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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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JÚLIO RESENDE: O DESENHO COMO VIDA.

  

Foto Pedro Rios – JPN.

 

A sua biografia fala por si. Júlio Resende foi um dos mais prolíferos e ricos autores portugueses do século XX. Nasceu no Porto a 23 de Outubro de 1917. De 1930 a 1936, executa ilustrações e banda desenhada para jornais e publicações infantis, realizando cuidada aprendizagem do desenho e da pintura na Academia Silva Porto. Pode dizer-se que é um pioneiro da banda desenhada portuguesa, com seu irmão António, sendo uma indiscutível referência maior. A sua principal produção encontra-se em «O Papagaio» com Tic-Tac (1936) e em «O Primeiro de Janeiro» com Matulinho e Matulão (1942). Frequenta a Escola de Belas-Artes do Porto e é discípulo de Dórdio Gomes (1937). Participa em 1943 na organização do "Grupo dos Independentes" e realiza a primeira exposição individual no Salão Silva Porto. Exerce docência no ensino secundário nos anos quarenta, concluindo em 1945 o Curso na Escola de Belas-Artes com a pintura "Os Fantoches". Então visita o Museu do Prado, encontrando-se em Madrid com Vasquez Diaz. Obtém os prémios da Academia Nacional e "Armando de Bastos". Obtém em 1946 uma bolsa de estudo no estrangeiro do "Instituto Para a Alta Cultura". Realiza a primeira exposição em Lisboa. Em1947e 1948, estuda as técnicas de fresco e gravura na Escola de Belas-Artes de Paris. É discípulo de Duco de La Haix. Na Academia Grande Chaumière recebe lições de Othon Friesz. Frequenta o Museu do Louvre, onde procura inspirar-se nos grandes mestres. Visita os museus da Bélgica, Holanda, Inglaterra e Itália. Em 1949, encontramo-lo como Professor na pequena escola de cerâmica de Viana do Alentejo Tem contactos com o escritor Virgílio Ferreira e com os artistas Júlio e Charrua. Em Lisboa conhece Almada Negreiros e Eduardo Viana. Realiza uma primeira viagem à Noruega onde é hóspede de Oddvard Straume. Permanece em Orstavik. No ano de 1951 fixa-se no Porto, mantendo atividade docente no ensino secundário. A gente do mar passa a constituir tema dominante da pintura. Recebe o Prémio Especial na Bienal de S. Paulo. Em 1952 obtém o prémio na 7ª Exposição Contemporânea dos Artistas do Norte. Permanece um mês na Noruega. Executa o fresco da Escola Gomes Teixeira no Porto. Investiga o desenho infantil. Em 1953, cria as "Missões Internacionais de Arte", a primeira das quais ocorre em Trás-os-Montes. Leciona na Escola Secundária da Póvoa de Varzim (1954). No ano seguinte, promove a 2ª "Missão Internacional de Arte", na Póvoa de Varzim. Em 1956, integra a equipa com o Arq. João Andersen (irmão de Sophia de Mello Breyner) para o projeto "Mar Novo" para Sagres que obtém o Primeiro Prémio em concurso internacional. Apesar do prémio o regime político não executa o extraordinário monumento destinado a Sagres. Sophia escreverá o magnífico livro de poemas com o título “Mar Novo”, que não é mais do que uma expressão riquíssima de um grito de revolta perante um crime de lesa-cultura. A obra de Júlio Resende neste projeto é emblemática e constitui referência fundamental da história da arte portuguesa. O êxito do pintor prossegue, obtendo o Prémio "Artistas de Hoje", Lisboa e concluindo o curso de Ciências Pedagógicas na Universidade de Coimbra. Em 1957, organiza a exposição "4 Artistas Portugueses" em Oslo e Helsínquia. Obtém o 2º prémio de Pintura da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. No ano de 1958 executa um painel para a "Exposição Universal de Bruxelas". Ganha o prémio "Columbano" da Câmara Municipal de Almada, promove a 3ª "Missão Internacional de Arte" na cidade de Évora. É convidado para a docência na Escola de Belas-Artes do Porto. Executa vários painéis de azulejo para a estação de fronteira de Vilar Formoso. Tem a Menção Honrosa na 5ª Bienal de S. Paulo. Cria dois painéis cerâmicos para o Hospital de S. João no Porto. Executa oito painéis de azulejo para a pousada de Miranda do Douro. Alcança em 1960 o prémio "Diogo de Macedo" no Salão de Arte Moderna do SNBA em Lisboa. Realiza o painel cerâmico para a Pousada de Bragança. Presta provas públicas, em 1962, com distinção na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Realiza o mural afresco no Palácio de Justiça do Porto, executa cinco painéis cerâmicos para obras de arquitectura. Cria cenários e figurinos para o "Auto da Índia" de Gil Vicente, encenação de Carlos Avilez para o TEP, Porto (1965). Realiza um fresco para o Tribunal de Justiça em Anadia (1966). Cria os cenários e figurinos para "Fedra" de Racine, encenação de Carlos Avilez para o Teatro Experimental de Cascais (1967). Ilustra "Aparição" de Virgílio Ferreira. Realiza cenário e figurinos para o bailado "Judas", coreografia de Águeda Sena para a Fundação Calouste Gulbenkian. Ganha o prémio "Artes Gráficas" na Bienal de Artes de S. Paulo, com as ilustrações do romance "Aparição" (1969). Cria cenários e figurinos para o "Auto da Alma" de Gil Vicente no TEP, Porto. Realiza seis painéis em grés para o Palácio de Justiça de Lisboa. Orienta o visual estético do Espetáculo de Portugal na "Exposição Mundial de Osaka" (1970). Cria cenários e figurinos para "Antígona" no Teatro Experimental de Cascais. Realiza a primeira viagem ao Brasil encontrando-se com Jorge Amado e Mário Cravo Filho. É nomeado Membro da Academia Real das Ciências, Letras e Belas-Artes Belgas, Bruxelas. Ilustra a obra de Fernando Namora "Retalhos da Vida de um Médico" (1973). Nova viagem ao Brasil. Recebe o grau de Oficial da Ordem de Santiago da Espada. Em 1974, exerce funções de gestão na ESBAP, a que se dedicará a tempo inteiro nos anos seguintes. Realiza cenário para o filme "Cântico Final" de Manuel Guimarães, adaptação do romance de Virgílio Ferreira. Em 1977 empreende uma memorável viagem ao Nordeste Brasileiro, encontrando-se com os artistas como Sérgio Lemos e Francisco Brennand. Em 1978 cria os cenários e figurinos para o bailado "Canto de Amor e Morte" coreografia de Patrick Hurde, inspirado na obra musical de Fernando Lopes Graça para a Companhia Nacional de Bailado. Entretanto, realiza uma importante visita de estudo às Faculdades de Belas-Artes de Espanha. Em 1981, executa os vitrais para a Igreja Nª Sª da Boavista, Porto. Viaja até a Pernambuco e Salvador da Bahia. Profere uma significativa palestra na Fundação Joaquim Nabuco no Recife. Recebe as insígnias de Comendador de "Mérito Civil de Espanha" atribuídas pelo Rei de Espanha (1982). Em1984 realiza o célebre painel mural "Ribeira Negra". E em 1985 é-lhe atribuído o Prémio AICA. Executa em grés o grande mural "Ribeira Negra" no Porto (1986). Em 1987, profere a última lição na ESBAP. Em 1989 tem lugar a Exposição retrospetiva na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Viaja em 1992 a S. Vicente e Stº Antão (Cabo Verde). Cria em 1993 o "Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende". Realiza em 1994 e 1995 painéis cerâmicos para a estação do Metropolitano de Lisboa, "Sete Rios". Em 1996 visita a Goa e no ano seguinte Santiago e Fogo (Cabo-Verde). Recebe a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Visita em 1999 a Ilha de Moçambique. O Centro Nacional de Cultura contou sempre com Júlio Resende entre os seus amigos especiais, desde os anos cinquenta. Ilustrador de Sophia de Mello Breyner em «O Rapaz de Bronze» e «Noite de Natal» foi um raro intérprete da arte em todas as suas dimensões. Que melhor homenagem poderemos fazer-lhe, se não lembrar a sua humanidade e o seu talento!

A VIDA DOS LIVROS


de 26 de Setembro a 2 de Outubro 2011



Ao visitar Malaca e ao deambular pela Malásia e Indonésia não pudemos deixar de recordar Emílio Salgari (1862-1911), o autor das aventuras de Sandokan, na ilha mítica de Mompracem. O autor italiano notabilizou-se pela escrita fantasiosa de aventuras ocorridas no Bornéu, sendo uma referência indiscutível no desenvolvimento de um imaginário orientalista que dominou as gerações adolescentes da primeira metade do século XX. É curioso que o escritor tenha sentido necessidade de nomear um português para ser o braço direito do herói. Lembramo-nos bem da invocação heroica de António Alçada Baptista em “Peregrinação Interior” da memória dessas leituras juvenis, nas edições da Livraria Romano Torres. Devemos referir que acabam de ser descobertas pranchas de BD inéditas de Hugo Pratt, o autor de Corto Maltese, relativas às aventuras de Sandokan.

 


 

GUARDIÃ DO ESTREITO

Malaca é a guardiã do estreito e encruzilhada de muitas culturas e influências (hindus, chineses, malaios e javaneses). Chegados aqui, contando com a erudição e o bom humor de Luís Filipe Thomaz, tratamos de fazer uma imersão total no clima húmido e quente e na história. A cidade é relativamente recente, data de 1403, começou por ser uma pequena povoação de pescadores e corsários e esteve sob influência portuguesa de 1511 a 1641. A imigração chinesa é intensa e muito evidente, dividindo-se entre uma vaga mais antiga, os babas e as nyonyas, do início do século XV, constituída por letrados e comerciantes, e uma segunda, mais numerosa, correspondente ao período da guerra do ópio e da colonização britânica, no século XIX, que se dedicou à agricultura. A história de Malaca é muito rica e é marcada pela situação estratégica da cidade como porto de abrigo e como centro de comércio. O célebre navegador chinês Zheng He aqui estabeleceu importantes contactos que levariam o rajá de Malaca a declarar-se vassalo do Celeste Império, sacudindo o jugo de Sião. Quando Afonso de Albuquerque definiu este como um dos pontos cruciais do império português do Índico, fê-lo conhecedor do grande valor da cidade e das possibilidades que apresentava como placa giratória para o Extremo Oriente. Já Álvaro Velho, no seu Roteiro, e Gaspar da Índia falavam da importância de Malaca, tendo incumbido o rei D. Manuel D. Francisco de Almeida a tarefa de «assentar trato em Malaca» e de construir uma fortaleza na cidade. Mas só em 1509 a armada capitaneada por Diogo Lopes de Sequeira atinge Malaca, sendo primeiro bem recebida pelo Sultão, mas sofrendo depois a violenta oposição dos mercadores indianos do Guzerate. Afonso de Albuquerque delineará a tomada da cidade, reforçando a armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, especialmente enviada para o efeito. Chineses e hindus serão aliados objetivos dos portugueses, permitindo o domínio da cidade. Durante 130 anos os portugueses tornarão Malaca o grande centro do comércio e o principal nó da rede marítima. Após a ocupação holandesa, uma parte da população irá para Macau ou para outros destinos na atual Indonésia.

 

LEMBRAR AFONSO DE ALBUQUERQUE
A cidade atrai-nos pela história riquíssima e pelos contactos culturais e económicos que se estabeleceram aqui. O Museu Marítimo ostenta como seu verdadeiro símbolo a nau “Flor de la Mar”, a mais rica e poderosa do seu tempo, que naufragaria no final de 1511, com Afonso de Albuquerque a bordo. E falar de Afonso de Albuquerque é sempre referir a figura controversa que foi, com quem o rei D. Manuel tinha uma relação muito especial, até em virtude de ser um dos mais determinados apoiantes na defesa de um império de Estado, por contraponto à lógica da liberdade concedida aos navegadores para comerciarem, e ganharem assim influência e riqueza. Encontrámo-lo em Goa, em Ormuz e no Omã, nestas andanças do Centro Nacional de Cultura, agora descobrimo-lo num momento decisivo da sua ação, no ano seguinte a tomar Goa e antes de avançar para o Golfo Pérsico e o Mar Roxo. E sentimos, com nitidez, que as intrigas e as incompreensões de que será vítima têm sobretudo a ver com um grande debate que se desenvolve em torno de D. Manuel sobre a estratégia do Oriente, se o império do Estado se o domínio poliárquico dos mercadores. O certo é que Malaca é um ponto nevrálgico (que Albuquerque bem entendeu) para o comércio das especiarias, para a administração imperial e para a mobilização de pessoas… A qualidade da Casa del Rio, um dos mais recentes hotéis de Malaca, onde ficamos instalados, é assinalável. Uma delegação da nossa embaixada cultural teve uma longa reunião com o Ministro Chefe de Malaca e no dia seguinte avistámo-nos com o Governador do Estado. Há um grande interesse em aprofundar a cooperação luso-malaia, quer no domínio do património, uma vez que a zona histórica está classificada pela UNESCO, quer no campo económico. O Embaixador Jorge Torres Pereira acompanhou-nos sempre, o que permitiu uma ligação e uma distinção entre a sociedade civil e o Estado.

 

O BAIRRO PORTUGUÊS
A visita ao Bairro Português é sempre um motivo de especial de interesse em Malaca. Da antiga fortaleza de Afonso de Albuquerque - "A Famosa" - apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram no século XIX a destruição do edifício militar, que muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como está representado por Manuel Godinho de Erédia em 1604. Para nós, é emocionante a subida até à Igreja do Monte, sob o orago da Anunciação ou de São Paulo, onde São Francisco Xavier pregou e onde se encontra a pedra tumular de D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. As visitas sucedem-se. Interessa-nos reencontrar o papiar do século XVI, o kristang, a língua franca dos mercadores, que os missionários desenvolveram. Malaca acolheu-nos principescamente. O jantar no restaurante Papa Joe permitiu provarmos uma canja divinal e usufruirmos de pratos nos quais se sente o diálogo entre culturas. E, para coroar a expressão de uma amizade ancestral, ouvimos o português de antigas canções tradicionais por um grupo de elementos da comunidade de portugueses em Malaca. O papiar cristão, a língua franca do século XVI, não foi esquecido, apesar da distância e da história. A emoção liga-se ao entusiasmo e todos se envolvem na animação desta herança portuguesa vinda dos confins do tempo. Muitas vezes perguntamo-nos o que significa no mundo das culturas da língua portuguesa a cidade de Malaca. Não se trata de uma mera reminiscência vaga. É uma referência do património material e imaterial. É o encontro de uma pequena comunidade com a referência histórica que segue para Sul e Oriente, até Java, às Flores e a Timor, e ainda às Molucas e às Celebes. Eis por que razão Malaca não pode ser vista isoladamente. Daí a necessidade de aprofundarmos as relações culturais e económicas com a Malásia. O que está em causa é a perceção de que a história é dinâmica, não pode ficar apenas no passado, devendo projetar-se no presente e no futuro. E desta nossa passagem em Malaca fica a exigência de sermos mais atentos a esta referência da nossa identidade linguística e à comunidade de pessoas que a constitui. E uma vez que, como habitualmente, levamos connosco textos significativos – não pudemos deixar de invocar Fernão Mendes Pinto, em Malaca, sempre ele, mas também a alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não por ele, mas por Gastão Sequeira, um português que representa os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. Emílio Salgari deu-lhe originalmente o nome menos credível de Ianes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. E Mompracem, a ilha que Sandokan desejava ver livre do jugo de Sir James Brooke, era provavelmente Mangalum, nome derivado de Fernão de Magalhães, que aqui teria estado aquando da sua visita ao Sultão do Brunei…

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

 


de 12 a 18 de Setembro 2011

 

  

«José Bergamin et la France» é uma edição de Ivan López Cabello e Yves Roullière, da responsabilidade da Universidade de Paris-Ouest – Nanterre - la Défense (2008) e dá conta dos ecos franceses da vida e obra dessa personalidade fascinante que foi o grande poeta espanhol, diretor e fundador da revista Cruz y Raya, nascido em 1897 e falecido em 1983.

 

 

UMA VIDA PELA DIGNIDADE HUMANA

Estamos perante as Atas de uma jornada de estudo realizada em Nanterre (Paris) a 23 de Maio de 2008, seguidas de entrevistas, ou melhor, confidências de José Bergamin, recolhidas por André Camp.  Estas conversas foram registadas em Junho de 1965, com a duração total de 190 minutos, tendo sido difundidas em Novembro e Dezembro desse mesmo ano no Canal France-Culture. O título das entrevistas é algo perturbador - «Entretiens avec un Fantôme» - e decorre do facto de o poeta espanhol ter dado essa identificação quando André Camp lhe perguntou quem era. Bergamín respondeu de imediato que apenas poderias dizer que era um fantasmas, porque a nacionalidade que constava do documento de identificação passado pela prefeitura de polícia em França tinha a indicação de nacionalidade a determinar – relativamente a quem era um espanhol de raízes antigas, lutador incansável pela liberdade e pelas liberdades e sempre incómodo para com todos os poderes. Por isso, Jean-Marie Domenach falou da sua vocação trágica e no facto dessa condição se ligar à alegria. «O trágico, dizia Max Scheler, é uma estrutura essencial do universo. Bergamín, o Espanhol, vive-o naturalmente. O que é para nós figura abstrata, a representação, o sangue e a morte, Deus e o diabo – faz o tecido do seu discurso, o som da sua voz, o gosto da sua ironia. Ouvindo-o, apercebemo-nos de que se vive pouco e mal, porque a vida verdadeira tem lugar onde ele se instalou, nesse domínio em que o sonho e a realidade se misturam, e ganham cor mutuamente. Possui o dom de fazer ver a maravilha e o horror onde nós apenas tínhamos visto acontecimentos. Com ele, o símbolo entra nas coisas e nos homens, o espiritual toma posse da história, a poesia incorpora-se». E Domenach lembra essa alegria profunda vivida por Bergamín, sobretudo nos momentos mais difíceis e dramáticos: «Continuo a acreditar na dignidade humana e na superação humana do homem». Estamos, no fundo, perante um fantasma bem vivo, com um coração aberto para a compreensão da liberdade e dos outros. Nos diversos depoimentos reunidos nesta obra, sentimos na formação de José Bergamín a evolução de um homem de fronteira – não só no País Basco, entre San Sebastian e Biarritz, mas também entre as línguas espanhola e francesa, entre o catolicismo e o republicanismo, entre a tradição e a modernidade, entre a tragédia e a alegria, entre a violência e a candura. Não por acaso deu à sua revista o título emblemático de “Cruz e Raya”, simbolizado pelos sinais de soma (a cruz) e de subtracção (o traço), de afirmação e negação. E a ligação forte a Miguel de Unamuno leva-nos à compreensão do sentido trágico da vida, a partir dos acontecimentos quotidianos e da existência do dia a dia. Em 1936, quando deflagra a Guerra Civil, o poeta tem 40 anos e sente, como ninguém, o combate entre as duas Espanhas, entre irmãos inimigos, entre paixões contraditórias. É Bergamín quem encomenda a Picasso «Guernica», esse fantástico símbolo de uma ressurreição, que figurará na Exposição Universal de 1937. É ele ainda que se despede de Georges Bernanos quando este parte em Toulon para o Brasil, depois de denunciar «Os Grandes Cemitérios sob a Lua». É ele q            ue recita passagens da «Divina Comédia» de Dante, só tarde se apercebendo de que viveu essa viagem, numa ordem diferente da seguida pelo génio florentino – Paraíso, Inferno, Purgatório. Em Maio de 1939 parte de Paris para a Cidade do México, e viverá esse exílio dramaticamente, só com os seus filhos, agarrado à sua fé antiga e insubmisso.

 

UM PEREGRINO NA PÁTRIA

Quando voltou, quase vinte anos depois, sentiu-se «peregrino na sua pátria» - «Sentí, al sentir España de nuevo, en su tierra, en sui luz, en sui aire… como si ressuscitasse en ella; como si hubiese dejado de ser un fantasma». E deseja, intimamente, «morrer num lugar espanhol», o é ainda uma secreta esperança. Mas considera que o seu dever fundamental cumprir fiel e escrupulosamente o seu ministério literário. E que significava isso? Dizer a verdade e usar da liberdade. Ora, perante uma ditadura, como era o franquismo, não houve outra via diferente senão a de um novo exílio, que começa na Embaixada do Uruguai e continuará em Paris, de 1964 a 1970. Depois regressa, cultivando o paradoxo, através da política e da poesia. Com sua filha Teresa, alimentará a paixão pela causa de Euskadi, o Pais Basco, daí virão mil incompreensões. Sente uma profunda desilusão, um «desengaño» pelos novos tempos – considera-se agora um «pájaro sin pluma y sin nido» e escreve em 1982: «Fui peregrino en mi pátria / desde que nascí. / Y lo fui en todos los tempos / que en ella viví. / Lo sigo siendo, al estarme / ahora y aqui, / peregrino de una España / que ya no está en mí. / Y no quisiera morirme / aqui y ahora, / para no darle a mis huesos / tierra española». Sempre excessivo, sempre contraditório, preocupa-se sobretudo com a dignidade humana e com todos os combates para a tornarem realidade. E o certo é que ainda hoje, ao lermos e relermos Bergamín, percebemos que o excesso e o escândalo vinham-lhe da crença no amor e numa profunda esperança, que o fazia amar tanto a obra de Dante. Oiçamo-lo numa das entrevistas: «J’avais besoin de retrouver mon Espagne, e je l’ai effectivement retrouvée. Cette apparence un peu théâtrale, qui, évidemment, trouve sa raison d’être dans l’évolution du temps et de la société, en grande décalage avec le système politique, tout ça donnait à l’Espagne une physionomie nouvelle que, naturellement – pour moi qui suis toujours du côté de la vie - , j’aimais beaucoup. Malheureusement, ce renouvellement vital ne parvient pas à coïncider avec un  renouvellement intellectuel et culturel après vingt-cinq ans de cet ordre qu’on appelle la « paix » et qui est l’ordre de la paix des morts, la paix des grands cimetières sous la lune. Le côté spirituel de l’Espagne, de ce point de vue, a énormément baissé de niveau à mon avis. En même temps, le côté vital, un peu animal si vous voulez – j’irais jusqu’á dire « géologique » -, remonte à la surface et donne l’impression que l’Espagne va renaître d’un seul coup. Mais on ne sait si ça va se produire de façon plus ou moins évolutive ou plus ou moins catastrophique». Aqui temos um especial sentido profético, que poucos compreenderam, mas que o poeta sempre soube manter, com inteligência, conhecimento, determinação, e indómita esperança…

 

Guilherme d’Oliveira Martins

LÍDIA JORGE

              
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Lídia Jorge. A compreensão reside na continuada interpretação. 
De Teresa Vieira

 

Escolhi esta fotografia da Lídia Jorge já que para mim exprime uma cândida e conhecida sabedoria de interrogação, como quem perdoa à condição humana que nos desafia gritando três mil anos numa só voz, e nos faz correr num pranto de viajante escrita. E a isto tudo se vincula Lídia num só retrato. Num só enigma.

 

Acedo à amizade que partilhamos numa substancial eternidade do dito e do que fica por dizer, quando sabemos de cor como se tocam as ilusões ou se guardam as realidades que nos espreitam clarividentes, em passado e futuro, pois que no presente disseminamos silêncios viventes, troianos, pontuais, numa arte de hermenêutica de ilimitada abordagem.

 

Em 1981 quando li O Dia dos Prodígios percepcionei o quanto a Lídia poderia fazer dos livros sobre os livros, o quanto esta magnifica escritora poderia vir a ser considerada como aquela que age nas palavras num todo significante raramente encontrado.

 

E aguardei.

 

Aguardei ganhando coragem para ler outro e outro livro da Lídia Jorge num contexto de paz entre o significado e a compreensão. Numa circunstância de corpo-recepção, de ouvido cumulativo à mão cheia de mundo, mas nunca à descodificação, pois que a obra não era, nem nunca fora, nem é efémera ou vulgar.

 

Sim Lídia, hoje entendo a promessa que fazemos à felicidade e a outros núcleos de histórias íntimas, e tudo de tal forma força que, de facto, só é menor a violência exterior das mulheres na forma de exercer o poder, tal como afirma na sua entrevista em Maio deste ano à revista Ler, mas atamos realmente as relações de um jeito muito perverso, remetendo para o lado masculino o vencer a todo o preço.

 

Querida Lídia, eu também digo muitas vezes o quanto somos muito próximos nos comportamentos de outros que julgamos não assumir, e o quanto somos muito distantes daqueles que não vendem a alma por um punhado de palavras que acresça ao futuro e à hora de cada um.

 

Acresce mesmo dizer, e a propósito da minha leitura do seu magnífico livro A Noite das Mulheres Cantoras, que me falta a tolerância à ganga ética dos tristes que de si se enamoram e cegam, numa mão cheia de incongruências que, afinal, só alguma amizade dá pretexto a que se resista.

 

Afinal como não sabermos andar cinco centímetros acima do chão? para amar, suspender, espantar, seduzir, ouvir, rever, herdar, inovar, pintar, numa experiência pessoal que é processo de mosaico?

 

A Ilíada e a Odisseia têm-me acompanhado toda a vida numa intuição amante. Fausto é para mim uma questão de fúria e até Nadime Gordimer me prova o quanto julgo interpretar o cerco que faz na história de cada um dos seus livros.

 

Contudo, queridíssima Amiga Lídia Jorge, o que bem melhor do que eu sabe, é que a filologia é um somatório de amor e logos, mas sem amálgama alguma, é sim, a escultura da palavra, a figuração explicativa de significados que de modo tão exclusivo sabe a Lídia concretizar.

 

Maestrina ao longo da sua obra exprime o sentido fonte como um espelho que olha para outro espelho, trocando luz. Assim O Cais das Merendas, assim e numa variedade responsiva o Combateremos a Sombra, livro de encontro e colisão entre a consciência e a forma significante, livro só da Lídia  enquanto escritora.

 

Permito-me acrescentar sem pretender ser exaustiva, o quanto O Belo Adormecido englobando os contos do desejo, ou de um desejo, tem a morosidade bastante à revelação da natureza do ser enquanto pessoas afinadas ou não pela música que nos possui. Ingrediente da própria intriga do ser? Não o interpretei assim, mas antes um nenúfar sobre as nossas paixões, nunca demasiadamente enigmáticas e no entanto, plenas de concatenações de antenas estritamente privadas e que, por vezes, até escapam ao nosso entendimento. Diria que aqui e além o romance de Lídia Jorge, O Grande Gatão é uma história tão plena das aventuras pelas noites de luar quanto o é, de muitas formas, o empenho da mulher insubmissa que reside pelo livro A Maçon, e também nos Invernos em que se digladiou para a libertação, uma mulher face a um marido que a queria na dimensão do bico do seu lápis, e que vem a ter personagem no livro de Lídia Jorge, O Marido e Outros Contos. Toda esta escrita de Lídia Jorge é de uma extraordinária limpidez e inquietação seminal. Tem a escrita de Lídia o privilégio de exigir a sua leitura de lápis na mão, e o privilégio de gerar réplica no leitor. Fazê-lo pensar também como a mãe das Musas. No meu interpretar, a obra de Lídia é uma experiência que modifica a consciência. Devido ao seu carácter desinteressado é amiúde inesperada a proposta que nos é feita, que, no campo estético é poderosa e é igualmente literariamente arrebatadora, possuidora de voz, humor, desígnios, aflições, consolos e tão aguarela de Cézanne que a paisagem das nossas percepções tem a frescura das tempestades após a calmaria. Imperceptivelmente ou não, o encontro com os textos de Lídia é feito numa compulsiva liberdade. A maturidade desta escrita implica que a compreensão resida na continuada interpretação, corolário recorrente do sumo de um reino. Afinal, regresso a casa, mas a uma casa como a vida.

 

27.08.11 - Lisboa

Sec.XXI

A VIDA DOS LIVROS


de 12 a 18 de Setembro 2011
 

 


 
«D. Pedro V, Um Homem e Um Rei» de Ruben Andresen Leitão (Porto, 1950) é o ponto de partida para as considerações de hoje. De facto, a bibliografia de Ruben A. sobre D. Pedro V merece uma especial atenção, não apenas pela sua qualidade documental, mas sobretudo pelo interesse reflexivo, já que o autor considera ter sido o malogrado rei o primeiro homem moderno que houve em Portugal.

 

 

 

UMA FIGURA EXEMPLAR
Ruben A. apaixonou-se pela figura do rei D. Pedro V, por considera-la um caso à parte na história portuguesa – alguém que não se limitou a olhar-nos dentro das nossas fronteiras, condicionados pelo atraso ou pela distância dos grandes centros. Há, assim, uma aura relativamente a quem, pode dizer-se, encarna o mito sebastianista às avessas. Ao contrário do mito de Alcácer-Quibir, o jovem rei do século XIX representa o desejo de partir das condições concretas para as poder vencer pela ponderação da justa medida. Enquanto D. Sebastião é recordado por ter lançado um ato teatral, em vez de um gesto ponderado e sereno, D. Pedro defende a necessidade de persistência, de disciplina, de trabalho e de razão. Afinal, D. Pedro V, se desapareceu na flor da idade, não deixou uma mensagem impossível ou ilusória, mas sim um apelo à vontade, ao estudo, à necessidade de contrariar os fatalismos. Oiçamos Ruben A. numa síntese feliz, que merece especial atenção: «A noção com que se fica e aquela que a meu ver deve prevalecer na mente do homem que estuda e indaga a vida de D. Pedro V, é a de um espírito universalista adaptado perfeitamente à maneira de ser dos portugueses e enquadrado nas tendências que um mundo novo dava a conhecer, este homem tornou-se orgulho para nós, pois é, de facto, o primeiro homem moderno que podemos apresentar ao mundo, o único na sua época que sabia não ser o nosso atraso proveniente apenas do século XIX, mas que tinha as suas raízes plantadas já no século XVII e no século XVIII». E assim, sentindo por perto a sombra de Herculano (com mentalidade «séria e honesta» e «retidão de carácter», apesar do esfriamento das relações entre o rei e o intelectual a partir de certa altura), descobrimos o monarca como precursor da geração coimbrã, que foi também de 1870.

 

UM DIÁLOGO INTERESSANTE
É o próprio jovem rei que, nas suas reflexões, apela à exigência, à aprendizagem e a um espírito aberto. E as cartas ao seu tio o Príncipe Alberto, marido da rainha Vitória, com quem estabeleceu uma intensa amizade, são ilustrativas das preocupações que tinha. Para reformar seria fundamental entender a índole do povo. Não bastaria aplicar receitas abstratas. A experiência e a capacidade de aprender deveriam estar em primeiro lugar, muito mais do que a mera transmissão formal de saberes. Do mesmo modo, leiam-se os relatórios reformistas escritos por si, percebendo-se facilmente que o jovem rei contraria, a cada passo, a indiferença e o conformismo com o apelo fundamental, já ouvido antes, de que é necessário acordar o país e pô-lo a funcionar, em benefício de todos. «O indiferentismo é o fatalismo modernizado e aplicado a tudo. Se há quem confunda o indiferentismo com a tolerância, esse homem engana-se muito: os indiferentes que acreditam em crenças e partidos mortos, não se enganam menos» (1856). Como salienta o autor de «O Mundo à Minha Procura», sente-se um humanismo universalista virado para diante, incapaz de se deixar seduzir apenas pela lógica retrospetiva. Afinal, a nossa ciclotímia funda-se, de certo modo, nessa aversão ao passadismo e daí a necessidade que temos de obter estímulos fortes de dificuldade ou de incerteza para nos podermos mobilizar. O medo de existir relativiza-se. E se há quem continue a interrogar Portugal fora duma dimensão positiva, o certo é que precisamos, sobretudo nestes tempos de exigência, de mobilizar energias, para além do cinismo e do ceticismo, para que a periferia, a irrelevância e a mediocridade não se somem.

 

TRANSPOR PARA OS NOSSOS DIAS
Alexander Ellis, antigo Embaixador do Reino Unido em Portugal e bom conhecedor dos portugueses, fez uma apreciação das nossas qualidades, sem a tentação de apenas ver os aspetos positivos. E lembrou-nos que temos a vantagem de entender a importância das diferenças e da aventura de ir ao encontro dos outros. E fala de uma situação «between the devil and the blue sea». Entre o diabo e o mar azul. O certo é que essa geografia trouxe coisas boas, como a grande abertura de Portugal ao mundo. De facto, a história de Portugal é a história da abertura para o mundo. Se damos costas a Castela, viramo-nos de frente para o mar e o universo. E a curiosidade funciona como acicate e vantagem, que temos de aproveitar melhor, sem ilusões. E Ellis diz-nos que viajamos facilmente, contactamos os outros com facilidade: «este é um país em que posso absorver várias culturas sem sair daqui, o que não é o caso de Espanha» (revista Única, Expresso, 30.12.10). E o que encontramos na apreciação deste entusiasta de Portugal? A abertura que decorre de sermos Finisterra e de nos constituirmos em cadinho de várias diferenças. Mas ainda não devemos esquecer que o coração é «o lugar mais importante do corpo de qualquer português» e que há uma distinção entre o que ficaram e os que partiram. Camões partiu, mas soube compreender o velho que ficou na praia do Restelo a clamar «Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos Fama». E Fernando Pessoa não partiu, mas escreveu e pensou a partir da aventura de ir até ao desconhecido. E a verdade é que a hospitalidade se faz da ligação estreita entre quem recebe e é recebido. E o jovem embaixador dispara certeiro: «o vosso indicador de falta de confiança é o aumento do sebastianismo». E este é exatamente o ponto que D. Pedro V suscitava no seu tempo, e que Ruben A. bem recordava. Aliás, a propósito da atual crise vem à baila a pergunta sobre se não nos sentimos todos responsáveis pela situação a que chegámos. No calor marroquino de Agosto de 1578 foi a fina-flor que se perdeu… As respostas divergem, mas os mais exigentes dizem que, mais importante do que sabermos se nos sentimos responsáveis, é mobilizarmo-nos todos para sair das dificuldades. Naturalmente que a orientação dos governos é necessária e é a que faz a diferença. Por isso, Ruben A. chamava a atenção para o facto de o jovem rei não querer alimentar um sonho sobre uma manhã de nevoeiro, mas sim de desejar sobretudo vontade e trabalho.

 

QUE PSICANÁLISE MÍTICA?
Para Eduardo Lourenço, autor de uma imprescindível psicanálise mítica sobre o nosso destino, centrada na sábia ligação entre mitos e a vontade emancipadora, afirmou que «a História de Portugal é uma das histórias menos trágicas que conheço entre os países europeus». Não se lhe conhecem episódios da sua existência realmente extemos, a não ser de ordem natural, como no tremor de terra de Lisboa. Mas a verdade é que «os portugueses sempre tiveram essa ideia de que faziam parte de um país protegido. Provavelmente como defesa contra o facto de sentirem a sua fragilidade no confronto com os outros, quer a título individual, quer a título coletivo». É esta ciclotimia que nos condiciona – desde a proteção do «povo eleito» ao cruel estigma dos elementos negativos. Do que se trata é de compreendermos que não sendo nem melhores nem piores do que outros, temos a responsabilidade de nos termos repartido pelo mundo, ao encontro de muitos outros, sem no entanto ter possuído enorme poderio. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

VIAGEM CNC 2011 - 4ª CRÓNICA NA RÁDIO RENASCENÇA

 

 


Nesta vinda às Molucas não podemos deixar de lembrar que Fernão de Magalhães, apesar de português, ofereceu os seus préstimos ao Rei de Espanha para demonstrar que as Molucas estariam fora do hemisfério português. Fê-lo em vão, uma vez que, ao chegar à região, depressa se apercebeu de que não tinha razão. O resto da história é conhecido, mas lembrámo-la esta manhã com Monsenhor Andreas Sol, um holandês católico entusiasta da presença portuguesa nas Molucas e em especial em Amboino. A biblioteca que reuniu é uma preciosidade: livros, mapas, crónicas, revistas – mas mais importante foi o modo como nos recebeu nos seus 95 anos. Este foi sem dúvida o momento alto da nossa passagem por Amboino.
 
Temos Camões como companhia. Chegados a Ternate, lemos o que o épico nos diz no Canto X dos Lusíadas:
“Olha cá pelos mares do Oriente
As infinitas ilhas espalhadas:
Vê Tidore e Ternate, co fervente
Cume que lança as flamas ondeadas.
... As árvores verás do cravo ardente,
Co sangue português inda compradas”
Aqui estamos com os vulcões adormecidos em volta, regressados às Molucas do Norte. Somos recebidos com honras especiais. Visitamos o Sultão de Ternate, que recorda a antiga presença portuguesa e faz questão de dizer que agora nos reencontramos em nome da cultura da paz. O Sultão é uma pessoa culta que faz questão de salientar a importância que a vinda dos portugueses tem para o sultanato, dizendo que cada um de nós passará, por certo, a ser um embaixador de Ternate onde quer que se encontre. Fala-nos do fenómeno religioso e da importância do conhecimento nas diferenças culturais ou do diálogo entre as confissões. Estamos na zona de produção do cravinho, mas também da noz-moscada e, num percurso na ilha, paramos na estrada para ver as plantas e compreender o respectivo circuito da produção. A primeira armada portuguesa destinada a Maluco envolveu o mercador Tamul e simultaneamente também Rui Araújo, feitor de Malaca. Mas a expedição de António Abreu de 1511 foi a primeira a sério, carregada de mercadorias com valia nas ilhas do cravo. A história das ilhas e dos portugueses é cheia de peripécias e vicissitudes. Peripécias e vicissitudes sobre as quais continuaremos a falar.



Crónica do Dr. Guilherme d'Oliveira Martins na Rádio Renascença gravada em 8 de Setembro de 2011

VIAGEM CNC 2011 - 3ª CRÓNICA NA RÁDIO RENASCENÇA

Timor

 

Longa jornada por estrada, de Dili até Baucau. É ainda aventurosa esta viagem com um caminho muito irregular a obrigar a esforços, solavancos e atenções muito especiais. As nuvens acastelavam-se no horizonte, mas a chuva não veio, antes cedendo lugar ao sol e ao calor. Primeiro tivemos a paisagem xistosa, depois a calcária, primeiro o verde e depois o amarelo, até à cidade de Manatuto, a pequena propriedade e o regadio e a seguir a estepe seca. Sempre com o mar por companhia, com um azul fantástico, apanhámos alguns sustos por causa do abrupto das ravinas. Todos ficam deslumbrados, é Timor Leste no seu melhor, terra acolhedora e agreste, intensa e doce - e até os mangais constituem lição uma vez que medram na água salgada, bastando-lhes apenas algumas horas de água doce. Chegámos a Baucau quase com uma hora de atraso e D. Basílio espera-nos com a sua simpatia e com a hospitalidade que tão bem conhecemos. Um grupo de jovens meninas aguarda-nos na Catedral e os seus cânticos na celebração são o modo de nos dizerem que somos bem-vindos. Ouvimos o seu português, às vezes inseguro, entre pequenos sorrisos, mas o olhar é transparente e de uma simpatia tocante.

 

Hoje já estamos de novo na Indonésia e chegámos a Amboíno. Partimos de manhã bem cedo e já aqui nas Molucas começámos a ver com os nossos próprios olhos um dos cenários da presença portuguesa no Oriente do Oriente. Apesar de pequenos atrasos inevitáveis, sobretudo tratando-se de um voo especialmente contratado, chegámos a esta baía ao fim da manhã e embrenhamo-nos de imediato numa cidade equatorial situada numa pequena ilha intensamente povoada de floresta. A presença de um tão alargado grupo de portugueses causa surpresa. As autoridades locais não se poupam a esforços para nos serem simpáticas. Somos levados ao hotel e depois ao restaurante do almoço, antecedidos por um automóvel da polícia municipal. O Prof. Luiz Filipe Thomaz recorda em pormenor as vicissitudes da presença portuguesa que aqui ocorreu de 1512 a 1605. Fala-nos do naufrágio de Francisco Serrão nas ilhas das tartarugas, do comércio do cravo e da noz-moscada e da chegada de São Francisco Xavier. Mas esses largos contos são tema para a nossa próxima crónica...

 

 

Crónica do Dr. Guilherme d'Oliveira Martins na Rádio Renascença gravada em 5 de Setembro de 2011

A VIDA DOS LIVROS


de 5 a 11 de Setembro 2011

 

Publicamos hoje o texto saído há duas semanas no JL, dando conta da homenagem prestada em S. Pedro de Rio Seco pelos seus amigos e conterrâneos a Eduardo Lourenço, permitindo-nos remeter para o filme que Anabela Saint-Maurice dedicou ao ensaísta na RTP-2 com a participação, entre outros de Pedro Mexia, de Gonçalo M. Tavares e de Hélia Correia.  


 

 

 

NAQUELE SÁBADO DE AGOSTO
Em S. Pedro de Rio Seco, naquele sábado de Agosto, depois de uma chuva leve, pudemos celebrar Eduardo Lourenço (EL), com o sol a espreitar entre as nuvens, no meio do seu povo, dos seus familiares e amigos. E alguém dizia-me que todos gostaram muito de ouvir o pensador na linguagem cessível das pessoas comuns. Em palavras chãs, Eduardo lembrou os pais, os irmãos, os amigos, os companheiros, nos dez anos em que viveu próximo do coração da Beira-Serra. Esse foi o tempo de S. Pedro, como está transcrito no memorial que Leonel Moura criou para homenagear o ensaísta de «O Labirinto da Saudade»: “Eu tenho um espaço particular que é o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que aí vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo e o mundo estava em mim. Depois nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei”. Aí estão as suas raízes, e sentimos bem que se tratava de um regresso gostoso e emocionado.

 

À beira da casa onde nasceu, adivinha as palavras de seu irmão Adriano, discreto e laborioso organizador (com Luís Queirós, M. Alcino Fernandes, A.J. Dias de Almeida e Alexandra Isidro) daquele momento de gratidão. Quantas memórias dessa casa e das pessoas que a povoaram. É um mundo o que ali se encontra. No documentário de Anabela Saint-Maurice, «Regresso sem Fim» (da RTP-2), Pedro Mexia procura indagar do ensaísta o que encontra nesse lugar, e o fundamental fica no não dito e na efusão dos encontros do largo da aldeia. Em cada uma das saudações, há milhentas lembranças, de encontros entre quem o tempo afastou, e agora aproxima… A lembrança da Mãe é muito forte, mesmo e sobretudo nas entrelinhas. Percebemos a força de uma guardiã, lutando contra ventos e marés, com a tarefa de permanecer na distância. A recordação do Pai vai aparecendo, com o amor à terra, com a sabedoria do conhecimento da natureza. E percebemos a importância de um significativo legado - uma arca misteriosa e poética, de livros e referências paternas. Aí está Guerra Junqueiro, o poeta querido e contraditório – rebelde, mas ciente das raízes populares. E é o poeta de Freixo de Espada à Cinta o chamado por EL nesse dia de recordações. «Minha mãe, minha mãe, ai que saudade imensa / do tempo em que ajoelhava, orando ao pé de ti. / Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares / cruzavam-se voando em torno dos seu lares, / suspensos do beiral da casa onde nasci». Manuel António Pina lembrá-lo-ia no rescaldo da cerimónia. As andorinhas ali estavam, vindas da infância, ligando-nos a esse tempo antigo, como símbolos de tudo – da mãe, do pai e da sua arca, da aldeia, do tempo de S. Pedro, do inexorável ciclo das estações. E, além de Junqueiro, a arca continha a literatura como projeção da vida, como tesouro de imaginação. Ali estava o começo e o prenúncio do amor pela ficção, como narrativa do mundo. Júlio Dinis e «A Morgadinha dos Canaviais» representavam, afinal, a iniciação ao tempo, nesse caminho fantasmático que une a existência e a criação. A partir daí a literatura ocupa o espaço todo, do puro talento à interpretação de todos os grandes enigmas.

 

REGRESSO SEM FIM
No filme «Regresso sem Fim», a visita a casa de Miguel de Unamuno em Salamanca é muito mais que uma homenagem ao escritor de «O Sentimento Trágico da Vida», é o encontro com alguém muito próximo de EL, no método e na inquietação e no pensamento, que procurou compreender a complexa relação ibérica. Pilar del Rio não deixa de se enternecer por essa aproximação natural das culturas peninsulares. E vem à memória a ilustração de João Abel Manta desse misterioso diálogo confidencial entre Miguel de Cervantes, Miguel de Unamuno e Miguel Torga. Lourenço e Saramago estão por perto. Com entusiasmo juvenil, o nosso Eduardo descobre num antigo mapa, bem junto da fronteira de Alcanizes a toponímia de S. Pedro, e recorda como foi
difícil esse acerto final de fronteiras em Riba Coa. Unamuno enche Salamanca com a sua força espiritual. Vem à lembrança Kierkegaard e a vacina filosófica que o ensaísta tomou para se proteger das ilusões de Hegel. D. Miguel tinha em comum com EL a admiração por Antero (o mestre supremo). E relemos o salmantino: «Quental foi uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito, pela fome de eternidade. Há sonetos seus que viverão quanto viva a memória das gentes, porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas de homens atormentados pelo olhar da esfinge». Recordamos a fotografia de Unamuno, com a inconfundível barba branca, no seu gabinete de trabalho, rodeado de livros, publicações e apontamentos – ele que tão bem conheceu Portugal e os portugueses. Lá está a fileira de retratos dos seis portugueses que mais admirava: Herculano, Oliveira Martins, João de Deus, Antero, Camilo e Soares dos Reis. Interrogamo-nos sobre o mistério do país de suicidas. «Para Portugal o sol não nasce nunca: morre sempre no mar, que foi teatro das suas façanhas e cunha e sepulcro das suas glórias» – disse o mestre de Salamanca. «A literatura portuguesa tem duas notas dominantes, a amorosa e a elegíaca. Portugal parece a pátria dos amores tristes e dos grandes naufrágios». EL não esquece, como Unamuno, a melancolia e o sentimentalismo dos portugueses, mas procura ir além, interrogando os mitos como sinais emancipadores, sob o aguilhão da crítica. E, no fundo, a sede de infinito que ambos encontram em Antero torna-se sentimento trágico num e utopia crítica e emancipadora no outro. «A cada um sua utopia (diz EL). Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações» (Visão, 4.8.11). Não é uma pseudo-América de segunda ordem que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação. Lourenço pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso. O enigma português não pode ser respondido por qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. É a «maravilhosa imperfeição» que o pensador cultiva, ligando-a à complexidade e à diversidade. Com sereno orgulho, EL é consciência crítica da cultura portuguesa, na linha de Herculano e de Antero - e uma das consciências culturais, morais e cívicas da Europa contemporânea, ao lado de Edgar Morin, de Claudio Magris ou de Jürgen Habermas. A utopia torna-se um horizonte de crítica e de exigência, e nunca de fuga à realidade. E Portugal, a Europa e o Mundo ligam-se, em pensamento, placidamente no apelo universalista da dignidade humana.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

VIAGEM CNC 2011 - 2ª CRÓNICA NA RÁDIO RENASCENÇA

 
 

Continuando a viajar no sentido dos portos onde os portugueses tiveram a sua presença efectiva, partimos para as Flores onde chegámos ontem a tempo de um almoço tardio, mas retemperador, de modo a visitarmos a família real de Sika - os Ximenes da Silva - na casa de Maumere, com quem pudemos usufruir de uma visita ao pequeno - mas significativo - tesouro, constituído por duas coroas do Rei, pequenas pulseiras e armas votivas. A coroa real é um capacete do século XVII, do ano de 1607, talhado em ouro, com a imponência própria e o fulgor do metal em que foi feito. Verificámos ser necessário criar condições de maior segurança para este património que recorda o acordo realizado pelos portugueses com os chefes da Ilha do "Cabo das Flores" há trezentos anos. E deparamos, com emoção, com a assinatura de Helena Vaz da Silva no livro de honra sentindo que a memória é inapagágel.

 

A Ilha das Flores, baptizada pelos portugueses, nunca foi conquistada. Foram tradicionalmente os seus reis que exerceram com autonomia o poder nesta terra em que a serpente impera. No entanto, até 1851, e de um modo natural, a população teve o apoio dos portugueses ao abrigo de um entendimento ancestral – reforçado aliás pelas características próprias, culturais e religiosas deste povo, maioritariamente católico.  A caminho de Sika, onde vamos ao encontro do antigo reino, do seu palácio e da sua situação geográfica encontramos uma ilha amiga e fraterna. O Senhor Pereira mostra-nos ainda o que faltava ver do tesouro de Sika – o Menino, ou seja, o Menino Jesus Salvador do Mundo vestido a preceito como se estivesse em Portugal. E se se diz que as Flores - ou o Cabo das Flores, para sermos mais rigorosos - nunca foi objecto de conquista, tal serve para deixar claro que a hospitalidade que recebemos vem dessa longa história – de humanismo, de abertura e de complexidade. Somos recebidos de braços abertos por um povo que não esconde a sua simpatia. E hoje fomos até à montanha, à aldeia de Watublapi, fumar o tabaco da paz, ver as danças tradicionais e como se confeccionam os panos. Foi este mais um momento de emoção partilhado por todos. À parte a distância, as Flores correspondem a uma situação única e o seu povo hoje tem-nos no coração, e nós a ele.

 
 
Crónica do Dr. Guilherme d'Oliveira Martins na Rádio Renascença gravada em 2 de Setembro de 2011 

Viagem CNC 2011 - 1ª crónica na Rádio Renascença


Os portugueses ao encontro da sua História

Malaca, Timor Leste e Indonésia (Bali, Flores, Amboino, Ternate, Tidore)


27 de Agosto a 10 de Setembro de 2011

 

 

Malaca acolheu-nos principescamente. A visita ao bairro português é um motivo especial de interesse, da antiga Fortaleza de Afonso de Albuquerque, “A Famosa”, apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram a destruição do edificio militar que em muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como aliás está representado nos documentos da época. Para nós, o mais emocionante foi a subida aqui à Igreja do Monte sob a evocação da Anunciação, ou de São Paulo, onde Sào Francisco de Xavier  pregou e onde foi sepultado por D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. As visitas sucederam-se mas o mais importante foi ouvir o papiar do Século XVI, a língua franca dos  mercadores que os missionários desenvolveram sabendo-se que os textos religiosos são sempre fundamentais para a afirmação de uma língua.

Hoje estamos em Bali e vivemos uma imersão total na cultura hindu, aqui caldeada pelo animismo vivido pelas populações mais antigas da ilha. Nos templos que visitámos encontramos os três mundos da cultura hindu -  o domínio dos espíritos que importa aquietar e lembramos a purificação pelo sangue da luta dos galos à entrada do campo santo; o domínio das pessoas humanas e o terceiro domínio, dos deuses e dos antepassados. No caminho longo que seguimos até às montanhas vimos terraços verdejantes dos arrozais mas também as plantações de banana, cacau, papaia e manga e muitas estátuas do hinduísmo; presenciámos ainda a festividade dos muçulmanos a viverem o fim do Ramadão com muita côr e alegria. E culminámos com a ascenção ao vulcão Batur, numa paisagem deslumbrante, em que até o sol timidamente apareceu.  O lago ocupa parte da cratera e o lugar corresponde a um encontro natural entre o sagrado e o humano - e quando chegámos ao templo da Primavera Sagrada, onde a purificação pela água está bem presente, sentimos com naturalidade que aqui em Bali temos intensamente o diálogo entre o homem e a natureza.

 


 

Crónica do Dr. Guilherme d'Oliveira Martins na Rádio Renascença gravada em 31 de Agosto de 2011