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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 25 de Abril a 1 de Maio 2011

 

 

Na edição de 2000 de “O Labirinto da Saudade” (Gradiva), Eduardo Lourenço afirma: «Somos, enfim, quem sempre quisémos ser. E todavia, não estando já na África, nem na Europa, onde nunca seremos o que sonhámos, emigrámos todos, colectivamente, para Timor. É lá que brilha, segundo a nova ideologia nacional veiculada noite e dia pela nossa televisão, o último raio do império que durante séculos nos deu a ilusão de estarmos no centro do mundo. E, se calhar, é verdade». Mas hoje estamos confrontados ainda com outras interrogações.

 

 

PERDER O ESSENCIAL EUROPEU?
Pode estar-se a perder o essencial europeu na tentação de responder à crise por falta de consciência de que sem cultura e sem justiça poderemos estar a caminho do desastre. De que cultura falo? Da capacidade criadora, da ligação entre conhecimento e compreensão e entre experiência, exemplo e aprendizagem. A que justiça me refiro? À exigência de partilhar recursos e responsabilidades, de prevenir a exclusão e à necessidade de combater o imediatismo cego dos ganhos fáceis. Eduardo Lourenço, no prefácio à edição de 2000 de “O Labirinto da Saudade”, afirmou que «nos seus longos oito séculos de existência – fórmula, no fundo, pouco pensável, pois não tem em conta a permanente reciclagem de si mesma que é a vida de qualquer povo – Portugal nunca sofreu metamorfose comparável à dos últimos vinte anos. Não foi apenas uma mudança exterior, uma dilatação comparável à do tempo em que se tornou país das Descobertas, mas uma alteração ontológica, se isto se aplica a um povo. Estamos tão dentro dela que a não podemos pensar. Que mais não fosse, caracteriza-a o facto de tal metamorfose não ser obra sua, ou eminentemente sua, como o foi noutras épocas. Trata-se de um fenómeno mais vasto, o fim da civilização europeia sob paradigma cristão ou iluminista, se é lícito associar estas duas matrizes da milenária e agora defunta Europa». Para Eduardo Lourenço, Portugal sofre, afinal, dos efeitos de uma profunda alteração no mundo, e a crise financeira a que assistimos é um sintoma evidente, até nas suas consequências dessa mudança. O fim da história, já profetizado por Hegel, não se verificou nem em 1805 nem depois de 1989, o que aconteceu agora foi a entrada de uma lógica de resultados financeiros fictícios pelo campo da economia, que só pode afirmar-se, na sua essência, se criar valor.

 


UM TEMPO DE JOGO DE ILUSÕES
Afinal, estamos perante o primado da especulação, o jogo das ilusões e das aparências, a incapacidade para encontrar instrumentos racionais e justos de resposta às dificuldades. E, no entanto, mais do que receitas infalíveis, que não há, do que precisamos é de ideias simples, a defender e a aplicar com persistência: verdade, transparência, disciplina, rigor, responsabilidade, sobriedade, modéstia, poupança, boas contas – e aquela noção muito simples, da mais funda sabedoria popular, segundo a qual importa não gastar mais do que podemos nem menos do que devemos. A recente presença em Portugal de Amartya Sen, na Universidade de Coimbra, obriga, aliás, a lembrarmos os seus ensinamentos, sobre as relações entre desenvolvimento e liberdade, sobre a relevância da diversidade das culturas e sobre a importância decisiva da noção prática de justiça. O certo é que os episódios que estamos a viver, para lá dos pormenores conjunturais que a história depressa fará desvanecer, demonstram que a União Europeia fraqueja agora no plano económico, por óbvia falta de solidez nos valores fundamentais, que o mesmo é dizer na definição dos interesses vitais comuns e de uma cultura comum.

 


EUROPA DESENCANTADA E FRAGMENTADA?
Jacques Delors insiste, e não tem sido ouvido, em que a União Europa só poderá persistir, ligando estabilidade e desenvolvimento humano, com um projecto de segurança e de paz (e como poderá sê-lo quando os egoísmos nacionais estão em primeiro lugar?), de desenvolvimento sustentável (e como poderá sê-lo se a fragmentação e o protecionismo prevalecem, em vez da coesão e dos interesses comuns?) e de diversidade cultural (e como poderemos continuar a esquecer os valores culturais?). É a coesão económica, social e territorial que falha, por ausência de uma vontade comum de salvar o que é de todos, isto é, a credibilidade de um projecto que se se materializa no Euro, mas que é muito mais do que meramente monetário. Num texto muito importante, pelo rigor da análise e por ligar os fundamentos e os instrumentos, sobre o episódio dos resgates e das dívidas soberanas, Viriato Soromenho Marques e Sérgio Gonçalves do Cabo afirmaram o seguinte: «É isso que se joga no desfecho da crise das dívidas soberanas: aprofundar o nosso destino comum, aperfeiçoando a integração e legitimidade democráticas; ou escolher o recuo às instituições de um nacionalismo serôdio, que será o prelúdio do regresso às fronteiras e às trincheiras. Nada está ainda perdido, mas o abismo está à nossa frente. Teremos, como europeus, coragem e lucidez para dar os passos humildes de um federalismo de legítima defesa, os únicos que nos poderão libertar da catástrofe?» (DN, 10.4.2011). Afinal, parece que há quem pense que uma união monetária pode sobreviver sem fundamentos culturais e sem desígnios de justiça. Não pode. Se se confundir desenvolvimento sustentável com programas de ajustamento fragmentários e se alimentarmos uma lógica de cada um por si, sem coesão e sem partilha de responsabilidades, apenas poderemos esperar a desintegração futura. Dividir a Europa entre credores e devedores e impor, sem mais aos segundos, lógicas recessivas, significa condenar a União ao seu definhamento, com perda de todos. Disciplina, rigor e confiança, sim; mas fragmentação, exclusão e formalismo, não.

 

TEMPO DE IDENTIDADES VIRULENTAS
No mesmo texto, com que iniciámos, ainda Eduardo Lourenço, sobre a Europa (em que, no fundo, acredita como tábua de salvação, mas não como barca eficaz no funcionamento) afirma: «Deixámos de ser, como durante séculos, uma pluralidade de nações ou povos, potencialmente ou imaginariamente senhores dos seus destinos, embora a ilusão de o ser seja mais forte do que o desmentido permanente que a força das coisas lhes inflige. Sem surpresa, esta avassaladora dissolução das entidades clássicas a que chamávamos nações compensa-se com a reivindicação de micro-identidades  virulentas ou superidentidades simbólicas de que o País Basco, a Irlanda, a Flandres, os novos estados balcânicos, a Catalunha, a Lombardia são exemplos. E ninguém sabe se são apenas vestígios de arcaísmo tribal de nova espécie, se anúncio de um mundo ao mesmo tempo globalizante e intimamente fragmentado». O ensaísta tem razão. De facto, surgem no horizonte realidades que se arriscam a agravar desigualdades e a gerar exclusões. E há falta de capacidade de orientação, capaz de definir o que são interesses e valores comuns, para além da leitura imediatista dos acontecimentos ou do mero domínio da opinião. A História política ensina-nos a necessidade de ser capaz de ver para além do próximo obstáculo, os governos sábios são os que sabem antecipar, prevenindo e agindo no tempo próprio. Como se sabe, no caso português, José Gil fala, a propósito do “medo de existir”, na falta de debate público e na não-inscrição, isto é, no ficar pela superfície das coisas, sem ir ao fundo: “Os portugueses não sabem falar uns com os outros, nem dialogar, nem debater, nem conversar. Duas razões concorrem para que tal aconteça: o movimento saltitante com que passam de um assunto a outro e a incapacidade de ouvir”. Contudo, em Portugal e na Europa é tempo de ouvir e de prever. Quem o lembra? 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS


de 18 a 24 de Abril 2011

 

Michael Walzer (1935) é um dos mais prestigiados filósofos contemporâneos, professor do Institute for Advanced Studies de Princeton, tendo escrito «On Toleration» (Yale University Press, 1997; tradução francesa «Traité Sur La Tolérance», Gallimard, 1998). Num mundo dominado pelas incertezas e por egoísmos de vária ordem, é fundamental considerar o tema da tolerância como determinante na construção e consolidação de uma sociedade livre. 

TOLERÂNCIA E OS SEUS LIMITES
Falar de tolerância é referir os seus limites. O tema é bastante vasto, envolvendo quer a relação interpessoal, quer a organização social e política. Walzer fala, por isso, de «tolérance», como estado de espírito e atitude, e de «toleration», como exercício e prática. Referirei essencialmente o segundo aspecto, que nos conduz à relação entre coesão e confiança, elementos fundamentais para o funcionamento da sociedade política e do Estado de direito. A tolerância e o respeito mútuo, enquanto meios de salvaguarda do pluralismo e da diversidade, bem como da liberdade de consciência, constituem factores fundamentais para a permanência da sociedade aberta. A UNESCO quando propôs a concretização do Ano das Nações Unidas para a Tolerância (1995) fê-lo enfatizando a noção positiva de respeito mútuo e a força do pluralismo e de um cosmopolitismo universalista. Se recordarmos que o Estado de direito assenta no primado da lei («rule of law», lei geral e abstracta para todos e a igualdade de direitos e perante o Direito), na legitimidade da origem e do exercício e na consideração do valor ético da justiça, perceberemos que os diversos protagonistas da sociedade política beneficiam de instrumentos que asseguram o respeito mútuo das diferentes convicções ou opções e o equilíbrio entre poderes («checks and balances») que permitem assegurar que a vontade e a participação de todos seja relevante nas escolhas políticas e sociais. As diferentes identidades devem, assim, completar-se e interagir, em lugar de se anularem ou de se excluírem mutuamente, o que poria em causa a coesão e a confiança. O modelo político do cadinho de várias influências ou «melting-pot» deve ser privilegiado – e, por isso, Walzer confronta o modelo do pluralismo democrático com o dos grupos fechados («ghettos»). O «melting-pot» constitui a regra nos Estados Unidos da América, com uma única excepção no Estado de Utah, onde os «mórmons» se tornaram maioritários (enquanto nos outros Estados a lógica é a da diversidade). Há outros casos de identidades fortes que prevalecem, resistindo ao ambiente que as cerca, como o Quebeque (Canadá), o Kurdistão e a Eslovénia. Mas Walzer afirma não haver casos como esses no cadinho americano.

A FORÇA DA DEMOCRACIA E DA LIBERDADE
Para assegurar o respeito pelas diferenças, a democracia e a liberdade fixam os limites para os diversos poderes e identidades, e determinam regras fundamentais que asseguram o funcionamento do pluralismo. A separação entre Estado e Igrejas ou entre Estado e partidos, por exemplo, garante a protecção contra o risco de intolerância. Significa, assim, confinar essas entidades à sociedade civil – livres de pregar, de escrever e de mobilizar, sendo, porém, reduzidas a uma existência parcial. O autor lembra, aliás, os cuidados dos dirigentes da comunidade judaica norte-americana nos anos trinta e quarenta, quando havia demasiados dos seus membros em posições proeminentes na política democrática do «New Deal», nos sindicatos e nos meios intelectuais - «Não façam barulho… Não chamem a atenção. (…) Nada digam que seja provocador». Era assim que transpunham para os dias de hoje a profecia de Jeremias dirigida aos judeus exilados na Babilónia, há mais de dois mil anos: «Trabalhai enfim para a prosperidade da cidade para onde vos releguei» (Jer. 29,7). Hoje tudo mudou, aos receios antigos contrapõe-se a expressão de muitas vozes. Dá-se voz a todos e as diferenças tornaram-se audíveis, mas o resultado não é uma harmonia, como na imagem de uma sinfonia, prevalece, antes, o que o filósofo designa como uma «cacofonia». À coesão contrapõe-se a fragmentação. Elias Canetti conta no seu célebre livro «Massa e Poder» um terrível episódio passado em Viena, em que ele ainda criança ia sendo alvo da ira de uma multidão subitamente enraivecida apenas pelo facto de ter falado inglês num jardim, sendo essa a língua hedionda de um inimigo. Salvou-o a determinação, a coragem e a rispidez da mãe – que afastou os exaltados, invectivando-os em língua alemã. Walzer, ao falar de tolerância, não se limita a referir a lógica individualista e o mero reconhecimento das liberdades de cada um, invoca, sim, a ideia de «reconhecimento», que também encontramos em Charles Taylor, e a capacidade de adaptação como factor integrador e de não exclusão. De facto, não basta o reconhecimento formal.

INTEGRAÇÃO E EXCLUSÃO
A desigualdade e a discriminação, a injustiça e a exclusão determinam que o reconhecimento meramente jurídico seja insuficiente. Não basta uma lógica multicultural, em que os diferentes espaços são aceites como «ghettos» (ou sociedades fechadas sem comunicação), quando há incapacidade para organizar a participação e a representação. De facto, as soluções multiculturais não falham pelo reconhecimento formal, mas pela ausência de condições concretas, económicas, sociais e culturais, para que as comunidades tenham o reconhecimento da sua dignidade, da sua autonomia e da capacidade de serem respeitadas. A tolerância não pode ser abstracta ou formalista, daí a necessidade de haver equilíbrio entre a integração, a diversidade, a justiça distributiva e a legitimidade política. Uma comunidade excluída tende a tornar-se intolerante. A tolerância e o respeito tornam possível a existência de diferenças – salienta M. Walzer – enquanto as diferenças tornam necessário o exercício da tolerância. Daí a exigência de igualdade social e económica. A mera lógica do «politicamente correcto» alimenta mitos étnicos e raciais que podem pôr em xeque a tolerância e o respeito. Daí que, mais do que multiculturalismo, importe dar importância ao diálogo e às trocas entre as diferentes culturas. Só assim se assegurará a «coexistência pacífica», em contraponto ao ressentimento, que leva ao envenenamento das relações humanas e à destruição do respeito mútuo. Neste sentido, tolerância e respeito são postos em causa quando não existe um associativismo voluntário suficientemente forte para ser mobilizador de iniciativas. Por isso, a perda de «capital social» (na acepção de R. Putnam) é um fenómeno preocupante – desde o abaixamento do número de sindicalizados ao aumento das taxas de abstenção eleitoral, passando pelo crescimento do fenómeno dos sem-abrigo, pela violência familiar ou pela proliferação das pessoas sós. De facto, a solidão contrapõe-se à acção comum, o tumulto à passividade, a emergência de objectivos comunitários à apatia total. E o certo é que a ausência de instâncias de mediação, de representação e de participação gera fragmentação social e quebra de confiança, a que se assiste um pouco por toda a parte. A verdade é que, na sociedade política, a fragmentação social favorece a demagogia, e esse facto obriga à compreensão de que a tolerância exige a iniciativa social e a solidariedade voluntária, a participação cívica e a representação legitimadora.

CRÍTICA E RESPEITO MÚTUO
O nosso autor põe a tónica no facto de as democracias terem necessidade de espíritos críticos, possuindo a virtude da tolerância. A fraqueza da vida associativa, geradora de inquietudes e rancores, produz novas formas de intolerância e fanatismo. «Se queremos ver o reforço mútuo da comunidade e da singularidade jogarem a favor do interesse geral, é indispensável tomar medidas políticas que o tornem esse reforço efectivo» - afirma Michael Walzer. Daí a importância da coexistência pacífica, da vida associativa e da consciência do valor da entreajuda. As políticas sociais, a coesão económica, a justiça distributiva, o reconhecimento da liberdade, da igualdade e da solidariedade são fundamentais, exigindo, no fundo, um equilíbrio efectivo entre as dimensões pessoal e comunitária.


Guilherme d'Oliveira Martins

 

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A VIDA DOS LIVROS


de 11 a 17 de Abril 2011

 

“Timor – O Nosso Dever Falar” (APEL, 1999) é um pequeno livro de solidariedade com o povo de Timor-Leste que contém uma pequena e preciosa antologia de Ruy Cinatti e em que ainda colaboraram Eugénio de Andrade, José Agostinho Baptista, Sophia de Mello Breyner, Nuno Júdice, Jorge Lauten, José Tolentino Mendonça, Fernando de Paços, José Cardoso Pires e António M. Couto Viana. Foi com emoção que regressei a esta leitura quando há duas semanas regressei a Timor…

 

 

    
Ruben A. e Ruy Cinatti (c. 1950)

 

RECORDAÇÃO EM TIMOR

Escrevo de Timor uma carta sobre língua e cultura. Vim de novo, em nome da amizade. E aqui sinto, mais do que nunca, apesar de todas as incertezas, que estes mundos ao encontro dos quais os portugueses vieram (é melhor dizê-lo assim do que usar outras fórmulas) correspondem ao resultado de um diálogo. O nosso «melting pot» original, o nosso cadinho de várias influências, é incompatível com qualquer ideia de absorção ou de adaptação. Mais do que absorção ou do que adaptação, do que se trata é sempre de uma serena osmose feita de diálogo e de saudade. Diálogo a partir da plasticidade da nossa cultura leva naturalmente a uma relação biunívoca (veja-se o caso de Goa, originalíssimo e próprio, que se tornou identidade autónoma.) – damos e recebemos, e depois resulta algo de diferente dos pontos de partida. E é ainda produto da saudade, palavra ambígua e não delicodoce, lembrança e desejo, no fundo, uma das matérias-primas da memória, mas apenas uma parte dela. E não se fique pela ideia de adaptação, uma vez que a ligação biunívoca obriga sempre a que cada qual, cada cultura, cada identidade, se situem tal como são, assim se relacionando e respeitando. Não construímos um sincretismo cultural, fazemos, sim, a experiência de uma soma (multímoda) e não de uma subtracção.

 

CULTURA DE VÁRIAS LÍNGUAS…

Cultura de várias línguas, língua de várias culturas. – a fórmula é muito mais complexa do que à primeira vista possa parecer. Uma cultura de várias línguas espalhadas pelo mundo: tem um denominador comum – a capacidade de encontrar lugar para exprimir sentimentos comuns, a partir do universalismo da dignidade das pessoas. Poucos compreenderam, aliás, o que quis dizer António Alçada Baptista com a sua cultura de afectos – definida essencialmente na sua obra maior, «Peregrinação Interior». Esse seu entendimento, na linha de Fernão Mendes Pinto, pícaro e dramático, insatisfeito e aventureiro, tinha sobretudo a ver com o coração, e com o conhecimento na acepção de Paul Claudel, «con-naissance», nascimento com - procura de denominadores comuns que exige a capacidade de ter atenção, de ouvir, de incorporar e de respeitar. As línguas maternas exprimem sentimentos, como não há outro modo de o fazer. E em Timor-Leste, sentimos a força do multilinguísmo e a busca permanente de pontos de encontro, apesar de todas as resistências e distâncias. Ruy Cinatti compreendeu melhor do que ninguém essa proximidade e essa distância: «Que Timor morra comigo não quero / porque o amo / como detesto os que o destruíram e destroem / antes do corpo, / na alma sempre».

 

«NÓS NÃO SOMOS DESTE MUNDO»

Quando relemos o poeta de «Nós não somos deste mundo» sentimos que houve, relativamente a Timor, amor à primeira vista e uma relação de fidelidade contra todas as vicissitudes. É ainda com emoção que relemos as suas primeiras impressões: «Quem desce pela primeira vez aos Trópicos fica impressionado pela riqueza e complexidade da vida vegetal. Os panoramas de vegetação exuberante, os volumes de verdura de onde sobressaem palmeiras, bambus, árvores altíssimas e outros tipos de plantas, desencorajam, por vezes, o recém-chegado ansioso por conhecer o mundo que organizara, no seu espírito de acordo com meia dúzia de regras aplicáveis à vegetação dos climas temperados. Tudo é novo e estranho». Cinatti ficou absolutamente apaixonado por Timor - «a minha vida aqui tem sido uma verdadeira experiência, das que jamais se esquecem e que ou deixam fundas marcas no carácter de uma pessoa ou reforçam as tendências inatas do indivíduo que as experimenta». Quando regressamos ao magnífico «A Condição Humana em Ruy Cinatti» de Peter Stilwell, lemos com emoção esse amor extraordinário à terra e às gentes. E há razões objectivas para essa relação amorosa. Não se trata, porém, de um idílio passageiro, uma vez que mesmo depois de todas as dúvidas e incompreensões, fica o desejo de continuar a compreender e a conhecer melhor esta ilha simbolizada no crocodilo.

 

UM IMPÉRIO DE LÍNGUA E DE ESPÍRITO
Aqui, nos antípodas, compreendemos talvez melhor esta singular extensão da influência cultural. Como foi possível, misteriosamente, chegar aqui? E sentimos a ideia do Padre António Vieira de um Império não político, mas de dons, de graças e feito de transmissão de cultura e de espírito. Numa junção de elementos contraditórios, até para compreender a nossa própria cultura, projectada aqui como num espelho, lembramo-nos de Eduardo Lourenço a falar de «maravilhosa imperfeição» (que aqui também encontramos) e a invocar o irrequieto «desassossego» de Fernando Pessoa; isto, enquanto Agostinho da Silva (mil vezes incompreendido, e confundido com um lunático comum) lançou as sementes de um complexo diálogo de línguas e de culturas, menos apologético do que desafiante – para que cada um possa perceber que precisamos do nosso sentido crítico, da nossa insatisfação (simbolizada por Antero de Quental e pelos seus amigos) para superar as dificuldades, que tantas vezes agravamos por excesso de confiança, por desconfiança e por alternância entre o conformismo e o inconformismo, entre o optimismo e o pessimismo. Afinal, a recusa da mediocridade, obriga à severa crítica e ao drama… António Quadros diria: «Acreditem (…). Portugal está mais no fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois». E a afirmação carece de uma leitura cuidadosa e sábia – pondo o acreditar como sinal de vontade (no sentido que Herculano lhe deu). E agora sentimos genuinamente e com a distância da diferença este dizer-nos «acreditem» ou «acreditemos todos» nas causas comuns e diversas - nos confins das montanhas heróicas, ou nas conversas amenas com Ramos Horta e Xanana Gusmão.

 

UMA CARTA PARA O RUBEN

Em carta a Ruben A. lemos: «Pois é verdade! Eis-me na ilha de encanto e do desencanto (…), feito infecto burocrata como chefe de uma nova repartição técnica; a dar despachos e a ir a despacho; exactor da fazenda e fabricante de regulamentos; responsável por massas e cargas». Queixa-se da malária, confessa saudade dos livros, das conversas e dos Amigos. «Valem-me, no entanto, os poucos passeios na ilha que continua de uma beleza ressumante. Mistérios e neblinas sobre verdes densos e abismos. Mar de ilhas perdidas e crepúsculos loucos. E um sossego que envolve tudo como o manto diurno. Volto-me portanto para a Natureza e dela retiro as forças para os encontros diários» (10.1.1952). É assim ainda hoje. Recordo com o Embaixador Luís Barreira de Sousa o heróico envio de professores de português no momento da máxima incerteza. Ficámos aquém? Certamente, mas só Deus sabe as mil e uma resistências de toda a sorte. O tema das línguas é um sinal de como as culturas se podem entender ou desentender. Lembro com Pedro Bacelar de Vasconcelos ou com Maria de Jesus Chaves outras deambulações. E vem à memória Teresa Santa Clara Gomes, que já não pôde ver esta nação nova. E Sophia lembra-nos: «o cerco da surdez dos consumistas / tão cheios de jornais e notícias».  

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

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A VIDA DOS LIVROS


de 4 a 10 de Abril 2011

 

Fernando Bento (1910-1996) é um dos autores portugueses de Banda Desenhada (BD) de maior relevância, ao lado de Eduardo Teixeira Coelho, e mais recentemente de José Garcês ou de José Ruy. O CNC homenageou-o há uma semana e o artista merece referência especial, por ocasião do seu centenário do nascimento, que suscitou a recente publicação de «E Tudo Fernando Bento Sonhou» da autoria de João Paulo Paiva Boléo (C. M. Amadora, 2010), repositório fundamental sobre uma obra da maior importância.

UM PROLÍFERO DESENHADOR
Segundo João Paulo Paiva Boléo - que nos deu o gosto de estar no Centro num fim de tarde chuvoso de Março, com Geraldes Lino e José Ruy, na presença de Arlete Bento e de outros familiares de Fernando Bento - se é certo que a figura portuguesa da BD que, «conjugando o traço e o prestígio internacional», teve maior destaque foi Eduardo Teixeira Coelho, autor sobretudo ligado a “O Mosquito”, e com um importante percurso europeu na revista “Vaillant”, a verdade é que «com uma carreira praticamente só nacional – embora algumas histórias tenham sido editadas na Bélgica, numa publicação flamenga e também em Espanha – o mais original, aquele que no seu melhor (e foi muito) mais representou a essência dinâmica da BD, foi Fernando Bento». Trata-se de um síntese perfeita que retrata bem o que este autor representa no panorama da BD. Concordo absolutamente com o que afirma João Paiva Boléo. O traço de Fernando Bento é inconfundível, demonstrando uma grande segurança e um enorme talento e originalidade. Nas duas pranchas publicadas no “Cavaleiro Andante” que, a título de exemplo, hoje apresentamos, de «Moby Dick» (1960), obra que, com «Beau Geste» (1952), é uma das obras-primas do mestre, facilmente nos apercebermos de uma extraordinária capacidade para transmitir a força do movimento, como demonstração de vitalidade e sentido artístico. É esta qualidade que merece o reconhecimento dos melhores especialistas, colocando Fernando Bento ao nível do melhor que tem sido feito na BD. Verifica-se um grande cuidado no entrosamento entre a narrativa escrita e a ilustração, já que ambas apenas podem funcionar se se ligarem, havendo extremo cuidado na apresentação dos textos e uma muito correcta e equilibrada utilização dos balões para os diálogos. O facto de o autor ter sido um prolífero adaptador de textos clássicos (desde obras de Júlio Verne às de Conan Doyle) permite-nos dizer que as suas qualidades são especialmente evidentes, já que mostra um assinalável espírito de síntese, com a consideração do essencial e a sensibilidade extraordinária para nos dar em imagens o relato minucioso e riquíssimo dos acontecimentos da narrativa. Aqui notam-se, aliás, as ligações muito intensas existentes desde sempre entre a BD, o teatro e o cinema, que Fernando Bento muito bem conhecia e bem compreendeu. E se referimos a dimensão culta da obra, que é de primeira qualidade, devemos ainda aludir à criação humorística do desenhador e do ilustrador, também denotadora de grande qualidade gráfica e dinamismo representativo – virtudes evidentes nas suas caricaturas e nos episódios para crianças, publicados, por exemplo, em “O Pajem” do “Cavaleiro Andante”, que reproduzimos acima num dos apontamentos protagonizados pelo próprio autor e pelos seus filhos Anita e Filipim.

 

MUNDO DA AVENTURA E DA LITERATURA
Voltando a João P. Paiva Boléo, deve reconhecer-se que Fernando Bento é «um dos maiores autores, um dos maiores desenhadores da BD portuguesa». «Marcou o imaginário de milhares de leitores, fê-los sonhar, fê-los descobrir mundos “da terra á lua”, histórias de emoção e de coragem… Em síntese, abriu-lhes (abriu-nos) em simultâneo o mundo da aventura e o mundo da literatura». Este ponto é particularmente importante, uma vez que, ao contrário das resistências de alguns pedagogos até à primeira metade do século passado, a BD possui nos dias de hoje importantes virtualidades para a aprendizagem na escola, quer no domínio da literatura, quer na iniciação às artes e às ciências. O requisito fundamental que importa respeitar é a qualidade gráfica, literária e de conteúdo, que deve ser servida por uma grande exigência e o maior respeito pela língua e pela qualidade da expressão artística. De facto, a leitura de BD de qualidade permite incentivar o contacto com a literatura e a vida, com os saberes e as artes. Fernando Bento considerava-se essencialmente um caricaturista. Hoje, porém, analisada a sua obra, temos de reconhecer que apesar da sua qualidade nesse domínio, é na BD que se destaca. E quando se pergunta se Bento tem lugar na Arte e na Cultura portuguesas, temos de responder afirmativamente, sem dúvidas. A BD não é uma arte menor, é uma expressão artística (especialmente valorizada depois do modernismo) e, por isso, os seus cultores têm de ser reconhecidos pela sua qualidade, sem outras comparações. O futuro confirmá-lo-á com clareza. Daí que Fernando Bento tenha de ser apreciado pelo modo como se destacou na expressão da sua arte.

UM CAMINHO MULTIFACETADO
Depois do trabalho na secção infantil do jornal “República” e em paralelo com a colaboração no “Pim Pam Pum” de “O Século” (1941-1959), vai ser no “Diabrete (1941-1951) de Adolfo Simões Müller que Bento se vai afirmar, como responsável gráfico da revista, atingindo aí a sua maturidade artística. Assinale-se no “Diabrete” a publicação das adaptações de Júlio Verne (1942-48), as “Mais Belas Histórias do Mundo das Crianças” ou as figuras da História de Portugal. Discute-se, por vezes, se Fernando Bento terá sido um autor mais relevante no género sério ou no cómico. António Dias de Deus prefere o segundo ao primeiro, João Paiva Boléo talvez hesite. Pessoalmente, considero que é no registo mais sério que a qualidade de Fernando Bento melhor se afirma. Aí é mais completo. Estamos, aliás, perante uma riquíssima síntese onde o traço inconfundível do artista nunca esquece a ironia e o movimento. Quanto à autoria das adaptações, apesar de persistir alguma dúvida e mistério, parece ser Adolfo Simões Müller o grande artífice com o apoio de Maria Amélia Bárcia, omnipresente secretária da redacção. Depois do “Diabrete”, o “Cavaleiro Andante” (1952-1962) é o projecto mais importante de Fernando Bento, cabendo-lhe a feitura da imagem de marca e estando aí publicadas as suas obras-primas – “Beau Geste” (1952), “Emílio e os Detectives” (1957-58), “A Liga dos Ruivos” (1958) e “Moby Dick” (1960). As adaptações dos clássicos parecem ser claramente iniciativa de Müller que, como pedagogo, pretende valorizar o projecto cultural e educativo das suas revistas. Note-se que às obras do director do “Cavaleiro Andante” na colecção “Gente Grande para Gente Pequena” está também associado o ilustrador Fernando Bento. A obra do artista apresenta um percurso seguro, sendo que a sua maior virtualidade está no talento de unir permanentemente o movimento e a ironia, a versatilidade e o realismo. O estilo é inconfundível e não imitável, percebendo-se que o caricaturista está sempre presente. João Paiva Boléo escreve sobre Fernando Bento com o rigor que lhe conhecemos e traça-nos um perfil em que o seu valor e a sua originalidade surgem claramente evidenciados. A obra, apesar das limitações compreensíveis, é um instrumento muito importante para os cultores e estudiosos da BD portuguesa.


Guilherme d'Oliveira Martins


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