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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 27 de Junho a 3 de Julho 2011



«Indignai-vos» de Stéphane Hessel (Objectiva, 2011) é uma obra que se tornou um fenómeno europeu de repercussões inesperadas. Aos 93 anos de idade, um antigo diplomata francês, membro activo da Resistência, companheiro do General De Gaulle, com um papel muito relevante na redacção da Declaração Universal dos direitos humanos das Nações Unidas (1948), lançou um pequeno manifesto que vendeu em França um milhão e trezentos mil exemplares, em apenas 4 meses, e que agora é publicado em Portugal com prefácio de Mário Soares.


 

A MEMÓRIA DA RESISTÊNCIA
«O motivo basilar da Resistência (diz-nos Stephane Hessel) era a indignação. Nós, os veteranos dos movimentos de resistência e das forças combatentes da França Livre apelamos às gerações mais jovens, que dêem vida ao legado da Resistência e aos seus ideais e que os transmitam». Num momento em que a memória da guerra que destruiu a Europa se esvai, regressam os egoísmos e a indiferença, e esses são os temas fundamentais desta obra. Hessel contrapõe as concepções optimista e pessimista da História, desde a visão dialéctica de Hegel à perspectiva de Walter Benjamin sobre o «Angelus Novus» de Paul Klee - «que abre os braços como para refrear e repelir uma tempestade que ele identifica como sendo o progresso». Mas «a pior das atitudes é a indiferença, que se traduz em dizer “como não posso fazer nada, desenvencilho-me como posso”». E a esta indiferença soma-se a indignação contra o fosso que existe (e se agrava) entre os muito pobres e os muito ricos, bem como o empenhamento no sentido da consagração efectiva dos “direitos universais”, propostos por René Cassin e Hessel, que obrigam a uma acção forte em prol da cidadania. Ao lermos este manifesto, dotado de um fervor e de uma determinação dignos de destaque, deparamo-nos com o alerta geral, mas também com a referência a casos concretos, como a situação na Palestina. Como método, Hessel propõe a não-violência, enquanto caminho que devemos aprender a seguir. «É preciso compreender que a violência vira as costas à esperança», e lembra Mandela e Luther King. «Criar é resistir, resistir è criar». Eis o que está em causa neste apelo veemente mas responsável, no sentido de «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos».

 

E PORTUGAL?
Há muito procuramos como País o nosso tamanho histórico, político, económico e social. Somos uma nação de tamanho médio com responsabilidades de potência histórica. Em 1974 e 75, regressámos ao porto de partida (como nos lembra Eduardo Lourenço), em 1986, entrámos nas Comunidades Europeias. E houve quem pensasse que o regresso à Europa seria a reforma ou jubilação de um velho país. Hoje percebemos que a nossa sobrevivência exige a procura e o encontro de uma soberania que seja compatível com a partilha de uma união de Estados e Povos livres e soberanos. Para Portugal, a União Europeia é o regresso natural a uma vocação que nunca perdeu. Impõe-se, porém, impedir que o futuro seja caracterizado pela periferia, pela irrelevância e pela mediocridade. Não basta falar da nossa vocação histórica ancestral, e importa evitar a ciclotímia ou bipolaridade, entre a depressão e a euforia. Impõe-se, no fundo, recusar o fatalismo do atraso. Urge a coragem da aposta nas vantagens competitivas, de modo a afirmar plenamente a nossa autonomia. A crise internacional pode e deve constituir uma oportunidade de transformação profunda – no sentido de mobilizar e envolver os cidadãos, de melhorar a qualidade da democracia, ligando a legitimidade da origem à legitimidade do exercício – o voto à prestação de contas e à responsabilização, com o reforço dos elos entre o Estado e a sociedade, na cobertura dos riscos sociais e na concretização da justiça distributiva.

 

PERÍODO DIFÍCIL E INCERTO
A União Europeia vive um tempo especialmente difícil e incerto. Não estamos perante uma realidade irreversível – os riscos de fragmentação são reais. Depois de 1989 a União deixou de ser um espaço como vocação de homogeneidade, para se tornar um ponto de encontro visando a paz e a seguranças, o desenvolvimento sustentável e a preservação da diversidade cultural. Aos egoísmos nacionais (subjacentes à denúncia de Hessel) importa contrapor uma definição clara de interesses vitais comuns, com reforço de um núcleo limitado de poderes supranacionais (da defesa do ambiente e da coordenação das redes europeias de comunicações à articulação das políticas de coesão económica, social e territorial). Será um erro a diluição da democracia supranacional e o alargamento das políticas intergovernamentais. A intergovernamentalidade gerou o reforço dos egoísmos nacionais. E, na aplicação do Tratado de Lisboa, terá de se dar: mais atenção ao papel dos parlamentos nacionais no controlo da subsidiariedade; maior importância ao governo económico da União, pela coordenação das políticas económicas e sociais que completem os desígnios monetários; e a maior protecção à Comissão Europeias como contraponto indispensável à lógica do Conselho, mais próxima da realização de um Directório de grandes. Nós, portugueses, temos de tomar consciência de que a nossa soberania depende da nossa vontade (Herculano dixit), da nossa capacidade preventiva, do que formos capazes de antecipar. Não podemos viver acima das nossas possibilidades, e temos de perceber que importa não gastar mais do que podemos nem menos do que devemos. Temos de preservar a equidade entre gerações. A poupança deve ser incentivada e servir de base à prevenção. Os portugueses poupam muito pouco, chegando na sua maioria à idade de reforma tendo, na melhor das hipóteses, apenas a sua habitação como única riqueza. Persiste o erro antigo que Sérgio e Cortesão verberaram, na sequência de Antero de Quental – preferimos o transporte à fixação, e continuamos sem dar ouvidos ao Infante D. Pedro na sua celebérrima Carta de Bruges.

 

A CULTURA COMO VALOR
A cultura é um factor decisivo de inovação e criatividade. Impõe-se, por isso, entendê-la como confluência do património material e imaterial, pedras mortas e pedras vivas, com a criação contemporânea – em lugar de um entendimento exclusivista entre o património herdado e a criação actual. O que está, de facto, em causa é a criação de valor. Daí que à economia da ilusão e do casino devamos ter de contrapor a cultura criadora e inovadora., capaz de se afirmar pelo valor gerado. O que a Convenção de Faro do Conselho da Europa diz tem a ver com esta preocupação. Daí que tenhamos de falar mais de desenvolvimento humano e de exigência, rigor e disciplina na educação e na formação. Se a competitividade e a criatividade são fundamentais, importa compreender que a periferia, a mediocridade e a irrelevância só podem combater-se através de melhor informação e de mais exigente educação e formação. Compreende-se a importância da internacionalização, do intercâmbio científico, educativo, artístico, profissional e cívico. A aposta na educação é fundamental. Não pode haver a tentação de diminuir a ambição nesse domínio. Mais educação e formação significa mais coesão e mais justiça – mas sobretudo permite melhor informação de modo a poder responder-se mais eficazmente aos desafios perante os quais nos encontramos. Por outro lado, o futuro da língua e da cultura tornou-se decisivo para a modernização contemporânea. A língua portuguesa é hoje a terceira língua europeia em número de falantes no mundo. Esse número e essa perspectiva ainda não correspondem a real influência. As potencialidades existem. Há uma tomada de consciência nas economias emergentes da importância futura da língua portuguesa, na América do Sul e em África. Deste modo, o valor da língua portuguesa no mundo será maximizado, pela cooperação académica e científica, pela criação de valor através da aprendizagem, pela criação de espaços de diálogo e intercâmbio (das humanidades às ciências exactas). A cultura da língua portuguesa é plural, multifacetada e complexa.  A mobilidade de um povo culto só pode favorecer a eficiência e a equidade, desde que haja capacidade de orientação e sentido de justiça. A crise pode ser, em suma, boa conselheira, desde que percebamos como poderemos criar valor, percebendo a força criadora de quem somos.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

Em memória de Manuel Pedro do Rio-Carvalho (1928-1994)

 

                                     

É para mim um imperativo e sobretudo um privilégio poder evocar a memória do Historiador de Arte e Professor Manuel Pedro do Rio-Carvalho. Fui sua aluna nas disciplinas de História da Arte e no seminário de Historiografia da Arte em Portugal na segunda metade dos anos de 1970, e por ele voltei em 1984/85 à Faculdade de Letras da então Universidade Clássica de Lisboa para frequentar a sua disciplina sobre as Artes do Espectáculo. Nessa altura, já estava desde 1981 e por seu convite, como sua assistente nas disciplinas de História da Arte e Introdução à de História do Design no IADE, como o voltei a ser anos depois na Fundação Ricardo Espírito Santo.

Provavelmente, a maioria dos participantes reunidos nesta sessão do Cento Nacional de Cultura em sua homenagem, tê-lo-á conhecido, escutado ou lido alguns dos seus artigos. Somos os privilegiados que temos o dever de preservar a memória de um Professor inspirador, um conferencista apaixonado, intuitivo e inovador, um estudioso que, diante de uma pintura, um vaso de Gallé ou de Rafael Bordalo Pinheiro, um edifício civil ou religioso, tinha um dom raro e excepcional: o de conseguir capturar e compartilhar a sua leitura sobre a originalidade de uma obra de arte, a sua produção e especificidades, quantas vezes em sínteses insuperáveis.

De uma grande independência de espírito e carácter, frequentemente acutilante e de uma franqueza surpreendente, era de uma total generosidade ao compartilhar os seus conhecimentos e a sua imensa cultura. Inspirador, prendia pelo dom da palavra – precisa, sensível, vibrante – tanto a especialistas como a um público de curiosos ou não iniciados.

Devemos-lhe múltiplos artigos – muitas vezes plagiados, sublinhe-se – e que urge serem reunidos num volume, tanto mais por se encontrarem dispersos em várias publicações, nomeadamente na extinta Colóquio. Artes, no semanário Expresso, no Jornal de Letras, ou em vários catálogos de exposições. Deixou-nos em 1986 a direcção de um volume da História da Arte em Portugal das Publicações Alfa sobre o período que mais estudou, “Do romantismo ao fim do século”, e nesse mesmo ano o livro dedicado à pintora Emília Nadal, mas destaco sobretudo a sua inovadora tese de licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas intitulada Tentativa de caracterização e valorização de l'Art Nouveau através das artes decorativas, que deu a conhecer em 1954 e fez descobrir a várias gerações de alunos e estudiosos o movimento Art Nouveau, tese que continua à espera de ser publicada, só podendo ser consultada na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

O pintor e também professor Eduardo Batarda, num depoimento para a Fundação Calouste Gulbenkian, a propósito da exposição Professores que teve lugar no CAM, declarou: “Pensei sempre que o Manuel Pedro do Rio-Carvalho era um professor de grande qualidade, e um anjo na terra.” Como gostaria de ter sido a autora destas palavras, eu que lhe devo quase tudo na minha formação e percurso profissional…

Muito obrigada.

 

Maria Helena Souto

Lisboa, 15 de Junho de 2011

 

A VIDA DOS LIVROS


de 20 a 26 de Junho 2011


 

«O Pensamento Português Contemporâneo – 1890 – 2010: O Labirinto da Razão e a Fome de Deus» de Miguel Real (INCM, 2011) resulta de um trabalho intenso e sério desenvolvido pelo autor nos últimos anos, de que tenho sido testemunha, e que muito me apraz registar e elogiar. Corresponde às matérias leccionadas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em três seminários sobre cultura portuguesa, mas ultrapassa em muito o magistério académico, correspondendo, sim, a um labor de leitura, estudo, investigação e crítica do fundamental que se produziu entre nós no último século. 

 


DN

 

UMA PROCURA DESAPAIXONADA
E o que de mais importante aqui se encontra é uma procura desapaixonada dos vários caminhos que o pensamento português tem trilhado – sem cedências ou simplificações e com a salvaguarda essencial de uma objectividade nem sempre fácil, que permite contribuir para responder à interrogação sobre o sentido de uma história cultural multímoda, influenciada por duas visões do mundo conflituais: o provincianismo messiânico, «como se os portugueses se tivessem constituído como segundo povo eleito de Deus» e o racionalismo e empirismo europeus – «atitude mental causadora da laicidade do Estado, do espírito científico, da democracia política e do cosmopolitismo universalista, de que Portugal foi vanguarda no dealbar dos Descobrimentos». A partir destes dois polos, Miguel Real refere nos últimos 130 anos «três vértices da permanente aproximação da cultura e do pensamento portugueses à realidade cultural europeia, dois com fortíssima intervenção intelectual e o último com fortíssima expressão política e social». Estão em causa o vértice histórico filosófico, centrado nas Conferências Democráticas do Casino de 1871 e no seu sentido modernizador, racionalista e cosmopolita – ainda na sequência do constitucionalismo liberal de D. Pedro; o vértice literário, expresso na explosão da ousadia modernista do Orpheu, com os antecedentes oitocentistas de um Cesário; e o vértice político social da revolução de 25 de Abril de 1974, que «inverteu o rumo de 400 anos de dramático espírito imperial português», num sentido democrático e europeu, tendo como bandeira a «Europa connosco». Ao contrário do que Eric Hobsbawm tem referido relativamente ao curto século XX europeu (1914-1989), por contraponto ao longuíssimo século XIX (1789-1914), Miguel Real fala-nos (e com razão) de um longo século XX português iniciado em 1890 – com características singulares que encontram as suas raízes na grave crise política, económica e social, que conduziu ao fim da monarquia (num curioso e ilustrativo paralelismo peninsular, que tem sido pouco enfatizado, mas que merece atenção, em especial em relação à chamada geração de 98).

 

UMA IMAGEM POLIÉDRICA
Apesar dos «diversíssimos movimentos que dão corpo e sangue ao pensamento português do século XX», há um quadro cronológico múltiplo e unitário que pode permitir abordar de modo aberto e construtivo o tema difícil da nossa identidade, como o fazem magistralmente, de modo diferente e complementar, José Mattoso e Eduardo Lourenço. E assim temos uma sucessão que se vai somando e enriquecendo. E os autores vão superando dialecticamente as características do seu tempo cultural. O racionalismo, no modo positivista, domina os primeiros 25 anos do século XX, mas contém já em si o germe crítico que vem da geração magnífica de Antero de Quental. A dominância do providencialismo absolutista messiânico e autoritário dos cinquenta anos seguintes anuncia no seu seio um sentido crítico que se manifestaria depois de 1945 e sobretudo no ano emblemático de 1958 (candidatura do General Delgado e o memorando do Bispo do Porto…), graças à semente inconformista e heterodoxa que pôs a tónica na liberdade, para além dos messianismos corporativo e neo-realista. O racionalismo e o modernismo surgem, assim, no último quartel do século XX, caldeados pelas noções de complexidade e de diversidade (a presença portuguesa de Edgar Morin é evidente) trazidas pelos mais jovens, da linhagem do cosmopolitismo europeu, e também lusófono, que Francisco Lucas Pires enfatizou. Assim, a presença do providencialismo e do espiritualismo português manteve-se, mas em diálogo tenso com os caminhos modernizadores (com pessoas tão diferentes como Agostinho da Silva e o Padre Manuel Antunes) – entendendo-se a identidade portuguesa como um resultado complexo de elementos contraditórios que exigem a compreensão dos mitos e uma lógica racionalizadora. E Eduardo Lourenço num ensaio fundamental, publicado no ano da morte de António Sérgio (1969), procurou apresentar uma chave que permitisse entender a heterodoxia e o «labirinto da saudade» enquanto encruzilhada de razões e mitos, em articulação com a reforma de mentalidades, que procura entender os portugueses com «espírito geométrico». Mas Lourenço demarca-se do «reino cadaveroso», que considera ser um reparo algo sobranceiro – antes preferindo voltar-se para Montaigne e Pascal e à necessidade de concatenação entre o «esprit de finesse» e o «esprit geometrique»… Daí a exigência de evitar simplificações, que, sendo atraentes, arriscam-se a não compreender, de facto, este nosso «melting pot» bem difícil de gerir, como está patente a cada passo. Entende-se, assim, bem as três partes em que se divide o longo ensaio de Miguel Real: o triunfo do racionalismo (1890-1930), o triunfo do providencialismo (1930-1974) e “Europa connosco” (1974-2010). A verdade é que o trabalho empreendido é extremamente importante e útil. Seria sempre muito difícil levar a cabo um esforço como este, mas devo dizer que, quer conceptual quer pedagogicamente, apresenta uma qualidade que permite perceber, como poucos, a riqueza do pluralismo cultural português.

 

UMA LÓGICA PROSPECTIVA DA CULTURA
O escritor tem um percurso intelectual próprio, no ponto de encontro entre a filomitia de Eduardo Lourenço ou de José Marinho, a heterodoxia do primeiro e o modernismo pessoano, com todas as várias reminiscências. E não por acaso, recorda-nos as raízes remotas, de Francisco Sá de Miranda até ao inesgotável Padre Vieira: «a vertente modernista da cultura portuguesa possui o seu momento fundador na obra de Sá de Miranda e estatui-se como uma permanente actualização europeia da literatura e do pensamento portugueses». Esta preocupação das raízes é muito evidente, e encontramos no movimento da “Renascença Portuguesa» (1910) uma extraordinária placa giratória simbólica onde quase tudo vai dar, desde as bases românticas de Garrett e Herculano, às bases naturalistas de 1870, ao simbolismo portuense, vindo do 31 de Janeiro, de Pascoaes, Leonardo, até aos nacionalistas, aos seareiros e aos modernistas de «Orpheu», que originariamente quiseram baptizar a sua revista de «Europa» - sintomaticamente. Um pensamento vivo não é resumível e, por isso, Miguel Real não cai na tentação das sínteses abreviadas. Analisa as condições históricas, segue criticamente a evolução de Portugal e do mundo e lê com muito cuidado os textos.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

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JOSÉ SARAMAGO


NO DIA DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

[poema de homenagem]

agora, livre da coadjuvância das afectações: os
deuses se escondem nas artérias do teu
silêncio, na tua fraqueza perfeita porque
sem o hábito de se auto-observar.
voltaste a ti: numa outra intermitência da morte, com
o sublime que é tudo aquilo que ignora um todo e
conduz uma perspectiva até ao quociente interno
de uma invisibilidade que fala através
do teu questionário incicatrizável.
e daí tudo vês: vês-me faltar de propósito à
conclusão do meu poema, vês o peso
da omnipresença do abstracto, da hora antiga,
vês as minhas infâncias e urgências juntas e tar-
dando hoje em se converterem, devolvendo-me
ao que eu era: ao início do dia.

Sylvia Beirute
http://sylviabeirute.blogspot.com/

 


 

UM ANO DEPOIS...


O ano de 2011 não ficará apenas marcado com a celebração do primeiro aniversario da morte do escritor, que se marca este fim-de-semana com várias iniciativas, a maior das quais o depósito das suas cinzas em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa, mas também com o lançamento do inédito “Clarabóia”.


LANÇAMENTO DA OBRA INACABADA DE SARAMAGO EM 2012
O manuscrito inacabado em que José Saramago estava a trabalhar quando morreu o ano passado, a 18 de Junho de 2010, “Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas”, será publicado em 2012 e não este ano, conforme inicialmente previsto.

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UM ANO SEM SARAMAGO
Texto de Pilar del Río

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FUNDAÇÃO E PALÁCIO DE MAFRA QUEREM CRIAR NÚCLEO DEDICADOO A SARAMAGO

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A VIDA DOS LIVROS


de 13 a 19 de Junho 2011


«El Largo Viaje» (Tusquets, 2004) de Jorge Semprún é um conjunto notável de recordações amargas, terríveis, mas serenas, da barbárie de Buchenwald. No dia em que saiu do campo, ao autor pôs-se-lhe o dilema: recordar esse tempo inominável ou viver. E escolheu viver. Mas, quase vinte anos passados, em 1963, decidiu-se a escrever, com uma clareza capaz de obrigar a que essa memória não possa ser esquecida, em nome da humanidade e da liberdade. Contra qualquer violência ressentida, Jorge Semprún (1923-2011), agora falecido, contrapõe a exigência de nunca esquecer a dignidade humana.

 


 

UMA VIDA ESPECIAL
Nascido a 10 de Dezembro de 1923 em Madrid, no seio de uma família espanhola influente, Jorge Semprún era neto materno de António Maura, presidente do Governo de Afonso XIII, e filho de José Maria Semprún Gurrea, catedrático de Filosofia do Direito, político republicano e católico, ligado, nos tempos de chumbo, à resistência cristã próxima de Emmanuel Mounier e da revista “Esprit”. Órfão de mãe com apenas oito anos, teve dela, D. Susana Maura, uma profecia, que nunca mais esquece – seria primeiro-ministro ou escritor… Não importava tanto o sentido da predição, para ele, Jorge Semprún, essa lembrança representava essencialmente uma grande prova de amor. Com a Guerra Civil (1936-39), juntou-se com os seus irmãos, a seu pai, Embaixador da República espanhola na Holanda. Começava aí um longo exílio que duraria toda a vida. Em 1939, perdida a causa republicana, instala-se em Paris, onde estuda com seu irmão Gonçalo, como aluno interno, no exigente Liceu Henrique IV. Encontra Emmanuel Lévinas, que reconhece as suas grandes qualidades intelectuais. E em 1942, ingressa no Partido Comunista de Espanha, sendo preso no ano seguinte em Paris pela Gestapo e deportado para o Campo de Concentração de Buchenwald, experiência que é, como se disse, o tema de “El Largo Viaje”. Vale-lhe saber alemão (uma velha preocupação do pai) e ter sido inscrito como estucador e não como o estudante que era. Essas circunstâncias providenciais impedirão a sua morte. Apenas será libertado em 11 de Abril de 1945, pondo-se-lhe então a citada escolha dilacerante. Nunca esquecerá o seu número de matrícula 44904, mas optará por agir. Em Buchenwald dirá muito mais tarde, em 2005: «todas as memórias europeias da resistência e do sofrimento só terão como último refúgio e baluarte (…) a memória judia do extermínio, a mais antiga memória daquela vida, já que foi, precisamente, a mais jovem vivência da morte».

 

MILITANTE DA LIBERDADE
Depois da Guerra seguirá a sua militância política clandestina, mas, em 1964, rompe com o Partido Comunista, por recusar a lógica estalinista, então assumida por Dolores Ibarrui e Santiago Carrillo. Nessa atitude é acompanhado por Fernando Claudín. O valor da liberdade sobrepunha-se a uma qualquer lógica de poder ou oportunidade. Esse é o ano em que sai na Gallimard, com o título “Le Grand Voyage” o testemunho sobre o período em que Semprún esteve no Campo de Concentração de Buchenwald. O tema central é o «passado que não passa» que voltará em “L’ Écriture ou la Vie” (1994). O poder evocativo do escritor tem tal pujança que lhe permite ser uma das grandes testemunhas de um tempo dramático e dividido. Como disse Jean Goytisolo: «a criação literária de Jorge Semprún, elaborada a partir da sua quadrupla experiência de exilado republicano espanhol, resistente francês, deportado nos campos nazis e conhecedor dos segredos de um PCE ainda não expurgado das escórias do estalinismo, enriqueceu-se posteriormente com novelas da envergadura de “El Desvanecimento” e “La Segunda muerte de Ramón Mercader, até alcançar em “Aquel Domingo” essa dimensão histórica, ética e cultural, que a converte numa obra de referência no âmbito da melhor novela europeia». Aliás, em “La Segunda muerte” (editada em França, em 1969) o autor recorda as memórias mais remotas de uma infância intensamente vivida. Escreverá ainda, entre outros, «L’Algarabie» (1981) e «Mort qu’il faut» (2001), havendo hoje um reconhecimento geral de que esses testemunhos são fundamentais, quer no plano literário, quer pelo valor ensaístico.

 

O INESQUECÍVEL CINEMA E F. SANCHEZ
O cinema será uma das suas paixões. Constantin Costa-Gravas pede-lhe para escrever os argumentos de “Z” (1969), de “L’Aveu” (1970) e de “Séction Spéciale” (1974). A força dos argumentos impõe-se naturalmente. Também colabora com Alain Resnais. Costa-Gravas dirá: «o homem Jorge Semprún era de uma grande humanidade. Era um homem profundamente doce que punha de imediato as pessoas à vontade. Era de uma grande honestidade no plano político». E todos nos recordamos muito bem da personagem forte de Yves Montand em “Z”. No governo presidido por Felipe Gonzalez, o grande prestígio intelectual e político de Semprún leva-o a assumir a pasta da Cultura (1988-1991), numa experiência sobre que escreverá «Federico Sanchez se despide de ustedes» (1993). Contudo, o seu apego à nacionalidade espanhola (além de outros argumentos bizarros então usados) impediria a sua entrada na Academia Francesa. De facto, usou em regra a língua francesa na sua obra, com duas excepções significativas - «Autobiografia de Federico Sanchez» e «Vinte Anos y un dia». Federico Sanchez é a grande personagem de Semprún. É ele mesmo, perante o mundo, encarando frontalmente a tentação de alguns para definir de antemão a história e a vida, como necessidade e determinação.


REALIDADE E FICÇÃO EM DIÁLOGO
Estamos perante uma relação riquíssima entre a realidade e a ficção – e a narrativa memorialística encontra um forte sentido de vida vivida que Jorge Semprún assumiu com todas as suas consequências. Assim se entende, afinal, a opção radical à saída de Buchenwald, Semprún opta pela vida contra o suicídio e o nada. E essa ligação entre pensamento e acção, vida e narrativa, abre-nos para o projecto do autor, que se singulariza como um pensador activo. E é a Europa que nasce «como construção de um espaço de liberdade e de democracia frente ao passado hitleriano e frente ao presente e ao porvir do totalitarismo soviético». O percurso de Jorge Semprún é, assim, o retrato do século XX e visa, no fundo, a reflexão sobre a democracia como sistema de valores e não como estrutura formal de legitimação ou como um modelo abstracto de justiça. Daí a importância da «Autobiografia» de um responsável comunista espanhol, F. Sanchez, encarregado de criar uma célula de intelectuais e universitários nos anos cruciais de 1953 a 1963. Sanchez começa por acreditar numa força transformadora messiânica, mas vai compreendendo que, mais importante do que a participação ou a representação, para o aparelho instalado, é o poder e a sua perversão. Assim, a experiência totalitária torna-se-lhe intolerável e exige a sua superação. O que fascina na literatura de Jorge Semrún é a ligação entre uma escrita atraente e clara, um pensamento crítico e luminoso e a agudeza da análise histórica de largo prazo, numa obra de excepção. Já se disse, porém, que não há rancor, há serenidade – de uma humanidade que, parte da imperfeição e do erro, para os ir ultrapassando em cada conquista, sempre precária, porque nunca possuímos o conhecimento pleno da verdade. Como refere ainda Goytisolo: «A reflexão política recolhida na última década em “El Hombre Europeo” e “Pensar Europa” coroa o seu labor de pessoa e escritor, em todas as circunstâncias, como pedia Manuel Azaña -, testemunha dos horrores e grandezas da época convulsa que viveu».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 6 a 12 de Junho 2011

 


Para assinalar um quarto de século da integração portuguesa nas Comunidades Europeias, o gabinete do Parlamento Europeu em Lisboa, sob a iniciativa de Paulo de Almeida Sande, teve a excelente e oportuna ideia de reunir em livro um conjunto de depoimentos sobre Portugal e a União Europeia intitulado «25 Anos de Integração Europeia» (Parlamento Europeu, Gabinete em Portugal, 2010). A obra vale por si e merece ser lida cuidadosamente, uma vez que contém um manancial assinalável de temas e análises, sob perspectivas diferentes, que permitem uma releitura muito fecunda do fenómeno europeu, a partir de Portugal, num momento em que as crises, cujas consequências bem sentimos, nos obrigam a lançar novas pistas de acção que reencontrem as melhores raízes do projecto europeu, como catalisador de paz e segurança, de desenvolvimento sustentável e de diversidade cultural.
 

 

TENTAR OLHAR O FUTURO
Parto da reflexão de Ernâni Rodrigues Lopes (ERL), pouco antes de falecer, sobre os referidos vinte e cinco anos de Integração Europeia. Num texto pequeno, mas acutilante, falou da necessidade de fazer, perante os resultados obtidos na experiência europeia, «um exercício simétrico no eixo do tempo», no qual se contraponha a prospectiva ao balanço, ou seja, torna-se indispensável «enunciar a questão sobre qual a visão estratégica, para Portugal, para cada um dos restantes Estados membros e para o conjunto da União Europeia, relativamente aos próximos vinte e cinco anos». De facto, não podemos fugir ao problema, uma vez que o projecto europeu põe na ordem do dia a democracia, a partilha de soberanias, o desenvolvimento humano, a coesão económica, social e territorial, a afirmação política europeia e a consideração da paz e da justiça. Para o caso português, ERL afirma que «no mínimo será indispensável deixar uma nota básica: feita a descolonização, concretizada a adesão, consolidada a integração, assumida a ligação profunda ao processo histórico da construção europeia, a questão estratégica fundamental para Portugal, no horizonte da viragem do primeiro para o segundo quartel do século XXI é a seguinte: Portugal é capaz, ou não, de assegurar a articulação entre os quatro polos fundamentais da sua geopolítica – Portugal, Europa, Africa, Brasil?». Ao ler esta passagem lembrei longas conversas com o autor e recordei o que um dia Lorenzo Natali, comissário europeu do alargamento nos anos oitenta, afirmou: «Portugal quando entrar nas Comunidades Europeias fá-lo-á com toda a sua História e com a rede de relações geoestratégicas que foi construindo ao longo dos séculos. Se tal não acontecer, e se prevalecer a ideia de que deve acomodar-se à Europa, vista num sentido estático, então os portugueses terão um papel internacional periférico ou pouco relevante. Pelo contrário, terão de ser determinados e deverão na Europa contrariar a mediocridade e a dependência».


UM PENSAMENTO PRÓPRIO E POSITIVO
Ora, só com um pensamento próprio, com objectivos definidos e com capacidade de ter voz na cena internacional será possível ligar a História e a Europa, a democracia e o desenvolvimento. Para o professor hoje recordado: «a resposta positiva a esta questão estratégica fundamental é, hoje, tanto ou mais relevante, do ponto de vista sistémico, quanto o foi o conjunto da decisão da inserção de Portugal no processo de construção europeia no período seminal de 1974-77, da negociação da adesão (1977-85), da assinatura (1985) e entrada em vigor (1986) dos Actos de Adesão e, sobretudo, da experiência dos 25 anos desde então decorridos». Afinal, ERL recorda-nos ainda que «o papel das élites não é governar-se nem sequer orientar os assuntos do Estado em tempos de vida corrente e banal; é, acima de tudo, saber compreender as mudanças do processo histórico e ter a capacidade de conceber e concretizar novas soluções, que a História tende discretamente a exigir» («25 Anos de Integração Europeia», citado, pp. 33 e ss.). Se virmos bem, esta preocupação encontramo-la em todos os nossos pensadores que, ao longo do tempo, se têm preocupado com o lançamento de sólidas bases para o nosso futuro. Almeida Garrett considerou que apenas faria sentido pensar Portugal na balança da Europa e num contexto de afirmação mundial. Alexandre Herculano reflectiu intensamente sobre a necessidade de fazer governar o país pelo país – aproximando os cidadãos da definição dos caminhos comuns, mas sempre com a consciência de que teríamos de ser respeitados internacionalmente. Antero de Quental, com a sua geração gloriosa, procurou pôr na ordem do dia os temas da evolução e da justiça, da capacidade criadora e da responsabilidade, da fixação e da distribuição. E assim os homens das Conferências Democráticas, como muito bem tem visto Eduardo Lourenço, longe de um pessimismo sem saída, propuseram as bases críticas de uma renovação profunda da nação, que deveria ser colocada ao ritmo do desenvolvimento europeu. Basílio Teles, António Sérgio, Jaime Cortesão ou Joel Serrão contrapuseram, desse modo, a fixação e o transporte – verificando que a fragilidade ancestral portuguesa se deveu à prevalência do transporte e à dificuldade em assumir um caminho próprio, capaz de maximizar as qualidades e os valores disponíveis, centrado na capacidade inovadora e na produção de riqueza e compatível com o desenvolvimento humano. Vitorino Magalhães Godinho, ao pôr a tónica na história económica, sem esquecer a complexidade social, também nos ensinou sobre a necessidade de definir prioridades eficientes, baseadas na economia real.


UM PENSAMENTO EUROPEU MODERNO
António de Sousa Franco e Francisco Lucas Pires olharam sempre a Europa nesta perspectiva - de continuarmos o caminho histórico ancestral. Por isso, quando invocaram o exemplo do Infante D. Pedro, puseram a tónica numa exigência criadora, bem evidenciada na célebre Carta de Bruges, enviada ao Príncipe D. Duarte. Na senda de Eduardo Lourenço, e de «O Labirinto da Saudade», a imagem de Portugal como cais de regresso e de partida, num ciclo sempre renovado, conduz-nos à importância de ligar a gesta dos descobrimentos e uma vocação europeia. Daí que Eduardo Lourenço tenha afirmado, lapidarmente: «a nossa nova dimensão europeia não nos faz mais pequenos, nem outros; amplia os nossos horizontes e reforça a nossa capacidade para desempenhar neste fim de milénio (escrevia nos anos noventa) aquela vocação plenamente europeia que tão precocemente foi a nossa» (Prefácio a Francisco Lucas Pires, «O que é a Europa?», 1994). De facto, a questão europeia é crucial, é um tema de sobrevivência, e é uma opção política e cultural e não técnica. Por isso, é fundamental recusar o fatalismo do atraso, a lógica do desenvolvimento como crescimento infinito (que Morin critica severamente em “La Voie”) e a autoflagelação, de que fala oportunamente Boaventura Sousa Santos. E que nos diz o sociólogo? Que essa autoflagelação é como que «uma má consciência da passividade», não sendo fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta» («Portugal, Ensaio contra a Autoflagelação», Almedina, 2011).


UM ESPÍRITO DE FRONTEIRA
«Só o espírito de fronteira na Europa e no mundo da sociedade aberta – afirmava ainda F. Lucas Pires – nos permitirá enfrentar hoje, como numa aventura, a situação da periferia geográfica e histórica para a qual não temos suficientemente alternativa no mar de um universo já todo descoberto e cada vez mais finito» («O que é a Europa?», cit.). O difícil momento europeu que vivemos obriga a ligar, de novo, intensamente, democracia e desenvolvimento. A fragmentação e os egoísmos nacionais que se vão impondo têm de dar lugar a mais intervenção cívica, a mais legitimidade de exercício, a mais responsabilidade, a mais política e a mais subsidiariedade.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins