Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
"Maria Lúcia Lepecki era um elo natural no mundo das culturas da língua portuguesa. Era uma presença inconfundível – pela doçura da sua palavra e pela força das suas ideias. Conhecia a literatura portuguesa como os seus próprios dedos e há muito que nos ia dando pistas novas de reflexão e de investigação sobre os nossos escritores e a sua obra. O tempo dirá como foi importante termos esta lufada de ar fresco que foi a possibilidade de contarmos com a sua arte de viver e a argúcia da sua inteligência. Maria Lúcia foi sempre mais do que uma académica – foi a universitária inteligente que trouxe para a investigação da literatura o gosto de viver e a alegria de abrir novos horizontes no diálogo entre as letras e o mundo. Camilo Castelo Branco pôde ser entendido a uma nova luz, mercê da investigação de Maria Lúcia. E tornou-se mais nosso contemporâneo, o que nunca tinha deixado de ser! Que melhor homenagem lhe poderá ser feita? O Centro Nacional de Cultura homenageia sentidamente a memória viva e a perenidade da obra de Maria Lúcia Lepecki."
O escultor José Rodrigues tem uma obra vastíssima e inconfundível. Uma vez que aqui falamos de livros, escolhemos «O Cântico dos Cânticos de Salomão», versão a partir do grego de Albano Martins, com dez litografias originais do escultor, gravadas em pedra de Baviera. É uma obra única, editada pela Cooperativa Árvore por ocasião dos seus 25 anos (Porto, 1988), integrada na colecção «Moinho de Vento», dirigida com a qualidade inconfundível do nosso primeiro editor, José da Cruz Santos. A obra é raríssima e está há muito esgotada, sendo disputada nos alfarrabistas. Hoje merece uma referência muito especial, ao homenagearmos o escultor e o amigo, e ao invocarmos também a Cooperativa Árvore e o talento e a sensibilidade do editor extraordinário da Oiro do Dia ou da Modo de Ler..
Foto: Liliana Lopes
UM RAIO DE LUZ NO GRANITO «A cidade assemelha-se a um bloco de granito onde corre sempre um raio de luz». Não conheço melhor definição desta magnífica cidade do Porto do que a de José Rodrigues, o escultor, o artista, o intérprete extraordinário deste lugar único. E hoje como símbolo do Porto temos o cubo da Ribeira, que se tornou uma referência adoptada como sua pela gente da cidade. «Pensei numa coisa diferente dos temas a que sempre recorria – estátuas de mulheres nuas, bombeiros ou cavalos. E por que não um cubo com um jacto de água de forma a dar a ideia de que o pequeno jacto pudesse pôr em suspenso aquelas duas toneladas de bronze». E aqui está o símbolo da vontade, da inteireza, da determinação de uma cidade invicta.
José Rodrigues é um amigo que muito admiro. Mais do que o escultor, o desenhador e o gravador talentoso, que há muito conheço, é sobretudo um educador. Encontrei-o sempre nessa atitude sábia e aberta do artista que aprende. De facto, é essa inesgotável qualidade que cada vez mais lhe admiro. O autêntico educador é aquele que faz da relação humana um permanente acto de troca. E que é a aprendizagem senão isso mesmo? Sendo muito generoso, encontrei-o muitas vezes na dramática situação de ter sido traído na sua fantástica capacidade de dar tudo. Em tantas circunstâncias, percebi bem o significado do dito popular «por bem fazer mal haver». Mas, apesar das dificuldades e vicissitudes, vi sempre José Rodrigues continuar no seu caminho de coerência e de genuína entrega à arte e aos outros. Para ele não faz sentido o conhecimento e a compreensão se não forem partilhados, se não houver dom e troca. Por isso, admiro nele, para além do talento, essa capacidade sábia de fazer do acto de aprender um movimento biunívoco em que a humanidade e a dignidade se entregam e se realizam.
O MESTRE DA ESCULTURA É vê-lo a dialogar com os jovens, a transmitir os seus saberes, sempre com a qualidade de ouvir e de verificar as dificuldades e as virtudes. O seu olhar vivo, atento, perscrutador, como o de uma águia das montanhas que apreende a beleza natural, mas que entende a um tempo o conjunto e os pormenores, demonstra essa capacidade única de perceber e de transmitir, de apreender e de responder, de olhar e de ver. Um escultor de excepção, como José Rodrigues, aprende as formas, os espaços, as relações, as proporções, os movimentos, a tensão da vida, a agonia, o êxtase, a coerência e a contradição. Nele, de facto, sente-se a vida como combate e como ligação íntima à terra – com um especial culto do feminino e da mátria. E que é a escultura, desde o barro ao bronze, senão essa capacidade sagrada de criar e de construir, como Deus faz no livro do Génesis? O escultor reedita esse movimento fundador de pegar no barro e de lhe dar vida. O olhar vivo e desperto liga-se ao dom divino de moldar a terra e de lhe dar um sopro de alma.
A VIDA COMO FORMA DE POESIA José Rodrigues nasceu em Luanda, vem de África, do lugar das origens da humanidade, e é nortenho com os pés assentes na terra, no húmus, e com a imaginação nas nuvens (no melhor sentido da imagem). Tornou-se, como se disse, um dos símbolos da cidade do Porto, a que me ligam raízes familiares antigas, e nunca esquecerei nas Águas Férreas (em casa que foi da minha família e hoje é do Meu Amigo Conselheiro Santos Serra) a homenagem nacional a Oliveira Martins, em 1994, cuja memória ficou perpetuada por uma obra sua, baseada na ideia democrática por excelência da justiça para todos. E, de facto, é esse amor ao futuro, construído pela vontade autónoma e solidária das pessoas, que constitui o ideário de José Rodrigues, em cuja obra se sente amiúde a influência de Antero de Quental. Diz o escultor: «A vida tem de ser uma forma de poesia, senão tornámo-nos uma espécie de matraquilhos». Insisto em que admiro sempre, e antes de tudo, o educador e que é ele que hoje desejo homenagear. Como um dos fundadores da Cooperativa Árvore e como um dos promotores da Bienal de Vila Nova de Cerveira demonstrou, com vontade firme e solidária, que o artista não pode viver fora da relação com os outros. É a troca, o exemplo e a aprendizagem que têm de estar sempre presentes – e isso é especialmente importante para o escultor.
«OS QUATRO VINTES» E como poderemos entender a cultura portuguesa contemporânea, numa encruzilhada ente herança e inovação, se não lembrarmos o diálogo do escultor com os seus colegas artistas, como «Os Quatro Vintes», em que José Rodrigues, Armando Alves, Ângelo de Sousa e Jorge Pinheiro representam o impulso no sentido de um renascimento cultural, em que ciclicamente a cidade do Porto é tão pródiga? De facto, para José Rodrigues a arte não tem sentido sem uma intensa relação humana. Em cada diálogo que se estabelece entre pessoas comuns há um fluxo criador, que no caso dos artistas torna-se mais intenso e transformador. O projecto da Fábrica Social em Santo Ildefonso é a procura do sentido humaníssimo, que na cidade do Porto tem ainda mais significado, se nos lembrarmos do que Jaime Cortesão disse que é a única cidade-Estado da nossa cultura, o lugar de onde houve nome Portugal. E, sob o olhar do escultor-sábio, a cidade assemelha-se, cada vez mais, a um bloco de granito onde corre um raio de luz.