamente: «existem nas coisas valiosas», e a pessoa realiza-as na sua própria experiência. O certo é que a justiça tem de funcionar como valor funcionalmente ordenador dos demais valores da experiência jurídica. Impõe-se a respectiva graduação hierárquica. Justiça e experiência têm de se ligar, para que liberdade e igualdade participem plenamente no processo dialógico da história. Sem liberdade não é possível a experiência axiológica, do mesmo passo que sem a justiça, que é sempre a expressão histórica da igualdade, não se mantém a convivência humana ordenada entre indivíduos e grupos sociais.