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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 31 de Janeiro a 6 de Fevereiro de 2011

 

 

Continuamos o relato da nossa peregrinação nipónica. Nada melhor do que invocar uma obra-prima da literatura mundial – “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (publicada postumamente em 1614). Falamos de "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus." Trata-se de um relato indispensável para se compreender não só a experiência da presença portuguesa no Oriente, nas suas múltiplas facetas, encarnadas por este herói que protagoniza de tudo um pouco o que os portugueses fizeram nessas longínquas paragens. Missionário e comerciante, pirata e aventureiro, com evidentes ligações à literatura picaresca do Lazarilho de Tormes, cronista imaginoso, imprescindível para se perceber o que escreveram Diogo do Couto ou João de Barros, estamos diante de uma referência fundamental da cultura portuguesa.

 

 

OUTONO DE QUIOTO
O sol imperava naquela manhã de Outono em Quioto. Quando chegámos a Myioshin-ji, por um momento julgámos que não seria possível ver o sino português do século XVI, que recorda a presença dos jesuítas num momento fundamental nestas paragens nipónicas. Myioshin-ji é um complexo de 46 templos, onde há um número significativo de monges, próximo da centena. Graças à boa vontade geral e à extrema simpatia de quem nos recebia, fomos ao templo de Shunkoin, onde vimos e ouvimos, com evidente emoção de todos, o sino, marcado com o símbolo da Companhia de Jesus e a indicação do ano de 1577. O reverendo Takafumi Kawakami, instrutor de zen, com experiência internacional, em especial nos Estados Unidos, foi precioso nas explicações que deu durante a pormenorizada visita que fizemos ao templo. O sino não está ali por acaso, uma vez que o templo, que data de 1590 e foi reconstruído no século XVIII, está ligado à família dos Hishikawa e aos cristãos portugueses. A subtil presença de símbolos que têm interpretação cristã confirma esses elos: três aves de espectaculares plumagens representam a Santíssima Trindade, cinco rosas brancas significam as chagas de Cristo e os lírios a pureza da Virgem…

 

DE NOVO WENCESLAU
Lembramo-nos, de novo, do que Wenceslau de Moraes continua a dizer-nos: “E não tereis notado que as pedras dos vetustos monumentos diferem muito dos calhaus vulgares, que encontramos nos caminhos, dispersos ao acaso? Como que se embeberam um tanto do espírito dos mortos (…) vivem em intenções”. Mestres e discípulos são encontrados, a cada passo, ora dialogando, ora em silêncio. Em Ryoan-ji, a quintessência de um templo zen, recordamos o que João Bénard da Costa diz no seu “Quinze Dias no Japão” (2001) e que serve de tema ao filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes. Aí há um diálogo extraordinário com Manoel de Oliveira sobre a ideia de que “só de vê com o coração”… Naquele jardim, com quinze pedras, representando o universo, em nenhum ponto todas poderiam ser vistas, havia sempre alguma que faltava, encoberta por outras. Depressa percebemos que nunca poderemos ver todas as pedras em simultâneo. E um monge perguntou ao João se já compreendia o que ali se passava. «Começo a compreender!». Mas o monge surpreendeu-se: «Já aqui estou há vinte anos e cada vez entendo menos». E ali sentados, com o sobreaviso do monge, reflectimos sobre o tempo, o mundo, a memória e lemos: “no oeste varremos as folhas caídas com a nostalgia de quem sabe que o tempo findou; no Japão essas folhas juntam-se e dão lugar à alegria do surto de um novo tempo”. João a dizer-nos que a cultura nos traz mil surpresas. «Esse jardim de Ryoan-ji ensina-nos, entre muitas outras coisas, que dizem os orientais, uma vida inteira não dá para aprender, que cada coisa é ela e simultaneamente o seu duplo, que nada existe fora do olhar que lhe dá existência e que – como no paradoxo de Zenão, de que talvez seja a ilustração suprema – o movimento é a mais radical de todas as ilusões».

 

UM PALÁCIO CHEIO DE SEGREDOS
Na véspera, no imponente Palácio de Nijo, ao pôr-do-sol, tínhamos podido tomar contacto com a história japonesa, em especial com a longa evolução do poder dos xóguns Tokugawa (a partir do poderoso Ieyasu – 1543-1616, depois da morte de Toyotomi Hideyoshi), cujo símbolo era a malva real, até ao predomínio da Casa Imperial, simbolizada pelo crisântemo das 16 pétalas, depois da restauração Meiji (1868). Ali encontrámos, nas portas deslizantes, as pinturas dos grandes felinos, dos pinheiros e das cerejeiras, da autoria dos exímios membros da família Kano (que bem conhecemos dos biombos Namban), podendo ainda testar os pavimentos com sistema rouxinol, a fim de denunciarem, através de um complicado sistema de grampos e pregos, os mais leves movimentos suspeitos de espiões ou intrusos. Em Nijojo, com toda a sua grandeza e sofisticação, bem evidentes nas esculturas em madeira representando aves em voo, pavões e delicadas flores, pudemos transpor-nos em espírito para tempos muito recuados, em que os primeiros portugueses aqui chegaram, animados com a ideia de que havia uma sociedade disponível para a sua influência. No entanto, com o tempo puderam compreender que constituíam uma ameaça demasiado presente e perigosa para poder prosseguir sem uma violenta reacção.

 

O TEMPLO DOURADO E MISHIMA
Quioto continuava a surpreender-nos. O Outono inebriava-nos. O Kinkaku-ji, o Pavilhão Dourado, enaltece o xógum Ashikaga, Yoshimitsu (1358-1408), mas permite perceber como a natureza e a obra humana se podem harmonizar. Estamos diante de uma réplica, reconstruída depois do fogo posto de 1950 – que Yukio Mishima dramatiza no inesquecível “O Pavilhão Dourado”: «eu via ali o Pavilhão imponentemente erguido ao céu, entre os raios de sol da manhã que subiam os vales». E a fénix, que encima o edifício, permite-nos crer na renovação da vida. Ao invés, o Parque Imperial causa-nos uma impressão de quase normalidade. Não que tudo não seja surpreendente, mas a verdade é que a pujança criadora (e até do silêncio) menos se sente. Sobretudo, quando o final do dia, no declinar soberbo da luminosidade, nos reservaria a mais fantástica das impressões do momiji, em Kiyomizu, lugar de peregrinações e comércio. Wenceslau era peremptório. Aí se sentia a intensidade da magia: “o artista é a natureza, e só ela (…); dentro em pouco, só ficarão os troncos nus, a projectarem no azul do céu os seus esguios esqueletos negros”…

 

INTERROGAR O SILÊNCIO
Com o Padre Adelino Ascenso, missionário experimentado e culto, que José Tolentino Mendonça trouxe até nós, no Hotel, tivemos oportunidade de invocar o romance de Shusaku Endo “Silêncio”, sobre a apostasia de um jesuíta português no século XVII: “O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que Ele se mantenha calado, toda a minha vida até hoje falará d’Ele para todo o sempre”. Estava em causa a barreira de cultura entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. No entanto, o cristianismo no Japão é heterogéneo e surpreendente – há os mártires e os cristãos escondidos, os que deram testemunho e os outros, que preferiram mergulhar na vida japonesa, dilacerados entre a fidelidade do gesto e a fidelidade do princípio, tendo como fundo o silêncio dramático da dúvida e do remorso. “Podes pisar-me!” – parecia dizer Cristo representado no “fumie” usado para consumar a negação. Afinal, há o mistério do silêncio – ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. A distância cultural é mais forte do que os julgamentos precipitados. Fernão Mendes poderia ter sido lembrado (como António Alçada gostava), sobre a conversa do Mestre Belchior com o rei japonês do Bungo: «o padre lhe tornou que muito satisfeito estava de seu bom propósito, mas que se lembrasse que a vida não estava nas mãos dos homens, pois todos eram mortais, e se ele acertasse de morrer antes (de se baptizar), onde iria a sua alma? A que ele, sorrindo-se, disse: - Deus o sabe…»

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 24 a 31 de Janeiro de 2011

 

 

O Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner, sob a coordenação de Maria Andresen de Sousa Tavares, terá lugar, esta semana, na Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 27 e 28 de Janeiro, seguindo-se à entrega do espólio da escritora pela família à Biblioteca Nacional de Portugal no dia 26. Trata-se dum acontecimento importante no nosso panorama cultural a que o CNC se associa com especial gosto e orgulho, destacando-se a recente publicação da «Obra Poética» de Sophia, organizada por Carlos Mendes de Sousa (Caminho, 2010), e a saída do último número da revista “Colóquio – Letras”, cujo lançamento ocorrerá no final da iniciativa.

 

 

  

Sophia, por Arpad Szènes

 


O ENCONTRO DO CLÁSSICO E DO MODERNO
Sophia é uma das grandes referências da poesia contemporânea e da cultura portuguesa do século XX. Clássica e moderna, encontra e prolonga Fernando Pessoa por um caminho próprio e diferente. E Eduardo Lourenço afirmou certeiramente que “desde os tempos de Pascoaes, a poesia portuguesa esforçava-se por conciliar Apolo e a sua mítica expressão solar da vida com Cristo, sombra sob tanto excesso de sol, deus morto para que a morte não fosse confundida com a vida digna desse nome. Se essa conciliação teve lugar em algum lugar foi na poesia de Sophia”. Nela sentimos a coexistência de Atenas e Jerusalém. Daí ter nascido “precocemente clássica”, talvez fora de uma modernidade, por definição em crise, mas ciente da importância dos novos caminhos em busca da dignidade do Ser. E assim, ainda segundo o ensaísta da “Heterodoxia”, Sophia chega a Nietzsche e à ligação dionisíaca, através de um “Cristo Cigano” – que não espera que o crucifiquem e que se oferece nu ao esplendor da vida que misericordiosamente o assassina – “mas a sua morte despe-o da sua aparência solar e esculpe-o em redentora agonia onde o rosto do Ausente se revela”. E sentimos na autora de “Mar Novo” a sede de justiça, que a leva a não fechar os olhos ao “espantoso sofrimento do mundo”. Francisco Sousa Tavares disse, assim, que Sophia "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens". E ainda Eduardo Lourenço diagnosticou "uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio" que deve "ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional". Daí que “como Eurídice” desça ao inferno do sofrimento “para o exorcizar”.  

RECUSAR A FATALIDADE DO MAL
Sophia foi, como já dissemos noutras circunstâncias, com a sua escrita e o seu exemplo, uma referência forte que fica para além dos jogos de palavras e das circunstâncias. "Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa" (Arte Poética III, 1964). Todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excepcionais se aliaram sempre a uma inteligência política arguta. Os seus discursos políticos mostram-no. Os seus combates recusavam a ambiguidade. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo” – confessa-nos. Então “discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”. “Às vezes a polícia política (PIDE) aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico”. E, afinal, nada era fácil, uma vez que não passava despercebido que “em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’”. E lembramo-nos do “Mar Novo” de 1958: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”.  


UM TEMPO DE DETERMINAÇÃO E INCERTEZA
Foi o tempo da Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos (e temos na retina, em Abril de 1974, à saída da Prisão de Caxias, a imagem da sua presença inesquecível). Aquando do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), pela atribuição em 1965 do Prémio de novelística a Luandino Vieira, Sophia colocou o CNC, a que presidiu, ao serviço da causa da liberdade da cultura. Isto, além do apoio ao Manifesto dos 101, de 25 de Outubro de 1965, onde, sobre a questão colonial, um grupo de cristãos dizia sentir “imperiosamente a responsabilidade de afirmar que se a solução vier a ser um trágico extremismo radicalmente anti-português, ela terá sido a lógica consequência de um outro extremismo anterior, de ódio gerador de outros ódios”. Vemos, ouvimos e lemos – não podemos ignorar. Contra a ambiguidade, “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”. Foi deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista, ao lado de Mário Soares, sendo marcante o discurso que fez sobre as liberdades de criação cultural e de aprender e ensinar. “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exactamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2 de Setembro de 1975). A luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. E, a propósito, invocava o terrível grito pronunciado no paraninfo da Universidade de Salamanca perante Unamuno: “Morra a Inteligência!”, para que nunca mais fosse possível ouvi-lo. “Queremos um relação limpa e saudável entre a cultura e a política. Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti-cultura e toda a anti-cultura é reaccionária”.

 

O VALOR FUNDAMENTAL DA LIBERDADE
Premonitoriamente, Sophia deixava claro um sentido essencial para a interpretação da Lei Fundamental de 1976 – em que a liberdade é a pedra angular, contra unicidades e dogmatismos. Por isso, invectivava o “poder totalitário”, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. Mas Sophia também falou da educação como objectivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”? E se Sophia acreditou na Educação e na Cultura, também acreditou em Portugal: “Portugal logo que se forma é um país cheio de energia, com grande vontade de avançar e que o faz para o desconhecido. A maior parte dos portugueses não tem noção do prodígio que foram os Descobrimentos (…) Os portugueses eram um pouco como os gregos: onde iam faziam como na sua terra, às vezes melhor. Havia nisso uma grandeza e uma generosidade”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins 

A VIDA DOS LIVROS


de 17 a 23 de Janeiro de 2011

 

A viagem que fizemos ao Japão foi uma oportunidade fantástica para usufruirmos a hospitalidade, a história e a tradição de um povo antigo que conhecemos desde o século XVI. Fomos no rasto de Wenceslau de Moraes e, por isso, levámos connosco o pequeno livro de Ana Paula Laborinho “O essencial sobre Wenceslau de Moraes” (INCM, 2009), que muito nos ajudou, uma vez que o escritor muito nos ensina sobre essa cultura extraordinária e inesgotável. Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao arquipélago de Cipango. Ainda hoje sentimos o peso desse conhecimento ancestral. Fomos, de facto, tratados principescamente e verificámos que Portugal não é indiferente para os japoneses. É fundamental, assim, que conheçamos melhor a cultura japonesa, uma vez que todos teremos a ganhar com o aprofundamento dessa relação.

 

 

QUIOTO, CIDADE ÚNICA

Quioto é uma cidade especial. Aqui sente-se bem a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. Estamos na antiga cidade imperial, qualidade que perdeu em 1868, depois de ter havido entre os séculos XVII e XIX uma partilha de influência política com a cidade de Edo, hoje Tóquio, até à revolução Meiji. A cidade é marcada pelo rio Kamo e está situada entre três montanhas. Depois de descansarmos um pouco, após a longa viagem que nos trouxe de Lisboa a Osaka, via Paris, fizemos o que se deve fazer numa cidade a que chegamos pela primeira vez, sobretudo quando tem uma cultura que nos não é imediatamente familiar: a solução é caminhar, com alguém que conheça o lugar e nos possa guiar até ao coração da urbe. E assim, fomos até ao bairro de Gion, que conhecemos das narrativas e descrições romanescas, e aí pudemos ver o desenho tradicional de uma antiga cidade nipónica. Há muitos restaurantes tradicionais, há muito movimento, edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos de papel iluminados. Vêem-se geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. Era no Outono, uma das estações privilegiadas do Japão, e havia uma especial alegria e jovialidade no ar, mesmo que a noite já tivesse caído há algum tempo. Não havia humidade e a temperatura rondaria os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, recordamos a importância do Kabuki e a sua evolução. Apesar de ter sido fundado por mulheres, a verdade é que estas foram banidas sob acusação de prostituição, e há muito que o Kabuki passou a ser representado apenas por homens. Complexas maquilhagens permitem distinguirmos o Kabuki do teatro Noh, mas as diferenças são profundas, indo do burlesco à erudição. No restaurante Nishisaka, onde jantamos, sentamo-nos no chão, como tradicionalmente, descalços, e usufruímos uma refeição de um delicioso shabu shabu, pequenas fatias de carne de vaca cozidas por nós em água a ferver, que Camilo Martins de Oliveira nos aconselha, merecendo o aplauso geral.

 

O AMBIENTE DOCE DE GION

Quando no dia seguinte voltámos a passar por Gion, de manhã cedo, a quietude imperava, num ambiente doce. O rio Kamo é referido pela guia com veneração. As suas águas protegem a cidade e os seus habitantes. Nas margens, passamos pela rua de Pontocho, popularíssima e uma das marcas da cidade. Aqui a referência aos portugueses não se faz esperar. Neste local ficaria um banco de areia e diz a tradição que os nossos compatriotas chamar-lhe-iam ponte. Daí a designação da rua e do local. Passámos a reparar que sempre que se falava dos portugueses os olhos dos nossos interlocutores brilhavam de satisfação. Há um genuíno gosto pelo que somos e pelo facto de termos sido os primeiros europeus a chegar. Naquele lugar distante, fomo-nos assim sentindo em casa. O sol iluminava a cidade e as montanhas e começámos a perceber a beleza extraordinária do «momiji». As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), o escritor português que se apaixonou pelo Japão e cujos textos nos acompanham como ajuda preciosa, disse que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima. Nessa manhã cristalina, fomos, ao Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, que literalmente se apagava diante daquela natureza outonal pujante. Depressa percebemos que o importante não era o facto de a prata nunca ter sido colocada para tornar o edifício espectacular. Tudo se passava, afinal, como se apenas faltasse a prata para espelhar a pujança dos jardins, pois o essencial era o movimento das plantas e a ordenação magnífica da natureza. É a memória do xógum Yoshimasa, no distante século XIV, que está presente, neste edifício a partir da recordação de seu avô Yoshimitsu, que num gesto de suprema audácia, cobriu de folha de ouro o Pavilhão Dourado, o surpreendente Kinkaku-ji, celebrado por Mishima… Mais do que a prata ou o ouro, o importante era o enaltecer da natureza em toda a sua intensidade. E talvez a ausência da prata pudesse ter sido um desígnio divino, para que as árvores e as plantas pudessem tornar-se mais evidentes na sua magnitude.

 

O OUTONO MÁGICO DO «MOMIJI»
O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelos caminhos do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Depois, vamos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo em direcção ao templo zen de Nanzen-ji. A designação recente do percurso deve-se ao filósofo Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar simbólico obrigatório para a compreensão da cultura japonesa. Os tons vermelhos e amarelos das folhas do Outono inebriam-nos, o sol e o dia ameno contribuem para o nosso deleite.

 

«SÊ MESTRE DA TUA MENTE»
Chegados a Nanzen-ji sentimos que a lição «sê mestre da tua mente» é um elemento fundamental nesta cultura do conhecimento e da compreensão. A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo dá-nos a impressão de que estamos num lugar essencial para a cultura zen. Este portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram num cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura tradicional japonesa do século XVII da autoria de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. A verdade é que a relação do tempo e do universo tem sempre uma importância especial. Sentimo-lo no equilíbrio entre a arte e a natureza em Nanzen-ji, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji, nessa tarde. A preparação, a simbologia e os gestos – tudo exige um forte domínio do corpo e da presença, em nome do respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia. No fundo, o culto é muito mais do que uma tradição, é um gesto litúrgico, até de influência cristã. Folheamos “O Culto do Chá” de Wenceslau de Moraes: «nos templos famosos em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de mostrar as relíquias e os museus». Que mais dizer?  

  

 

Guilherme d'Oliveira Martins 

 

 

A VIDA DOS LIVROS


de 10 a 16 de Janeiro de 2011

 

“Antologia Poética” de Jorge de Sena (Guimarães Editores, 2010), edição de Jorge Fazenda Lourenço é uma recolha criteriosa que nos dá um retrato de corpo inteiro do poeta de “Fidelidade”. Estamos diante de um dos poetas e ensaístas mais notáveis do século XX. E nesta obra essa riqueza é bastante evidente. Sena fala, por isso, da sua criação poética deste modo: é “a poesia de um homem que viveu muito, sofreu muito, partilhou a vida pelo mundo adiante, sempre exilado, e sempre presente com uma vontade de ferro”. E é essa definição que sentimos ao ler esta antologia, onde poeta e ensaísta sempre se associam, numa criação riquíssima de palavras e ideias. 

 

 

Jorge de Sena, por Fernando Lemos


HOMEM DESTINADO…

Para Jorge de Sena, o poeta deveria ser visto «como um homem destinado a nele se definir a humanidade: um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro». Jorge Fazenda Lourenço recorda oportunamente essa afirmação ao apresentar esta antologia, que propositadamente abrange apenas uma pequena parte da obra, menos de um décimo, pretendendo, contudo, por um lado, dar uma imagem significativa do poeta e, por outro, apresentar um aperitivo suculento para a publicação da Poesia Completa, que agora (em boa hora) se anuncia. Daí que Jorge Fazenda Lourenço, profundo conhecedor da obra de Jorge de Sena, tenha tido o cuidado em apresentar a antologia fundamentalmente como um roteiro, certo de que nunca uma obra, qualquer que seja, pode resumir-se ou limitar-se. «Uma antologia apetece ser breve. Para que a escolha, que é do domínio do esparso e do fragmentário, não pretenda substituir-se à totalidade do corpus. Para que o pouco que se mostra crie o desejo de saber o corpo inteiro. E um poeta como Jorge de Sena é para ler-se todo». Dir-se-ia que afirmação vale para qualquer poeta, mas neste caso há uma razão especial para o lembrar, já que nos encontramos diante de uma criação literária multifacetada e complexa, em que o poeta e o ensaísta estão plenamente na sua riquíssima produção. E que faz o organizador? Começa, e bem, por pedir ao próprio poeta que nos ajude no roteiro apresentado. Daí os textos significativos que podemos ler a abrir a obra, onde Sena fala de Sena. E assim podemos contar com a ajuda do autor, que exerce a sua proverbial verve analítica, dotado que era de uma inteligência e de uma argúcia capazes de nos criar encantamento. No Prefácio da “Poesia III” (1978) encontramos, aliás, uma passagem fundamental, onde Jorge de Sena procura explicar-nos o percurso dos seus títulos poéticos e da sua obra, que merece leitura atenta. Parte o autor de Patrice Latour du Pin («la vie recluse en poésie») e dá-nos como que uma chave para a compreensão de quem é e do que escreveu como poeta. É no entanto apenas uma tentativa explicativa do caminho pessoal, incapaz de poder ser resumido em poucas palavras ou em referências capitulares. A leitura desse texto tem de ser compassada, lenta e meditada, para percebermos que o acaso é algo que quadra mal com o poeta de “Perseguição”. «O homem corre em perseguição de si mesmo e do seu outro até à coroa da terra, onde humildemente encontrará a pedra filosofal que lhe permite reconhecer as evidências. Ao longo disto e depois disto e sempre, nada é possível sem fidelidade a si mesmo, aos outros e ao que aprendeu / desaprendeu ou fez que assim acontecesse aos mais. Se pausa para coligir estas experiências, haverá algum Post-Scriptum ao que se disse. Após o que a existência lhe são metamorfoses cuja estrutura íntima só uma arte de música regula. Mas, tendo atingido aquelas alturas rarefeitas, andou sempre na verdade, e continuará a andar, os passos sem fim (enquanto a vida é vida) de uma peregrinatio ad loca infecta, já que os “lugares santos” são poucos, raros, e ainda por cima altamente duvidosos quanto à sua autenticidade. Que fazer? Exorcismos. E depois vagar como Camões numa ilha perdida, meditar sobre esta praia aonde a humanidade se desnude, e declarar simplesmente que terminamos (e começamos) por ter de declarar: Conheço o sal… sim, o sal do amor que nos salva ou nos perde, o que é o mesmo. O mais que vier não poderá deixar de continuar esta linha de, sobretudo, fidelidade, “à honra de estar vivo”, por muito que às vezes doa». Parece uma citação excessiva, demasiado longa, mas facilmente se percebe, que não poderia ser truncada, porque o poeta é propositadamente exaustivo e sintético na explicação das palavras fundamentais que entende realçar, com uma especial força dada à fidelidade.


CULTOR DA VIDA CONTRADITÓRIA

Jorge de Sena cultiva as contradições, mas não se deixa arrastar pelo domínio da palavra vã (“e a miséria é isso: não imaginar / o nome que transforma a ideia em coisa…”, como diz em “Peregrinatio”). O percurso da vida e da obra procura ligar o rigor da reflexão, do argumento e a criatividade das palavras que flúem: “Não procures o que é efémero…; / não procures o que é Eterno, / tu não podes saber, tu não chegas para saber / o que é ou não é eterno” (“Perseguição”, 1942). Mas, neste ligar do que se contradiz e do que põe em causa, que o mesmo é dizer, neste considerar da dúvida, há o entendimento de que “Soube-me sempre a destino a minha vida”… Quantas incompreensões? Quanto espaço difícil de gerir? Quanto destino interrogador? A personalidade do poeta foi por muitos apontada como difícil, mas hoje, à distância, fácil é de entender que Jorge de Sena sentia em si uma força criadora e uma energia que chocava com a mediocridade que via em roda – e daí a insistência no “reino da estupidez” e a sua incompreensão pela falsa resistência do silêncio e da indiferença. Segue aí o autor os passos de António Sérgio sobre o “reino cadaveroso”, sentindo na carne e nos solavancos da vida, a terrível resistência à qualidade e ao talento. Com a responsabilidade de uma grande família e o apego insistente à liberdade de pensar e ao culto permanente do inconformismo, Sena é uma personagem que procura corporizar a poesia com grito de alerta pela dignidade humana – oiça-se, por exemplo, “Uma pequena luz bruxuleante…” ou “Senhor, não peço mais que silêncio”. Aí está a força inequívoca de quem combate com palavras e ideias, contra os espaços fechados ou as cartas marcadas. Em Chartres, invocando Péguy, sentimos o cosmopolitismo europeu: “Europa, minha terra, aqui te encontro / e à nossa humanidade assim translúcida / e tão de pedra nos pilares sombrios”. No entanto, na porta lateral da catedral de Colónia, Jorge de Sena, o português naturalizado brasileiro, sente-se rejeitado, através do ecumenismo lusitano da dupla nacionalidade: “Ah, naturalizado, não é brasileiro”; “Brasileiro naturalizado? Ah, não é português”. O registo humorístico não dá para esconder uma mágoa inequívoca. Mas, ao lado do registo sublime, o poeta sabe que tem de descer aos lugares infectos e à miséria humana. Lembre-se o alucinante diálogo “em Creta, com o Minotauro”, com a presença do abjecto e do sublime, da raiva e do orgulho, além de “O Desejado Túmulo”. “Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria / de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações / nasci…”. Mas, perante tão majestoso interlocutor o poeta terá de dizer: “Nem eu, nem o Minotauro, / teremos nenhuma pátria…”. Mas quando lemos o extraordinário poema que começa “De morte natural nunca ninguém morreu”, sentimos um intenso frémito suscitado pelo poeta que interroga os limites e que procura nas palavras o sentido da vida relativa. Do mesmo modo, o amor surge paradoxal, na corda bamba de eros e tanathos: “Amor, amor, amor, como não amam / os que de amar o amor de amar o amor não amam”. Na repetição aparente das palavras, encontramos diferentes sentidos que procuram dar-nos a ideia de incompreensão. E como não ter bem presente na revisitação de Jorge de Sena dois dos seus poemas emblemáticos, que contêm a simbiose de quem se assumiu como seguidor de quem, como Camões ou Sá de Miranda, soube ligar as ideias e a poética – falo de “Camões dirige-se aos Seus Contemporâneos” e “Carta a Meus Filhos sobre os fuzilamentos de Goya” que ilustram a inteireza do poeta? 

Guilherme d'Oliveira Martins

MALANGATANA


 


A espiral multicolor de Malangatana

 

Diria um desenho para dizer Vida!

 

Uma palavra para dizer Viva!

 

Um grito festejando uma verdade

 

Num sorriso ternurado

 

Para a nunca adiada savana

 

Na espiral multicolor

 

Onde pulsa e pulsará a vida de Malangatana

 

 

Teresa Vieira, 5.1.11, Sec.XXI

A VIDA DOS LIVROS


de 3 a 9 de Janeiro de 2011

 

“Ano X – Lisboa 1936 – Estudo de Factos Sócio-culturais” é uma análise rica e curiosíssima sobre um ano da vida portuguesa. Não se trata, porém, de um ano qualquer, é um ano significativo: em Portugal, o regime do Estado Novo procurava consolidar-se, em Espanha abria-se um dos períodos mais dramáticos e sangrentos da sua história, na Europa e no mundo encetava-se um conflito mundial de dimensões inéditas e consequências imprevisíveis. E o certo é que a catástrofe ia-se anunciando, com o acastelar de nuvens muito negras no horizonte.

 


UM CICERONE PRIVILEGIADO
José-Augusto França concede-nos o privilégio de podermos contar com um cicerone de exímia qualidade para nos guiar. E o exercício é atraente e utilíssimo, uma vez que podemos ter uma enumeração de acontecimentos, lidos criticamente, o que nos permite compreender os protagonistas, os factos e as circunstâncias. Mas Salazar parece não ter dúvidas: “a linha tradicional da nossa política externa, coincidente com os verdadeiros interesses da pátria portuguesa, está em não nos envolvermos, podendo ser, nas desordens europeias, em manter a amizade peninsular e em desenvolver as possibilidades do nosso poderio atlântico”. O ano décimo da Revolução Nacional correspondeu a uma encruzilhada singular, entre a afirmação de um projecto autoritário, saído da Revolução militar de 28 de Maio de 1926, e a emergência do poder catedrático de Oliveira Salazar. Na obra, o autor deixa falar os acontecimentos, ora enaltecidos, ora silenciados, ora vilipendiados, segundo o método de um Estado paternalista e policial. E assim “o professor Oliveira Salazar, em protagonismo oficial e real, adrede mitificado, pôde impor-se definitivamente neste ano de 1936, confirmando o poder da sua Presidência do Conselho de Ministros, seleccionados, sucessivamente entre os possíveis de competência, por sua obediência de princípios e pessoas, com a ocupação, para além das Finanças, a priori estabilizadas, de mais duas pastas – da Guerra, dominando (com o capitão Santos Costa por fiel acólito) últimas possíveis oposições internas, que só então podiam contar, e dos Negócios Estrangeiros, para definir (como há muito desejava), num mundo agitado, a posição externa do País / regime – que em Armindo Monteiro perdera confiança”.


A «ERA DO ENGRANDECIMENTO»
O ano é definido, depois da “Era da Restauração”, como o do início da “Era do Engrandecimento”. É Salazar quem desfralda a bandeira mobilizadora, enquanto o mimetismo relativamente à tendência europeia dos totalitarismos se traduz na criação da Mocidade Portuguesa, como organização nacional e pré-militar, na sequência da Acção Escolar Vanguarda, e da Legião Portuguesa, organização patriótica de voluntários. Havia que mobilizar e formar uma plêiade de apoiantes da causa e do regime. Nesse sentido, é significativo o que acontece no campo da Educação. Carneiro Pacheco é a personagem-chave do novo governo, iniciado nos primeiros dias do ano – empenhado em lançar uma contra-revolução que pudesse apagar ou atenuar as marcas educativas da 1ª República. Se a reforma do ensino teve as primeiras acções com o ministro Cordeiro Ramos (1929), foi com Carneiro Pacheco que se operou uma autêntica reformulação ideológica. O “saber ler, escrever e contar” seria “suficiente para a maior parte dos portugueses”, pretendendo-se “evitar um estéril enciclopedismo racionalista, fatal para a saúde moral e física da criança”. Por isso, não bastaria falar em saber ler, escrever e contar, uma vez que o próprio Salazar afirmo que “saber ler é uma arma que tanto pode servir para o bem como para o mal e é para o mal que tende”. Os postos escolares substituiriam as escolas primárias e os regentes escolares (sobretudo mulheres) permitiriam um ensino mais barato e menos qualificado. Além do mais, os professores primários herdados do período republicano não eram os mais adequados à nova doutrinação – tendo, aliás, as Escolas do Magistério Primado sido extintas nesse mesmo ano. Por outro lado, o ensino obrigatório que a República fixara em 5 anos passava para apenas 3.


DUARTE PACHECO PREPARA REGRESSO
O ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco era arredado fugazmente das suas responsabilidades na remodelação de Janeiro e teria de esperar para regressar à ribalta pela porta da Câmara Municipal de Lisboa, em 1 de Janeiro de 1938, pouco depois, de novo, como titular das Obras Públicas. No entanto, em 1935, já deixara delineado o desenvolvimento de Lisboa para oriente, a partir da grande obra do Instituto Superior Técnico, cabendo ao urbanista francês Alfred Agache o estudo das novas perspectivas de desenvolvimento da cidade. O capítulo “Lisboa, 1936” dá-nos a expressão viva da autoridade de José-Augusto França como historiador de primeiríssima água, com vivacidade, espírito de síntese e lucidez crítica a toda a prova, capazes de ligar a compreensão das grandes decisões estratégicas, das polémicas sobre o futuro da cidade, da criatividade dos planeadores e dos artistas, ao pitoresco fait-divers dos crimes que perturbavam a aparente pacatez da cidade, do movimento dos almocreves, do comércio, das modas, das profissões liberais, do desporto (o Benfica passa a ser designado pelo encarnado, e não vermelho, pelo início da guerra espanhola, para impedir conotações políticas e o ciclista José Maria Nicolau é a grande referência do momento), da tauromaquia ou das festas, numa Lisboa dominada pela dupla burguesia, rica e pelintra, que encontramos retratada na obra humorística de Armando Ferreira, “Lisboa Sem Camisa”, ou nas imprescindíveis crónicas humorísticas desenhadas por Botelho nas páginas de “Sempre Fixe”. O ano de 1936, com dramas anunciados e a tendência para um auto-comprazimento do País formal e oficial, regista uma tensão evidente de contrários – Eduardo Malta ganha o prémio do Secretariado da Propaganda Nacional, Almada Negreiros expõe o “Duplo Retrato” e trabalha na moderna Igreja de N.S. de Fátima, enquanto António Pedro apresenta as suas obras “Sabat” e “Dança de Roda” e morre Joaquim de Vasconcelos, o pioneiro da história da arte portuguesa. Entretanto, João Gaspar Simões escreve “Uma História de Província”, Aquilino assina “A Aventura Maravilhosa de D. Sebastião”, António Sérgio publica o quinto tomo dos “Ensaios”, J. Osório de Oliveira é autor de “Romance de Garrett”, José Régio assina “Encruzilhadas de Deus”, Miguel Torga, “O Outro Livro de Job”, Adolfo Casais Monteiro “Sempre e Sem Fim”. Fernando Pessoa morrera em Novembro de 1935, e a revista “Presença” dedica um número especial ao escritor desaparecido, em Julho de 1936. Tudo se passa como se pudéssemos entrar numa máquina do tempo, accionando o piloto automático para viajarmos até ao ano de 1936, em Portugal. E depois percebemos qual a distância enorme a que nos encontramos. Bom Ano!

Guilherme d'Oliveira Martins

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