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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS


de 28 de Março a 3 de Abril 2011

 

Luís Salgado de Matos (LSM) tem estudado, de modo aprofundado, o tema do Estado de Ordens, e agora, ao apresentar «A Separação do Estado e da Igreja – Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicismo» (D. Quixote, 2011), analisa com grande cópia de informações inéditas ou pouco conhecidas, e segundo uma cuidada visão de conjunto, a “questão religiosa” no regime de 1910, tema crucial da história contemporânea, que serviu de importante lição para a República contemporânea nascida em 25 de Abril de 1974.

 

 

UMA OBRA PERTINENTE E FUNDAMENTAL
A obra é fundamental e permite compreender e esclarecer a história e uma parte importante dos preconceitos que se criaram a propósito da Primeira República. Começamos, assim, por perceber que católicos e partidários de Afonso Costa reescreveram, de algum modo, a história da separação, à luz dos interesses próprios. A liberdade de consciência, inatacável no plano teórico, foi aplicada tendo em consideração que os católicos eram cúmplices dos rebeldes monárquicos. Daí as expulsões e as proibições, que deram à República uma feição perseguidora e maquiavélica. E, se é verdade que houve «perseguição», segundo os critérios posteriores a 1945, o certo é que temos de lembrar que a monarquia constitucional depois de 1834, e antes o pombalismo, tinham prenunciado já as orientações de 1910. De facto, o regalismo monárquico e o anti-clericalismo oitocentista prepararam o ambiente que favoreceu o republicanismo. Ora a sociedade era muito mais complexa do que poderia parecer, não devendo esquecer-se o anti-clericalismo católico nem o nacionalismo, que levavam o cidadão comum a apoiar o Estado, independentemente do regime. Uma minoria republicana é que defendia a tese radical da perseguição, tendo a maioria alguns cuidados, o que justificava a proposta de pagamento de uma pensão aos párocos e a previsão de vencimentos para os missionários das colónias africanas e do Padroado do Oriente, para além da criação, na Grande Guerra, do corpo de capelães do Corpo Expedicionário. Contudo, há uma tensão evidente, com expressão social e política, sobretudo até 1918, patente no apoio implícito ou no silêncio da Igreja relativamente às incursões monárquicas. Simplificando, os republicanos julgavam que o povo ignaro era monárquico e por isso não poderia haver sufrágio universal, enquanto os bispos consideravam-no crente e defensor da Igreja. Sidónio Pais entendeu, porém, que os párocos não eram monárquicos e que os camponeses eram portugueses. Os bispos só tarde perceberam que os habitantes das cidades eram avessos ao clero e que as elites cultivavam uma atitude favorável à separação.

 

DEFINIR A RESPONSABILIDADE DO CULTO
Um tema fundamental para analisar a separação é o da definição de qual a pessoa jurídica responsável pelo culto perante o Estado. O modelo brasileiro assentava nas instituições canónicas, misericórdias e irmandades, o modelo francês apontava para a confiança atribuída às igrejas locais (cultuais Briand) e havia ainda as «cultuais» de ateus, quando os crentes não assumissem responsabilidades. A solução «à portuguesa» baseou-se nas três soluções sucessivas e simultâneas, deixando cair a lei Moura Pinto (1918) a terceira solução. Curiosíssimo é verificar que, na análise de LSM, quer os republicanos quer Pio X queriam, à partida, um regime de religião do Estado, tendo a «separação» efectiva sido feita com resistências de parte a parte. Os republicanos desejavam o regalismo e o Papa uma religião da nação, e o ponto de equilíbrio veio a ser encontrado na quase total separação, que significava a liberdade da Igreja. O autor afirma ainda que a lei da separação dividiu republicanos e católicos, originando um jogo triangular com os monárquicos. Entre os católicos, digladiavam-se os monárquicos abolicionistas da República e os centristas que aceitavam o «ralliement» (adesão) de Leão XIII; os republicanos separavam-se entre afonsistas e almeidistas e os monárquicos entre manuelistas e legitimistas (miguelistas). De facto, houve uma aproximação entre legitimistas e a República laica (de que é exemplo o pároco de Santa Isabel, Padre Santos Farinha), contra os monárquicos liberais regalistas, inimigos antigos. Daí resultaria a aceitação das irmandades cultuais. Do lado republicano, os carbonários desinteressaram-se do fenómeno católico e Afonso Costa teria usado a questão religiosa para fortalecer a sua posição política, unindo as hostes e limitando o poder dos laicistas, e não tanto para exterminar a religião. Costa sabia que o regime concordatário daria mais liberdade à Igreja do que ela tinha tido na monarquia, não podendo a República prescindir do velho beneplácito régio. Por outro lado, católicos ilustres, como Abúndio da Silva, entendiam que Afonso Costa poderia ser necessário.
 
A DEFESA DO «RALLIEMENT» POR BENTO XV
Quanto à Santa Sé, começou por condenar em absoluto a lei da separação, mas depois de 1918, com Bento XV, enterrou a questão religiosa, reconheceu a República, rompeu com o isolamento internacional, preveniu uma perseguição europeia e abriu caminho ao fortalecimento das missões ultramarinas. Bento XV e Pio XI, inteligentes e bem informados, com o embaixador português do Vaticano, Joaquim Pedro Martins, persistente e lutador no sentido de contrariar os excessos laicistas e as reticências da cúria, contribuíram decisivamente para ultrapassar o conflito. E a surpresa que a investigação revela tem a ver com D. Manuel II e a sua táctica contra o papado. Estamos perante a subtil arte da ocultação – e lembram-se os casos do apoio aos socialistas de Aquiles Monteverde contra os republicanos em vésperas do 5 de Outubro, do financiamento das incursões monárquica (1911 e 1912), da autorização da revolta de 1919 ou da oposição ao Centro Católico. O certo é que o exercício de poderes do rei constrangeu o papado. Por seu turno, a política dos bispos falhou, com a recusa das cultuais, com a exclusão de um pólo católico republicano e com o relativo fracasso do Centro Católico. O capital de queixa acumulou-se, mas com distanciamento do papado. A divisão do episcopado e a desorganização dos católicos deu, entretanto, trunfos aos inimigos da Igreja. O Cardeal Patriarca Mendes Belo era manuelista e não estava em consonância com o Papa, o que enfraqueceu a posição da Igreja. Como afirmou o actual Bispo do Porto, o facto de a Igreja portuguesa não se ter desvinculado da monarquia liberal porque não pôde ou não soube seguir as orientações europeias levou-a “a ser demasiado estática no seu centro e pouco estimulante para as periferias internas e externas”. A separação induziu, assim, uma Igreja mais clerical, pouco estruturada, mas, no dizer de LSM, “devota e religiosa”. Em suma, a questão religiosa foi central na vida e morte da Primeira República, porém os extremos ganharam. Como afirmou António Maria da Silva: “a intransigência de uns gerou a intransigência de outros e os reaccionários de vários matizes acudiram em pé de guerra”.     

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

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A VIDA DOS LIVROS

 


de 21 a 27 de Março de 2011

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“O Tesouro Escondido – Para uma Arte de Procura Interior” (Paulinas, 2011) de José Tolentino Mendonça é obra de um poeta consagrado sobre temas de espiritualidade contemporânea, escritos à luz da conhecida parábola de S. Mateus (13, 44-46), segundo a qual o Reino do Céu é semelhante a um tesouro escondido num campo. Um homem encontra-o e volta a escondê-lo. Cheio de júbilo, vende tudo e compra o campo… É bom falar de um Poeta no dia da Poesia, mesmo que aqui tenha escrito em prosa.

 

 

GUARDAR UM TESOURO E CUIDAR DE UM SEGREDO
Esse campo já referido é comparável ao exemplo do negociante em busca de boas pérolas. Uma vez encontrando uma pérola de grande valor, o homem vende tudo o que tem e compra a pérola. A metáfora é atraente e tem sido usada para descrever situações muito diversas – ligadas à procura de um bem, de um valor ou de uma riqueza. Jacques Delors, quando elaborou o relatório sobre a Educação para o século XXI, na UNESCO, deu como título a esse importante documento “Um Tesouro Escondido” (“Un Trésor est caché dedans”), para significar como a aprendizagem é uma riqueza fundamental. E não é por acaso que aqui falo de aprendizagem porque essa é a verdadeira riqueza, para além de todos os programas e discursos abstractos sobre o tema. E, na linha dessa imagem do tesouro, o escritor cita S. Kierkegaard, quando este afirmava e recomendava “a deliciosa ocupação de deixar amadurecer um segredo”. As referências a um tesouro e um segredo significam, aliás, a procura do que verdadeiramente pode valer. E assim os actos de guardar ou de esconder revelam-se como enriquecedores – já que somos capazes de reconhecer valor a algo que nos diz respeito.

 

TENTAR COMPREENDERMO-NOS
Procurar perceber quem somos, compreendendo-nos, exige capacidade de dar e receber, entendimento que leva a tirar consequências do largo caminho para a condição humana, entre a solidão e a companhia, entre o silêncio e o barulho, entre ser e não ser (que Agostinho da Silva dizia contrapor-se, na nossa cultura, à alternativa de Hamlet, ser ou não ser). E se falo do dar e do receber, recordo que a arte de educar e de aprender exige sempre a ligação biunívoca do mestre e do aluno. José Tolentino Mendonça trata no livro de diversos temas, bem ilustrados nos respectivos títulos – a lâmpada de Deus não se apagou; acende a tua candeia, os velhos deveriam ser como os exploradores, Deus faz-me sorrir, a nossa vida é uma paisagem onde Deus se vê, mostra-nos o Pai reconciliar-se com a beleza, rezar até a impossibilidade de rezar, a pergunta do meio caminho, Emaús laboratório da fé pascal, mais do que viajantes, peregrinos, e o «Magnificat» é talvez o mais belo poema... Através deste roteiro é a vida interior que é procurada com argumentos persistentes e acessíveis.

O tema da beleza e do bem tem uma especial atenção. Invoca-se a afirmação ou o verdadeiro repto de Bento XVI no Centro Cultural de Belém: «Fazei coisas belas, mas sobretudo fazei das vossas vidas lugares de beleza». O tema é tudo menos fácil, uma vez que está longe de ser acessível, para além de considerações simplificadas. Não é paradoxal a relação entre Jesus Cristo e a beleza? No entanto, apesar dessa contradição conduz-nos à compreensão de que «beleza é verdade e verdade é beleza». No entanto, temos de entender que «em Cristo sofredor também se aprende que a beleza da verdade acolhe igualmente a ofensa, a dor e mesmo o sombrio mistério da morte, e que ela só pode ser encontrada quando se aceita o sofrimento, não quando se procura ignorá-lo» (como diz o Papa).

 

OS VALORES PERENES
O justo e o verdadeiro constituem os valores perenes que não podemos deixar de ter sempre presentes. Daí a necessidade de uma reconciliação com a Beleza do cristão, «tão decisiva na maturidade de um percurso espiritual». E Platão explicou-nos qual a força indiscutível do impacto da beleza - «um «fluxo», que «aquece e rega a essência». E ao presenciarmos a luta de Jacob com o Anjo, percebemos que se trata de mais do que um combate físico, sendo uma procura da verdade pela valorização do confronto (o «agon»). «O Belo de Deus (diz o autor) convoca o homem para o seu destino final, revela-lhe a real grandeza da verdade». O que está em causa, no fundo, é a compreensão da hierarquia de valores – uma vez que é o vazio dessa distinção que levava Herman Broch a acusar a sociedade presente de indiferença e de desatenção aos valores e aos ideais. O desenvolvimento humano e histórico foi, contudo, pela experiência cristã e merece uma especial atenção que nos remete para algumas assombrosas expressões de beleza, como, na arquitectura religiosa, os exemplos de Miguel Ângelo e de Gaudi, ou as impressões incandescentes transcritas pelos místicos – desde Hildegarda de Bingen a S. João da Cruz, passando pelas expressões iconográficas, de que o sonho de Santa Teresa, de Bernini, é um exemplo maior. E vem à memória o verso de Dante, num dos pórticos da “Divina Comédia” – “A meio caminho desta vida / me vi perdido numa selva escura” - «Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / ché la diritta via era smarrita». E José Tolentino Mendonça, emblematicamente, afirma que «a ordem do sagrado reivindica para a pergunta dói meio caminho o horizonte e a experiência do amor». E o Mestre Ekhart deixa-nos a invectiva sublime: «É preciso que haja silêncio, ali onde essa presença deve ser percebida». Experiência do amor, silêncio, procura e descoberta, segredo, paradoxo, incindibilidade entre razão e fé, dignidade das pessoas, universalismo do respeito – eis a multiplicidade de temas e de apelos que o escritor nos traz com este “Tesouro Escondido”. E, surpreendentemente, sobretudo talvez para os mais distraídos, para aqueles que não viram que a alegria, feita de humor e ironia, mas também de inteligência arguta e de sentimento, leva à essência da vida, conduzindo-nos à riqueza de “O Riso de Deus”, título de uma obra de António Alçada Baptista, cujo tema muito ajuda à alegria genuína que permite chegar à transcendência com genuinidade e amor (agapé). Talvez por isso no capítulo 21 do Livro do Génesis, quando Sara dá à luz o seu filho, que já não esperava poder ver nascido, Sara dá ao bebé o nome de Isaac, que significa literalmente: “Deus sorriu”.

 

RECORDAR SIMONE WEIL
Note-se que essa encruzilhada entre a liberdade e o amor, entre a sensibilidade e a alegria leva Simone Weil (em “Espera de Deus”, publicada na colecção Teofanias) a referir-se à oração do “Pai-Nosso” em grego deste modo: «A doçura infinita deste texto tomou-me então, de tal forma, que durante alguns dias não consegui impedir-me de o recitar continuamente. Uma semana depois, comecei a vindima. Recitava o Pater em grego todos os dias, antes do trabalho, e repeti-o não poucas vezes na vinha. Desde então, impus-me como única prática recitá-lo uma vez cada manhã, com uma atenção absoluta. Se durante a recitação a minha atenção se desvia ou deixa adormecer, recomeço até que tenha obtido, por uma vez, uma atenção absolutamente pura». E continua a longa citação que este “Tesouro” transcreve: “Os ruídos, se os há, não me chegam senão depois de atravessarem este silêncio. Durante esta recitação ou noutros momentos Cristo está presente em pessoa, mas a sua presença é infinitamente mais real, mais lancinante, mais clara e mais plena de amor do que a daquela primeira vez em que tomou”. Nota-se, com nitidez, que é a procura de um tesouro escondido que aqui está também presente. Chegamos, assim, ao elemento crucial de uma experiência de amor e alegria, fora das considerações passageiras ou superficiais. Este pequeno livro é, assim, fonte de muitas surpresas positivas e acolhedoras, sábias e pertinentes. O irónico dinamarquês insiste, e bem, que há uma “deliciosa ocupação de deixar amadurecer um segredo”   

  

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

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A VIDA DOS LIVROS


de 14 a 20 de Março de 2011

 

José Maria Eça de Queirós (1845-1900) mantém-se presente nos tempos que correm. A palavra presente substitui actual, para que não haja simplificações abusivas. Não se trata, porém, de dizer que tudo se manteve inalterável (com Dâmaso Salcete ou Tomás de Alencar ao virar da esquina) e que a actualidade se mantém tal e qual. Houve mudanças significativas no país, mas há elementos duráveis na análise do autor de “Os Maias” (1888) ou de “O Conde de Abranhos” (1925). Eça desenha uma sociedade em transição, assente nos empregos públicos e nos favores do Estado. É o naturalismo em acção, aqui ou ali polvilhado por um humor fino que procura representar uma sociedade distante e periférica, relativamente aos grandes centros. E quando hoje assistimos à crise da dívida pública soberana, vêm à baila as conversas do banqueiro Cohen relativamente ao dinheiro e aos seus enredos…  



DESENTRANHAR O PORTUGAL QUE ESPERA…
Eduardo Lourenço afirmou que “não é susceptível de discussão o amor (e o fervor) com que a Geração de 70 tentou desentranhar do Portugal quotidiano, mesquinho e decepcionante, um outro, sob ele soterrado, à espera de irromper à luz do sol” (“Labirinto da Saudade, ed. 2000, p. 93). Ora, ao lermos Eça de Queirós, impõe-se a pergunta – o que se mantém actual na sua obra? E que país existe por «desentranhar», ao abrigo desse «criticismo patriótico», em que Eduardo Lourenço vem insistindo, como voz clamando no deserto. Não podemos cair na conclusão fácil de que o país é o mesmo ou radicalmente diferente. Qualquer simplificação será sempre caricatural. De facto, Portugal é diferente hoje do que era no final do século XIX. Mas, quando lemos os principais intelectuais e críticos desse tempo assaltam-nos as semelhanças, que têm de ser vistas com as cautelosas distâncias. A chamada Geração de 1870 obriga, porém, a uma especial correcção crítica: de facto, estamos perante analistas de raríssimo talento, com uma inteligência de indiscutível evidência, que souberam colocar-se no lugar da intelectualidade europeia mais avançada e lúcida do seu tempo. A perspectiva crítica deu-lhes uma distância que hoje permite compreendermos melhor o que disseram, concedendo essa reserva uma curiosíssima garantia de actualidade. Se virmos bem, Antero, Oliveira Martins e Eça de Queirós não são portugueses comuns do seu tempo. Viram mais longe e largo, e é isso mesmo que lhes permitiu alcançar um especial sentido de pertinência presente, que nos leva à ilusão de julgar que o país é o mesmo, sem o ser exactamente. No entanto, temos a nítida sensação de encontrar nesses argutos textos algo de familiar ou próximo. E isso não acontece por acaso. De facto, há diferenças e coincidências na sociedade. O país rural não existe já, a distância enorme entre a cidade e as serras reduziu-se, o atraso social endémico mudou de natureza, os dualismos profundos, se se mantêm, tornaram-se diferentes, e as desigualdades que persistem reportam-se a termos de comparação que se transformaram muito. Ainda por cima, não podemos esquecer que as referências queirosianas se enraizaram bastante no mundo português letrado e culto (ou por leitura ou por reminiscência). É difícil de encontrar o Conselheiro Acácio, mas o seu espírito e os seus óculos fumados persistem onde menos se espera. O mesmo se diga de Eusebiozinho, de Palma Cavalão, de Gouvarinho, de Dâmaso ou de Alencar – mas sobretudo de João da Ega, de Carlos da Maia, de Zé Fernandes, de Jacinto, de Gonçalo Mendes Ramires ou de Fradique e do inefável Pacheco. Os ecos dos quadros queirosianos chegam-nos ainda hoje como as análises cortantes das “Histórias” de Oliveira Martins, sendo “Os Maias” a genial tradução romanesca do “Portugal Contemporâneo”. E diga-se que, se alguns criticam a dispersão de personagens e de temas na saga de Eça, a verdade é que essa é uma riqueza da obra que magistralmente contribuiu para o repositório de personagens representado caricaturalmente por João Abel Manta.

 

A MATÉRIA-PRIMA DE EÇA
Apesar das distâncias, o certo é que há algo na matéria-prima utilizada por Eça que permanece e que mantém actualidade: a ciclotimia portuguesa, o peso do Estado omnipresente com o seu funcionalismo (o “comunismo burocrático”) e a dependência do exterior. Quanto à ciclotimia, eis-nos a oscilar entre a invocação das glórias passadas com um orgulho histórico, tantas vezes desajustado, e a consideração da mediocridade contemporânea (que não é pior nem melhor que a de muitos dos nossos vizinhos, mas que se torna mais evidente quando se insere na tal oscilação entre a glória e a decadência). A verdade é que essa alternância entre nos considerarmos os melhores e os piores do mundo agrava as comparações e as ilusões – o que leva à ambiguidade essencial de “A Ilustre Casa de Ramires” – ainda tão incompreendido… Já quanto ao peso do Estado, devemos referir que o nosso centralismo ancestral resulta da precedência do Estado relativamente à nação, com a inevitável concentração de poderes e o inexorável formalismo destituído de responsabilidade prática. É essa rígida centralização de poderes do Estado que leva à dependência relativamente à Arcada e S. Bento, que tão nitidamente se encontra na análise de Eça, desde Artur Curvelo até ao Conde de Abranhos – e que se prolonga até aos nossos dias no nosso Estado. Essa lógica de dependência, com sequente dificuldade de mobilização dos cidadãos e dos poderes locais (para além do caciquismo) liga-se a outra dependência que a vida económica (sobretudo num tempo de globalização) revela e que tem a ver com as vicissitudes do endividamento. Se recordarmos o jantar do Hotel Central em «Os Maias», depressa compreenderemos que aquilo que preocupa aqueles convivas é, a um tempo, a evolução da mentalidade literária e das escolas de pensamento, tema muito sentido pelo próprio autor (representado, de algum modo, por um alter ego, «sui generis» e complexo, que começa em João da Ega, mas que não existe só, uma vez está vive em ligação com Carlos da Maia, como se se tratasse de um tandem), bem como as repercussões da incerteza financeira e económica, em razão da significativa dependência de Portugal relativamente à economia europeia, em especial através do crédito, já que a história portuguesa oitocentista se confundiu amiúde com a dívida pública e as crises bancárias.

 

O JANTAR DO HOTEL CENTRAL
«O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar ‘absolutamente’. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. Lembramo-nos bem da passagem. E depois: « – A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela – continuava Cohen – que seria mais fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país»… Isto, enquanto Ega e, surpreendentemente, Alencar, sonhavam com uma revolução. A história económica portuguesa do século XIX foi longamente dominada pelas crises bancárias (1827, 1846, 1876 e 1891) e pela evolução da dívida pública. As guerras civis contribuíram para essa instabilidade até 1851. Já em 1876 tudo se concentrou na bolha especulativa gerada pela proliferação de entidades bancárias; enquanto em 1891 foi a bancarrota argentina que quebrou a casa Baring de Londres, ligando-se à redução da remessa dos emigrantes do Brasil por causa do fim da escravatura e da implantação da República. E a dívida pública explodiu. Assim, a profecia de Cohen cumpriu-se, houve o convénio dos credores externos de 1902 (com o empréstimo de 99 anos, ao juro de 3 por cento) e um longo purgatório português nos mercados financeiros. Entende-se que a pergunta sobre a actualidade de Eça obriga não a ressuscitar Abranhos ou Dâmaso, mas a desentranhá-los… O que reclama, antes de tudo, exigência crítica.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

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A VIDA DOS LIVROS


de 7 a 13 de Março de 2011

 

Fialho de Almeida morreu há cem anos, a 4 de Março de 1911, em Cuba. Tinha nascido em Vila de Frades a 7 de Maio de 1857 e a sua vida foi atribulada, sendo marcada por um afinado sentido crítico e por um talento literário muito especial, podendo dizer-se que foi um dos grandes renovadores da literatura e língua na segunda metade do século XIX. A propósito da efeméride referimos a publicação da obra «“Kodakização” e Despolarização do Real – Para uma poética do grotesco na obra de Fialho de Almeida» de Isabel Cristina Pinto Mateus (Caminho, 2008), cuja leitura imprescindível deve ser complementada por “O Essencial sobre Fialho de Almeida” de António Cândido Franco (INCM, 2002). A descoberta de Fialho de Almeida é uma tarefa que permite o encontro, algo inesperado, de alguém que está muito para além das simplificações, muito difundidas, sobre a sua vida, o seu talento e a sua criação literária. 

 

Fialho por Vasco.

 

UM FALSO MALDITO
Na mensagem que enviou para a sessão comemorativa dos cem anos da morte de Fialho (em Vila de Frades), Eduardo Lourenço considerou que estamos perante um falso maldito da literatura portuguesa, uma vez que alguns episódios que são referidos como motivo de reserva ou de distância relativamente ao autor de “Os Gatos” (como a acrimónia relativamente a Eça de Queirós e a crítica do republicanismo) não permitem que deixemos de dar a devida atenção ao dotadíssimo escritor, que soube apontar no sentido de uma profunda renovação de caminhos no domínio das ideias e das tendências literárias e artísticas. Com efeito, a crítica acerba ao naturalismo e ao impressionismo, mas sobretudo à sua degenerescência, tem em Fialho uma dupla face do maior interesse: por um lado, nos diversos campos em que exerceu a crítica (literatura, arte, teatro, música) assumiu sempre uma atitude coerente de defesa de um cânone renovador baseado na emoção e na fantasia; por outro, como escritor procurou levar à prática nas suas obras as orientações que correspondiam às suas apreciações críticas. É verdade que os seus textos são muito diversificados, e que nem sempre têm uma qualidade uniforme, no entanto decantanda a prolífera produção descobrimos que há um caminho determinado e profundamente renovador que coloca Fialho de Almeida num lugar de excepção no expressionismo da literatura portuguesa. E é com um sentimento desperto e intenso que lemos as suas prosas mais marcantes.


VIDA ATRIBULADA

Formado em Medicina em 1885, depois de ter sido obrigado, por vicissitudes económicas, a viver a vida ingrata de ajudante de farmácia, em condições especialmente duras, interrompidos os estudos, Fialho de Almeida dedicou-se ao jornalismo e à literatura – tendo-se tornado notado com a publicação de “Os Gatos”, de 1889 na 1894. Com um estilo muito próprio, o escritor vai usar um método diferente do de Ramalho Ortigão. “Os Gatos” são azedos, sarcásticos, desapiedados, severos – e o entusiasmo da crítica quase cega o seu autor na verve demolidora. Diz Fialho: «Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes e terrível com agressores e adversários.» [...] Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato – isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque e o animal de humor e fantasia – porque não escolhermos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro». E depressa se percebe que esse método faz parte da intransigência que Fialho cultivava, contra as cedências fáceis e a inércia estilística. A boémia marca a vida do crítico, que se manifesta não apenas como cronista, mas também como um contista de talento, lembremo-nos de “A Ruiva”, “O Sineiro de Santa Ágata”, “O violinista Sérgio num café da Mouraria” ou “A Taça do Rei de Tule”… Raul Brandão compreendeu como poucos que a acutilância e a aparente impiedade de Fialho não poderiam ser vistas de modo simplista: “No fundo, bem no fundo, quando irrompia numa frase cruel, não era aos outros que dilacerava, era a si próprio que se dilacerava, e tão sério que todos o víamos sangrar”. O seu sentido crítico não era, assim, exercido de modo lúdico, mas de forma dramática.

 
CRÍTICO SEVERO DO NATURALISMO
“Na arte só têm importância os que criam almas, e não os que reproduzem os costumes” – assim se exprimiu o escritor alentejano a Carlos Lima Mayer. Ora, o que Fialho verberou no naturalismo foi exactamente a incapacidade de criar personagens com expressão humana. Depois de se ter deixado entusiasmar pelo Eça de “O Crime do Padre Amaro” desconsidera “Os Maias”, por ausência de capacidade criadora para caracterizar os protagonistas e os intervenientes. Estávamos diante de um exemplo do naturalismo que deveria ser objecto de severa crítica e no entanto, o maior argumento que usará contra Eça de Queirós é o facto de a sua obra ser “desnacionalizadora”. Sabemos, porém, que, depois de uma leitura lenta e ponderada de “A Ilustre Casa de Ramires”, viria Fialho a homenagear Eça pelo sentido positivo dessa obra referencial. Eça contrapõe-se a Camilo, na ideia do escritor de “O País das Uvas”. Enquanto o segundo se aproximaria do entendimento de que a literatura não deveria perder fantasia e imaginação, o primeiro teria cedido à tentação da repetição e da uniformidade. Assim, a crítica do naturalismo assenta nestes pressupostos: (a) denegação da imaginação e da fantasia; (b) ausência de emoção; e (c) impasse e repetição, o que nos conduz ao método experimental. É nesta linha que o escritor de Vila de Frades fala de um “estilo kodakizado”, usando a marca de uma célebre máquina fotográfica, para criticar o racionalismo científico responsável pelo desaparecimento do sonho e da poesia.


AS ARTES E O CRÍTICO

Imaginação, fantasia e capacidade autenticamente inovadora, eis o que o crítico reclama para uma nova geração de escritores e artistas. José Régio perguntará? “Não musicou Fialho em longas frases a princípio tacteantes, depois cada vez mais perfeitas, mais seguras e tão saborosas do que arcaísmos e seiva popular, como de intervenção e fantasia pessoal?”. Fialho de Almeida está numa encruzilhada, curiosa e fecunda: admira Cesário Verde e é reconhecido por Fernando Pessoa. Afinal, o paradigma de um crítico de arte obriga a entender que há mais repetidores do que críticos. Fialho é um criador, que não se resigna à mediocridade. Olha em volta e vê que prevalece ou a repetição, a inércia ou o elogio mútuo. Se critica o formalismo de Silva Porto, enaltece Marques de Oliveira. Sobre este último diz que “vê seu” – pondo a tónica na sua originalidade – enquanto Silva Porto “vê certo”. Para Fialho de Almeida, o que interessaria era a emoção ligada ao artista concreto (ver-se, ver seu), que deveria demarcar-se da ausência de imaginação, que estaria a caracterizar a fase artística actual (o ver certo). Mais do que uma técnica, haveria que compreender o sofrimento e o êxtase, a sugestão e a criatividade. Isabel Cristina Pinto Mateus desenvolve, assim, a sua reflexão a partir do poeta-pintor que aponta para a “despolarização do real”. E nesse ponto o crítico e o artista Fialho de Almeida encontram-se. Daí a importância da deformação, do grotesco, da máscara e de um certo barroquismo que pretende dar expressão à criação. Leiam-se, por isso, textos como “Uma manhã no rio” ou “Manhã no Tejo”, aí encontramos uma imersão total do escritor, de um modo panteísta, na realidade que é descrita e apresentada. “Tudo crepita, árvores, terra, ferros, rochas, animais; faísca tudo, e a natureza toma um tom de martírio, perante o qual, atónito o próprio homem esquece as suas dores” (como está escrito nos “Ceifeiros”).

  

Guilherme d'Oliveira Martins

 

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