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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MARIA LÚCIA LEPECKI

"Maria Lúcia Lepecki era um elo natural no mundo das culturas da língua portuguesa. Era uma presença inconfundível – pela doçura da sua palavra e pela força das suas ideias. Conhecia a literatura portuguesa como os seus próprios dedos e há muito que nos ia dando pistas novas de reflexão e de investigação sobre os nossos escritores e a sua obra. O tempo dirá como foi importante termos esta lufada de ar fresco que foi a possibilidade de contarmos com a sua arte de viver e a argúcia da sua inteligência. Maria Lúcia foi sempre mais do que uma académica – foi a universitária inteligente que trouxe para a  investigação da literatura o gosto de viver e a alegria de abrir novos horizontes no diálogo entre as letras e o mundo. Camilo Castelo Branco pôde ser entendido a uma nova luz, mercê da investigação de Maria Lúcia. E tornou-se mais nosso contemporâneo, o que nunca tinha deixado de ser! Que melhor homenagem lhe poderá ser feita? O Centro Nacional de Cultura homenageia sentidamente a memória viva e a perenidade da obra de Maria Lúcia Lepecki."

 

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 25 a 31 de Julho 2011


 

O escultor José Rodrigues tem uma obra vastíssima e inconfundível. Uma vez que aqui falamos de livros, escolhemos «O Cântico dos Cânticos de Salomão», versão a partir do grego de Albano Martins, com dez litografias originais do escultor, gravadas em pedra de Baviera. É uma obra única, editada pela Cooperativa Árvore por ocasião dos seus 25 anos (Porto, 1988), integrada na colecção «Moinho de Vento», dirigida com a qualidade inconfundível do nosso primeiro editor, José da Cruz Santos. A obra é raríssima e está há muito esgotada, sendo disputada nos alfarrabistas. Hoje merece uma referência muito especial, ao homenagearmos o escultor e o amigo, e ao invocarmos também a Cooperativa Árvore e o talento e a sensibilidade do editor extraordinário da Oiro do Dia ou da Modo de Ler..

 

 
Foto: Liliana Lopes

 

UM RAIO DE LUZ NO GRANITO
«A cidade assemelha-se a um bloco de granito onde corre sempre um raio de luz». Não conheço melhor definição desta magnífica cidade do Porto do que a de José Rodrigues, o escultor, o artista, o intérprete extraordinário deste lugar único. E hoje como símbolo do Porto temos o cubo da Ribeira, que se tornou uma referência adoptada como sua pela gente da cidade. «Pensei numa coisa diferente dos temas a que sempre recorria – estátuas de mulheres nuas, bombeiros ou cavalos. E por que não um cubo com um jacto de água de forma a dar a ideia de que o pequeno jacto pudesse pôr em suspenso aquelas duas toneladas de bronze». E aqui está o símbolo da vontade, da inteireza, da determinação de uma cidade invicta.

 

José Rodrigues é um amigo que muito admiro. Mais do que o escultor, o desenhador e o gravador talentoso, que há muito conheço, é sobretudo um educador. Encontrei-o sempre nessa atitude sábia e aberta do artista que aprende. De facto, é essa inesgotável qualidade que cada vez mais lhe admiro. O autêntico educador é aquele que faz da relação humana um permanente acto de troca. E que é a aprendizagem senão isso mesmo? Sendo muito generoso, encontrei-o muitas vezes na dramática situação de ter sido traído na sua fantástica capacidade de dar tudo. Em tantas circunstâncias, percebi bem o significado do dito popular «por bem fazer mal haver». Mas, apesar das dificuldades e vicissitudes, vi sempre José Rodrigues continuar no seu caminho de coerência e de genuína entrega à arte e aos outros. Para ele não faz sentido o conhecimento e a compreensão se não forem partilhados, se não houver dom e troca. Por isso, admiro nele, para além do talento, essa capacidade sábia de fazer do acto de aprender um movimento biunívoco em que a humanidade e a dignidade se entregam e se realizam.

 

O MESTRE DA ESCULTURA
É vê-lo a dialogar com os jovens, a transmitir os seus saberes, sempre com a qualidade de ouvir e de verificar as dificuldades e as virtudes. O seu olhar vivo, atento, perscrutador, como o de uma águia das montanhas que apreende a beleza natural, mas que entende a um tempo o conjunto e os pormenores, demonstra essa capacidade única de perceber e de transmitir, de apreender e de responder, de olhar e de ver. Um escultor de excepção, como José Rodrigues, aprende as formas, os espaços, as relações, as proporções, os movimentos, a tensão da vida, a agonia, o êxtase, a coerência e a contradição. Nele, de facto, sente-se a vida como combate e como ligação íntima à terra – com um especial culto do feminino e da mátria. E que é a escultura, desde o barro ao bronze, senão essa capacidade sagrada de criar e de construir, como Deus faz no livro do Génesis? O escultor reedita esse movimento fundador de pegar no barro e de lhe dar vida. O olhar vivo e desperto liga-se ao dom divino de moldar a terra e de lhe dar um sopro de alma.

 

A VIDA COMO FORMA DE POESIA
José Rodrigues nasceu em Luanda, vem de África, do lugar das origens da humanidade, e é nortenho com os pés assentes na terra, no húmus, e com a imaginação nas nuvens (no melhor sentido da imagem). Tornou-se, como se disse, um dos símbolos da cidade do Porto, a que me ligam raízes familiares antigas, e nunca esquecerei nas Águas Férreas (em casa que foi da minha família e hoje é do Meu Amigo Conselheiro Santos Serra) a homenagem nacional a Oliveira Martins, em 1994, cuja memória ficou perpetuada por uma obra sua, baseada na ideia democrática por excelência da justiça para todos. E, de facto, é esse amor ao futuro, construído pela vontade autónoma e solidária das pessoas, que constitui o ideário de José Rodrigues, em cuja obra se sente amiúde a influência de Antero de Quental. Diz o escultor: «A vida tem de ser uma forma de poesia, senão tornámo-nos uma espécie de matraquilhos».

Insisto em que admiro sempre, e antes de tudo, o educador e que é ele que hoje desejo homenagear. Como um dos fundadores da Cooperativa Árvore e como um dos promotores da Bienal de Vila Nova de Cerveira demonstrou, com vontade firme e solidária, que o artista não pode viver fora da relação com os outros. É a troca, o exemplo e a aprendizagem que têm de estar sempre presentes – e isso é especialmente importante para o escultor.

 

«OS QUATRO VINTES»
E como poderemos entender a cultura portuguesa contemporânea, numa encruzilhada ente herança e inovação, se não lembrarmos o diálogo do escultor com os seus colegas artistas, como «Os Quatro Vintes», em que José Rodrigues, Armando Alves, Ângelo de Sousa e Jorge Pinheiro representam o impulso no sentido de um renascimento cultural, em que ciclicamente a cidade do Porto é tão pródiga? De facto, para José Rodrigues a arte não tem sentido sem uma intensa relação humana. Em cada diálogo que se estabelece entre pessoas comuns há um fluxo criador, que no caso dos artistas torna-se mais intenso e transformador. O projecto da Fábrica Social em Santo Ildefonso é a procura do sentido humaníssimo, que na cidade do Porto tem ainda mais significado, se nos lembrarmos do que Jaime Cortesão disse que é a única cidade-Estado da nossa cultura, o lugar de onde houve nome Portugal. E, sob o olhar do escultor-sábio, a cidade assemelha-se, cada vez mais, a um bloco de granito onde corre um raio de luz.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 18 a 24 de Julho 2011
 

 

«Introduções Geográficas à História de Portugal – Estudo Crítico» (INCM, 1977) de Orlando Ribeiro é um pequeno livro, de uma utilidade extrema, onde o geógrafo se interroga sobre as diversas leituras de Portugal feitas pelos historiadores. E o que fica demonstrado? Antes do mais, que História e Geografia têm uma ligação íntima e fundamental, mas ainda que só poderemos entender a saga dos portugueses no mundo, a partir deste lugar de encontro e de diferença. E hoje, num momento de crise, é tempo de percebermos que quase nove séculos de história obrigam a perceber a cultura, o território e os lugares que constroem a nossa identidade e o nosso ser.

 

 
PONTO DE ENCONTRO
A cultura portuguesa é um ponto de encontro, a começar no «melting-pot» original de Finisterra, onde chegaram povos diversos que fizeram da nossa herança um cadinho heterogéneo, e a continuar na relação com o território. Orlando Ribeiro, com a intuição única do geógrafo e do historiador, identificou um «continente em miniatura», e o certo é que essa circunstância original da nossa inserção peninsular e europeia facilitou a partida para a descoberta do mundo, qualquer que se seja a explicação a encontrar. «A terra de um povo já não é um simples dado da Natureza, mas uma porção de espaço afeiçoado pelas gerações onde se imprimiram, no decurso do tempo, os cunhos das mais variadas influências. Uma combinação original e fecunda, de dois elementos: território e civilizações» (diz em «Introduções»). Jorge Dias falaria da capacidade de adaptação, da simpatia humana e do temperamento amoroso dos portugueses – que teriam assimilado por força da adaptação. Se olharmos, contudo, às mudanças profundas dos últimos anos (numa nova relação com a Europa e o mundo), percebemos que a chave não está apenas na adaptação, mas na capacidade de incorporar elementos novos, mantendo fidelidade às raízes. Tem razão Manuel Clemente ao insistir nesta ideia.

 

CULTURA DE VÁRIAS CULTURAS
Estamos perante uma cultura de várias culturas, na qual a língua desempenha um papel fundamental. De facto, a língua portuguesa, com a sua afirmação universal, é expressão de diversas sensibilidades. «Gosto de ouvir o português do Brasil / onde as palavras recuperam a substância total / Concretas como frutos nítidas como pássaros / Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas / Sem perder sequer um quinto de vogal. / Quando Helena Lanari dizia o “coqueiro” / O coqueiro ficava mais vegetal». Sophia disse-o melhor que ninguém em «Geografia» (1967), e no entanto bem sabemos que há muitos modos de dizer. José Eduardo Agualusa assinalou-nos que se diz esperança, desde a forma brusca à expressão suave, compassada e plena de espera. E se falamos de língua, lembremo-nos da palavra saudade: «Saudade é mais que memória: é um arquivo frio a que a saudade dá depois os vários matizes que transformam um catálogo de actos e factos numa história de pessoa» - dizia o António Alçada. E aí encontramos a melancolia, a nostalgia, a alegria, a tristeza, a desconfiança, o remorso, o egoísmo, a generosidade – afinal a lembrança e o desejo, e a ânsia de futuro. E lembremos que «em certas regiões da Malásia reza-se em português e diz-se saudade». E podemos ouvir Cesária Évora. Talvez o Padre Vieira tenha sabido libertar-se de uma saudade pretérita, tornando-a recordação e esperança, como chave da compreensão do tempo…

 

DIVERSIDADE DA LÍNGUA
Ao falar de língua portuguesa, chegamos à diversidade, uma vez que se trata de uma língua de várias culturas e sensibilidades. A hospitalidade e a cordialidade permitem que a cultura se torne mais rica na abertura, no dar e no receber. Em Cabo Verde fala-se de «morabeza», que é um modo espantoso de dizer disponibilidade do coração. E não há dúvidas: sempre que nos abrimos ganhamos. Por vezes, a resposta pronta ou o improviso leva-nos descurar a prevenção e a antecipação. Sérgio Buarque de Holanda, nas suas «Raízes do Brasil», fala do homem cordial, como Ribeiro do Couto, mas liga-o também à «frouxidão das instituições» e à «falta de coesão social», não pressupondo bondade, mas apenas comportamentos de aparência afectiva… De qualquer modo, a cordialidade manifesta-se num sentimento sagrado humano e singelo. «A nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo não nos é necessário» (diz-nos Sérgio Buarque).

 

QUEM SOMOS, DE FACTO?
Miguel Unamuno conta que, para Guerra Junqueiro, o Cristo espanhol «está sempre no seu papel trágico, nunca desce da cruz…», enquanto o Cristo português «anda por costas e prados e montanhas, brinca com a gente do povo, ri-se com eles, merenda, e de vez em quando, para assumir o seu papel, regressa por momentos à cruz». À parte o exagero, a verdade é que Sérgio Buarque dá o mesmo exemplo no Brasil, no Bom Jesus de Pirapora (S. Paulo), em que Cristo «desce do altar para sambar com o povo». E as festividades do Espírito Santo (dos Açores ao Brasil) têm a mesma cor de cordialidade. Unamuno (admirador sincero da nossa cultura) também afirmou, porém, ser Portugal um «povo suicida», sob o impacto dos exemplos de Antero de Quental e Manuel Laranjeira. O que estava em causa era a desproporção entre as tarefas realizáveis e os ideais. Perante dificuldades extremas, a doçura e a «meiguice» gerariam ferocidade e sentido suicida. Isso impressionou Unamuno. No fundo, diríamos hoje, faltaria aceitar a imperfeição de que Fernando Pessoa / Bernardo Soares fala(m): «Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos não dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda».

 

DE NOVO, PENSAR O MITO
Eduardo Lourenço tem estudado o papel do mito na cultura portuguesa, de modo lúcido e original. A polémica sobre o «reino cadaveroso», de António Sérgio, encarado como mito anti-mito, e uma leitura crítica e emancipadora dos mitos (na linha dos plantadores de «naus a haver») entronca nos sebastianismos e no mito renovado de Vieira e de Pessoa de um Quinto Império emancipador. No fundo, para o ensaísta de «Heterodoxia», o anti-sebastianismo pode alimentar um sebastianismo sentimentalista, a espera irracional de um “desejado”, se não houver sentido crítico (que Antero e a sua geração cultivaram com determinação). Importa, pois, compreender que o «sebastianismo» pode ser visto como um «avatar delirante», mas também como símbolo de uma história complexa, que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente. Insista-se: mais do que recusar o mito, impõe-se, assim, assumi-lo, percebê-lo, criticá-lo e partir dele para a emancipação. António Sérgio pôs o dedo na ferida ao situar no dilema fixação / transporte o ponto crucial perante que se encontra a história portuguesa. Como afirmar a língua e a cultura esquecendo-o? Sérgio e Cortesão viram bem o drama fundamental da nossa economia, incapaz de tirar lições da longa duração e da criação de fundamentos sólidos de acção e de eficiência. Hoje, como antes, o fundamental é saber como nos organizamos para criar riqueza. E voltemos ao «reino cadaveroso», para perceber que é o problema da educação, da cultura e da ciência que está presente – ligado à fragilidade das élites, ou seja, à fraqueza da capacidade de orientação da sociedade e da economia. Afinal, a primeira das preocupações da cultura portuguesa tem de se ligar à exigência da aprendizagem e à sua qualidade, à transmissão de saberes e à melhoria do conhecimento e da compreensão.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

A FALTA QUE NOS FAZ...

 

 

 

Por Guilherme d’Oliveira Martins

 

 

Recordo a amiga generosa, inteligente e determinada, mulher de ideias, de causas e de convicções, que conheci quando ambos entrámos na Faculdade de Direito de Lisboa (tínhamos 17 anos). Sempre encontrei nela uma especial atenção aos outros e à justiça, que, com o tempo, se foi acentuando – com abertura e afetuosidade. E a verdade é que se foram tornando evidentes convergências significativas quanto à necessidade de renovar as políticas sociais, de recusar a pura lógica do mercado, de combater a lógica de casino e de apontar para a diferenciação positiva, em nome da dignidade humana. Há muito pouco tempo (parece ontem, porque a doença foi rápida e fulminante), debatemos longamente a última encíclica do Papa Bento XVI «Caritas in Veritate» e voltámos a convergir, naturalmente, na recusa de uma lógica mercantilista. Por isso, empenhou-se, na fundação criada por Maria de Lourdes Pintasilgo, na missão exigente de fazer da justiça um ato permanente amoroso e emancipador. Daí a importância que dava a «cuidar o futuro», às «redes de proximidade» e aos «corpos intermédios», em termos atuais e modernos para responder à crise do Estado-providência, pela ação responsável do Estado e da Sociedade, com pessoas e comunidades concretas, no sentido da cidadania ativa e de uma Sociedade-providência. O seu percurso profissional fez-se assim de entusiasmo genuíno e de causas: o serviço público e a justiça na Maternidade Alfredo da Costa e na Misericórdia de Lisboa; o bem comum e a criatividade na cultura, no cinema; e a magistratura cívica na Camara Municipal de Lisboa, na Assembleia da República…

 

Quando ouvi a leitura das bem-aventuranças ou quando o Padre José Tolentino Mendonça recordou a serenidade com que ela (quase sem o deixar falar) lhe disse, há pouco, que «Deus ama quer os vivos quer os mortos», percebi que a experiência da fé só pode ser vivida, por cada pessoa de forma irrepetível, como sinal da graça de Deus, esse dom fantástico que permite ligar a razão e a esperança. Encontrámo-nos, em mil circunstâncias. Estou a ouvi-la chamar-me, com a sua voz inconfundível, a perguntar sobre as coisas mais diversas (e sabia muito bem ouvir). Na Rádio Renascença, no final dos anos noventa, encontrávamo-nos todas as semanas na «Prova dos Quatro», a debater o País e o mundo, com Maria João Avillez e João Amaral. Entre mim e ela eram mais as convergências que as divergências, por causa dos valores e das políticas sociais. O José Cutileiro lembrou e bem o Ruy Cinatti: «Eu fui criado à direita mas puxa-me o corpo para a esquerda e o que vejo por aí é o contrário». Outras vezes, em sua casa ou em A-dos-Negros, até desoras, com o Jaime e a família, discutíamos tudo acaloradamente (sem ponta de má língua) – a política, o serviço público, os políticos, as ideias. Uma vez, fez entrar nessas nossas conversas (para gáudio de todos) Nelida Piñon, personalidade fascinante de horizontes abertos e inteligência fulgurante. Foi um deslumbramento ouvi-la falar sobre a literatura e a vida. Não fazia sentido falar sem paixão sobre as coisas do mundo. As diferenças vinham naturalmente à tona, mas o essencial era a procura da dignidade. Os seus argumentos faziam sentido, eram convincentes, claros, e como fazem os mais sábios, era sempre capaz de se colocar no lugar do outro, enquanto antagonista de ideias. Essa qualidade extraordinária permitiu-lhe ligar o sentido prático do serviço e a solidez dos argumentos e dos projetos. Como S. Paulo, combateu o bom combate. Sentimo-lo intensamente. O exemplo é a principal lição. E o tempo cimentou a nossa amizade como uma relação de confiança e admiração. «O Senhor é meu Pastor, nada me falta» (Sl., 23, 1). Não me sai da memória o verso do Salmo que Maria José Nogueira Pinto escolheu para encerrar o belíssimo texto que escreveu pouco antes de nos deixar. Diz tudo de como era, e da falta que nos faz.       

 

 

 

Fotografia cedida pela Radio Renascença

 

A VIDA DOS LIVROS


de 11 a 17 de Julho 2011


 

«Peregrinação às Fontes» de Lanza del Vasto (Edições Sempre em Pé, 2010) é um clássico da espiritualidade e das viagens. A belíssima tradução agora publicada em Portugal da autoria de Helena Langrouva, tornou-se possível graças a um grupo de amigos portugueses, que subscreveram esta edição. Significativamente, o editor dedica a publicação à memória de Manuela Bio Lourenço, que animou, desde os anos setenta até à sua morte (1998), a difusão do conhecimento sobre o pensamento e obra de Lanza del Vasto. De facto, Manuela Lourenço, casada com M.S. Lourenço, «animou em Sintra, com representação noutros pontos do país, um Grupo de Amigos da Arca».

 

 


 

QUEM É LANZA DEL VASTO?
Lanza del Vasto nasceu em 1901, no Sul da Itália, filho de mãe belga e de pai siciliano. Fez estudos clássicos em Paris e filosóficos em Pisa, dedicando-se ainda à poesia, à pintura e à música. Em 1936 decidiu partir para a Índia em peregrinação, facto que constitui motivo para esta obra. O ponto alto desta viagem é o encontro com Gandhi (antes da ida ao Ganges), e a descrição desse momento é um dos aspectos mais fortes deste livro. «Já desponta o clarão da aurora. O nosso caminho é ainda pouco firme, nos campos escurecidos. Encontramos um grupo de discípulos que voltam de lá: saudamo-los com as mãos juntas sobre a boca fechada. O Mahatma já falou com eles. Somos os últimos a chegar». Pode dizer-se que esse apelo e esse encontro mudaram a existência de Lanza del Vasto. E é emocionante lermos a descrição desse homem de excepção, que um jovem europeu do sul desejava conhecer: «Um velhinho seminu está sentado no chão, diante da entrada debaixo do telhado de colmo que forma o alpendre: é ele. Faz-me um sinal – sim, a mim -, senta-me ao lado dele e sorri-me. Começa a falar – só fala de mim – perguntando quem sou, o que faço, o que desejo. E eu descubro imediatamente que não sou nada, nunca fiz nada, não desejo nada senão ficar ali à sombra dele». De regresso ao velho continente, não esquece a mensagem espiritual que Gandhi lhe transmitiu, o apelo recebido nas fontes e na experiência indiana. O método da não-violência e a desobediência civil tornam-se o seu próprio programa de acção. Casa em 1948 com Simone Gebelin (Chanterelle) (na foto) e lança as bases de uma comunidade, L’Arche, que visa a defesa da Paz, a denúncia do perigo nuclear e a protecção da natureza. Em 1972, manifesta-se contra a extensão do campo militar de Larzac, numa acção de grande projecção mediática. Em 1978 e 1979 vem a Portugal onde profere conferências, que constituem um sucesso. Idealismo, realismo, vontade, humanismo eram características do pensamento do autor – baseado no conceito hindu e gandhiano de «satyagraha», no sentido de força da verdade e de adesão à verdade. António Alçada Baptista visitou-o, relatando essa experiência no seu livro de crónicas «O Tempo nas Palavras». «Conversámos muito. Eu, a olhar para aqueles setenta e dois anos secos, limpos, serenos, e para aquele seu extraordinário olhar azul de amor e de paz». Em 1981, faleceria na sua comunidade, deixando muitos discípulos, que têm a «Peregrinação às Fontes» como um guia marcante. Não se trata de um conjunto de conselhos, mas do relato de uma caminhada – e, como lembra a tradutora: «o peregrino tem o objectivo de se purificar, de se deixar transformar interiormente, de encontrar ou reencontrar um sentido para a vida». Lanza del Vasto disse: «Tornei-me um peregrino propriamente dito, ou seja, alguém que tem uma finalidade e vai a algum sítio para se santificar, para corrigir a sua vida». O sentido fundamental desta obra é esse mesmo – pelo que o acto de peregrinar funciona em si mesmo como um acto libertador que conduz «ao encontrar o encanto de ser pobre por se viver do essencial, o gosto de se desprender, de se descentrar, de aprender o essencial para a paz» (prefácio).

 

TOMAR CONSCIÊNCIA, CAMINHANDO
Caminhar e perceber que precisamos de ir ao encontro do Outro, que é afinal a outra metade de nós mesmos – eis a chave de qualquer peregrinação. O livro foi escrito pelo autor de 1936 a 1938, datando a primeira edição do original francês de 1943. O percurso é fascinante. Tudo começa em Ceilão (Sri Lanka, a nossa Taprobana), onde se sente o espanto do recém-chegado. «Aqui está aquele que acaba de desembarcar sozinho, branco, envergonhado, desamparado, perseguido pelos que vendem, pelos que prometem, pelos que imploram, pelos que querem levá-lo ao templo de Buda ou a um prostíbulo». Depois, já no subcontinente, é Madurai que acolhe o viajante. É aí que encontra um brâmane ocioso com quem dialoga abundantemente sobre o sentido das tradições hindus e dos seus símbolos e mistérios. «O divino Ganesh é o patrono dos homens de espírito, dos que não formulam sobre as aparências juízos grosseiros. O seu pequeno olho é uma jóia de malícia e de crítica. A poderosa tromba insufla o saber aos poetas e pensadores». Em Srirangam o caminhante continua a descobrir os segredos da religião hindu e o seu carácter sincrético. E Lanza del Vasto, leitor atento de Santo Agostinho e seguro conhecedor da teologia cristã, clarifica aquilo a que assiste: «Quanto à associação de Brama, Xiva e Vixnu, a que no Ocidente chamam a “Trindade Hindu”, ao passo que os hindus lhe chamam mais propriamente “Tripla Forma”, não tem nada em comum com a Santíssima Trindade do dogma católico». E o pensador acrescenta: «os três deuses tanto servem de forma uns para os outros, como servem os três de forma de Deus escondido que não tem forma». E, para explicar como a verdade habita o interior do homem, tenta compreender aquele monge hindu «dispensado de qualquer obrigação mundana e das práticas do culto», que «fixa o seu pensamento numa imagem de Deus único, e, quando chega a dar vida a essa imagem, rejeita-a para se fixar ele próprio no próprio Deus, Deus sem limite e sem imagem, absolutamente interior, absolutamente uno».

 

FINALMENTE GANDHI
Depois, em Wardha, Lanza del Vasto encontra, finalmente, Gandhi, com quem está três meses. O momento é decisivo. Estamos no coração do livro. «O meu amor à verdade absoluta, foi ele que me ensinou a beleza do compromisso». A partir de agora Lanza del Vasto passa a designar-se Shantidas, que quer dizer, «servidor da paz». E segue os ensinamentos do Mestre sobre a necessidade de desenvolver um trabalho manual e de pôr em prática os exercícios de domínio de si. Para além do trabalho intelectual, é fundamental o uso das mãos. «Sim, o trabalho das mãos é a aprendizagem da honestidade. A honestidade é uma certa igualdade que se estabelece entre o que se toma e o que se dá. Ninguém está dispensado do trabalho manual». Gandhi usa o seu pequeno tear para tecer a sua túnica. Afinal, «a máquina encadeia e a mão liberta». Esse tempo é libertador. Lanza percebe que só aquele conhecimento próximo lhe permitiu a compreensão melhor da importância do diálogo das pessoas, das culturas e das religiões. Após essa experiência inolvidável, parte em direcção às fontes do Ganges. Tratava-se de ir até ao berço das civilizações indo-europeias. «A descida precipitada leva às fontes do Ganges. A largura do rio reduziu-se a metade desde Rishikesh. Em contrapartida o seu rugido dobrou. A cor perturbou-se por causa da fusão da neve que marca este mês mais quente do ano. A margem encaixada crepita toda de cactáceas e de insectos. Borboletas grandes como a mão e pássaros de diversas cores respondem ao calor do sol. De todas as partes erguem-se encostas rochosas e arborizadas: perdeu-se por muito tempo a vista dos cumes nevados. A tempestade que pesou todo o dia, à noite, tendo rompido os seus apoios, rebenta». Ao lermos o relato de Lanza, percebemos que essa viagem alterou profundamente a sua relação com o Outro e abriu caminho ao reconhecimento da importância fundamental do diálogo entre religiões. O projecto da Arca nasce do apelo que recebe nas fontes do Ganges. Pode dizer-se que Lanza del Vasto veio diferente, depois de ter encontrado o que procurava… E o relato é apaixonante! 

 

Guilherme d'Oliveira Martins


 

Oiça aqui as minhas sugestões na Renascença

MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO (1952 - 2011)

"A melhor homenagem que podemos fazer a Maria José Nogueira Pinto é publicar o seu último texto, autêntica mensagem testamentária. Aqui vemos a coragem, a determinação, a inteligência e a sabedoria desta cidadã exemplar e amiga do coração." Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

Nada me faltará

por MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO

 

 

 

 

Acho que descobri a política - como amor da cidade e do seu bem - em casa. Nasci numa família com convicções políticas, com sentido do amor e do serviço de Deus e da Pátria. O meu Avô, Eduardo Pinto da Cunha, adolescente, foi combatente monárquico e depois emigrado, com a família, por causa disso. O meu Pai, Luís, era um patriota que adorava a África portuguesa e aí passava as férias a visitar os filiados do LAG. A minha Mãe, Maria José, lia-nos a mim e às minhas irmãs a Mensagem de Pessoa, quando eu tinha sete anos. A minha Tia e madrinha, a Tia Mimi, quando a guerra de África começou, ofereceu-se para acompanhar pelos sítios mais recônditos de Angola, em teco-tecos, os jornalistas estrangeiros. Aprendi, desde cedo, o dever de não ignorar o que via, ouvia e lia.

 

Aos dezassete anos, no primeiro ano da Faculdade, furei uma greve associativa. Fi-lo mais por rebeldia contra uma ordem imposta arbitrariamente (mesmo que alternativa) que por qualquer outra coisa. Foi por isso que conheci o Jaime e mudámos as nossas vidas, ficando sempre juntos. Fizemos desde então uma família, com os nossos filhos - o Eduardo, a Catarina, a Teresinha - e com os filhos deles. Há quase quarenta anos.

 

Procurei, procurámos, sempre viver de acordo com os princípios que tinham a ver com valores ditos tradicionais - Deus e a Pátria -, mas também com a justiça e com a solidariedade em que sempre acreditei e acredito. Tenho tentado deles dar testemunho na vida política e no serviço público. Sem transigências, sem abdicações, sem meter no bolso ideias e convicções.

 

Convicções que partem de uma fé profunda no amor de Cristo, que sempre nos diz - como repetiu João Paulo II - "não tenhais medo". Graças a Deus nunca tive medo. Nem das fugas, nem dos exílios, nem da perseguição, nem da incerteza. Nem da vida, nem na morte. Suportei as rodas baixas da fortuna, partilhei a humilhação da diáspora dos portugueses de África, conheci o exílio no Brasil e em Espanha. Aprendi a levar a pátria na sola dos sapatos.

 

Como no salmo, o Senhor foi sempre o meu pastor e por isso nada me faltou -mesmo quando faltava tudo.

 

Regressada a Portugal, concluí o meu curso e iniciei uma actividade profissional em que procurei sempre servir o Estado e a comunidade com lealdade e com coerência.

 

Gostei de trabalhar no serviço público, quer em funções de aconselhamento ou assessoria quer como responsável de grandes organizações. Procurei fazer o melhor pelas instituições e pelos que nelas trabalhavam, cuidando dos que por elas eram assistidos. Nunca critérios do sectarismo político moveram ou influenciaram os meus juízos na escolha de colaboradores ou na sua avaliação.

Combatendo ideias e políticas que considerei erradas ou nocivas para o bem comum, sempre respeitei, como pessoas, os seus defensores por convicção, os meus adversários.

 

A política activa, partidária, também foi importante para mim. Vivi--a com racionalidade, mas também com emoção e até com paixão. Tentei subordiná-la a valores e crenças superiores. E seguir regras éticas também nos meios. Fui deputada, líder parlamentar e vereadora por Lisboa pelo CDS-PP, e depois eleita por duas vezes deputada independente nas listas do PSD.

 

Também aqui servi o melhor que soube e pude. Bati-me por causas cívicas, umas vitoriosas, outras derrotadas, desde a defesa da unidade do país contra regionalismos centrífugos, até à defesa da vida e dos mais fracos entre os fracos. Foi em nome deles e das causas em que acredito que, além do combate político directo na representação popular, intervim com regularidade na televisão, rádio, jornais, como aqui no DN.

 

Nas fraquezas e limites da condição humana, tentei travar esse bom combate de que fala o apóstolo Paulo. E guardei a Fé.

 

Tem sido bom viver estes tempos felizes e difíceis, porque uma vida boa não é uma boa vida. Estou agora num combate mais pessoal, contra um inimigo subtil, silencioso, traiçoeiro. Neste combate conto com a ciência dos homens e com a graça de Deus, Pai de nós todos, para não ter medo. E também com a família e com os amigos. Esperando o pior, mas confiando no melhor.

 

Seja qual for o desfecho, como o Senhor é meu pastor, nada me faltará.

 

 

 

 

 

in Diário de Notícias | 07 de Julho de 2011

 

 

A VIDA DOS LIVROS


de 4 a 10 de Julho 2011

 


O brasileiro Luiz Ruffato reuniu uma curiosíssima antologia de Fernando Pessoa intitulada «Quando fui Outro» (Alfaguara, 2010). Sobre essa reunião Inês Pedrosa escreveu: «Ruffato não se deixou intimidar por aparências e enredos: foi directamente à essência da voz e da dor de Pessoa». Tem toda a razão. Mas, se hoje recordamos esta curiosíssima antologia, temos de lembrar ainda «Pessoa Revisitado» de Eduardo Lourenço (Gradiva, 2000), uma obra muitas vezes incompreendida, mas sem dúvidas um guia fundamental para acompanhar o percurso inesgotável de Pessoa.

 


 

PESSOA, SÍMBOLO DA CULTURA PORTUGUESA
Fernando Pessoa tornou-se um autêntico símbolo da cultura portuguesa. E, como se sabe, ao contrário do «diábolo», que divide, na etimologia grega, o «símbolo» é o que une. Em virtude da riqueza e mistério dos heterónimos é sempre possível descobrir um lado desconhecido do célebre poeta, que se espraiou com toda a pujança no «Livro do Desassossego» (que há bem pouco tempo João Botelho soube tão bem traduzir em imagens). Mas o fundamental é dizer que hoje em cada fragmento da multifacetada obra pessoana encontramos um pouco de nós mesmos. E é indubitável que Lisboa se tornou nos últimos anos uma cidade marcada pela indelével presença de Fernando Pessoa, graças à inesperada riqueza da famosa arca, donde saíram verdadeiras preciosidades de talento e de sensibilidade, mas sobretudo pelo mimetismo revelado pelo poeta em relação à nossa personalidade. E o certo é que «O Ano da Morte de Ricardo Reis» de José Saramago foi um modo de somar notoriedade à excelência mítica de Pessoa. E assim apresentou um Pessoa «único, uno, íntegro», o que é audacioso, mas também enriqueceu a nossa leitura do poeta. E, de um lado e do outro do Atlântico, entre alegrias e melancolias, sentimos como Fernando Pessoa se tornou representação de uma cultura portuguesa moderna – sem esquecer as raízes antigas. «Ouso dizer (afirma Ruffato) que “Quando fui Outro” tem essa pretensão: espiar o homem em sua vida verdadeira, “que é a que sonhamos na infância, / E que continuamos sonhando adultos, num substrato de névoa”». E deste modo o «desassossego» (“romance sem acção”) torna-se «simbiose entre vida e arte, resumida numa frase que é um completo programa estético: “Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real”». E é esta diversidade, este entrecruzar de caminhos e influências, que nos conduz ao «melting-pot» que culturalmente somos no mundo das línguas e culturas da língua portuguesa. Por isso, Fernando Pessoa atrai o entusiasmo de tantos (dentro e fora) como símbolo deste lugar - «Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -, / Transeunte inútil de ti e de mim, / Estrangeiro aqui como em toda a parte, / Casual na vida como na alma, / Fantasma a errar em salas de recordações, / Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem / No castelo maldito de ter que viver…».

 

CONTRIBUTO PARA A NOSSA IDENTIDADE
Muito se tem dito sobre a nossa identidade e o nosso carácter de portugueses, e a verdade é que é difícil resumir o que somos (melancólicos, saudosistas, pouco previdentes, hospitaleiros, afáveis…) – cabendo a Pessoa ser intérprete da heterogeneidade ou da «maravilhosa imperfeição» de que nos fala Eduardo Lourenço, no regresso de um povo ao cais de partida, depois da viagem à volta do mundo. E essa interpretação vai para além das aparências, chegando ao intrincado dos mitos. «Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém na humanidade». Pessoa di-lo e Eduardo Lourenço analisa-o – para além da construção redutora de uma vida idealizada. Ouvem-se os ecos: «Ficção verdadeira é só, e unicamente, Caeiro. É ele o “mito que é tudo”, a solução ideal e por ideal impossível». Isto afirma-o o ensaísta em «Pessoa Revisitado», o que é revelador da exigência de uma interpretação complexa – do mesmo modo que o é dizer: «A sua existência só por si significa que o nosso corte com a palavra que o ser pronuncia – verdade do ser e ser da verdade – não é incomensurável. Encontrar maneira de conjugar a palavra dolorosamente fechada da consciência solitária e a palavra silenciosa e aberta da realidade constitui o escopo único da sua aventura. A sua poesia é o lugar do diálogo entre ambos». Consciência e realidade, eis o confronto essencial que se estabelece. Mitos e factos encontram-se e desencontram-se, sendo que só através dessas duas facetas poderemos compreender o que nos rodeia – e quem, afinal, somos. Há assim os planos mítico-fictício e fictício-temporal, povoados pelos heterónimos, mas há ainda «o lugar geométrico da ambiguidade e da oscilação» que só o ortónimo Fernando Pessoa, ele mesmo, pode ocupar. Afinal, é o Portugal de que fala Miguel Real, ao visitar o pensamento do último século (sem esquecer que mergulha as suas raízes nas mais antigas tentativas para nos descobrirmos), que está aqui presente e que vai de uma leitura providencialista a uma lógica racional – por entre ambiguidades e incertezas. Portugal não pode, contudo, comportar explicações unívocas e simplificadoras, nem de eleição nem de exclusão, precisa, sim, da força unificadora da vontade que compreenda e supere o mito. Mais do que recusar o mito, impõe-se assumi-lo, percebê-lo, criticá-lo e partir dele para a emancipação.

 

A IMPORTÂNCIA DO DESASSOSSEGO
Lembremo-nos, por um momento, de Bernardo Soares: «Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos não dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar se viessem na tarde». Partamos da imperfeição e recusemos o fatalismo. No deambular pessoano encontramos a vida, sob o olhar intenso do visionário. «Quem me dera que eu fosse o pó da estrada. / E que os pés dos pobres me estivessem pisando». Rua do Arsenal, Rua da Alfândega, Cesário Verde, Lisboa revisitada, o espelho mágico partido, a passagem das horas, cartas a Ophélia, chuva oblíqua… A cada passo sente-se o tempo, diverso, heterogéneo, incerto. «Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados». E há ainda a nostalgia do tempo que não regressa - «No tempo em que festejavam o dia dos meus anos / Eu era feliz e ninguém estava morto» - ou a verdadeira invocação das raízes - «Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse…». De que falamos, afinal? Numa noção universalista e aberta do ser e da verdade. Pessoa vestiu em roupagens novas o que vem detrás de ligação entre as fontes primordiais e a acção. Ruffato compreendeu-o bem. E Eduardo Lourenço diz, no fecho do seu imprescindível «Pessoa revisitado» (tão tardiamente percebido), que o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

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