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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 28 de Novembro a 4 de Dezembro 2011

 

«Tiago Veiga – Uma Biografia» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2011) é um livro singularíssimo em que tudo se encontra: a tragédia, o drama, a ironia, a ilusão, a realidade, pessoas e fantasmas… Deparamo-nos com a sociedade portuguesa, nas suas forças e fraquezas, uma vez que Tiago Manuel dos Anjos, aliás, Tiago Veiga é uma personagem inclassificável e inesperada, que parece vocacionada para se encontrar com o mundo, mas que, no entanto, acumula desencontros. Estamos, no fundo, diante de um apelo crítico sobre Portugal… Daí ser um livro de leitura indispensável.

 


Revista «Ler».

 

UM PONTO DE PARTIDA
A história conta-se em poucas palavras, mas a obra é necessariamente extensa e rica, uma vez que está em causa a vida de uma pessoa complexa, difícil e razoavelmente digna de atenção. Não se trata, pois, de uma pessoa qualquer. Tiago Veiga (1900-1988) é alguém até há pouco praticamente desconhecida do público. Agora, graças a Mário Cláudio, passou para a ribalta, apesar de ter uma obra escassa, em virtude da teia riquíssima e improvável de relações que se encontram, a partir da sua existência e da sua personalidade. «Quem quer que se atreva à escrita de uma biografia pouco favorecida pela notoriedade, e sobre a qual quase nada se sabe, sujeita-se a enfrentar um enredo de perplexidades» (diz-nos o autor da biografia). «À fantasia para que sempre tende qualquer relato de uma vida, seja a de um famoso de todo o tempo e espaço, seja a de um desconhecido de um país castigado pela indiferença do mundo, acresce a tentação de colmatar as inúmeras lacunas com as suposições ao alcance, procedendo-se à leitura dos dados disponíveis a uma luz capaz de os tornar significantes da sua escassez». Ora, tudo isto está presente nesta invocação pormenorizada, rigorosa, ponderada, servida por testemunhos insuspeitos e de um aparato de notas digno de respeito. José Carlos Seabra Pereira já nos tinha dito: «De facto, o que sabemos da biografia cultural de Tiago Veiga, dos interesses da sua inteligência e da formação do seu gosto, tem pontos de contacto com o perfil e o trajeto de Fernando Pessoa e das suas tão variadas relações literárias». Tiago Veiga é o símbolo da criação intelectual. Que é a vida senão uma relação íntima e inesgotável entre a ficção e a realidade? Que é a existência senão um diálogo entre o provável e o improvável? Que é a cultura senão a busca, sem descanso, do significado das sombras projetadas nos tapetes? Veiga foi um fidalgo vago, do Alto Minho, com uma vida quase etérea, e uma presença misteriosa. «Apesar de se ter manifestado quase sempre refratário à publicação dos seus escritos, e mais ou menos arredio dos movimentos da chamada “vida literária”, não falta quem comece a saudar em Tiago Veiga a incontestável originalidade de uma voz, e o poderio impressionante que lhe assiste».

 

POETA, DIFÍCIL DE DEFINIR
Como poeta é muito difícil de definir, o que não impediu o autor da biografia de dizer nos idos de 1988, nas colunas do semanário «Tempo» que Veiga foi uma «voz originalíssima da poesia portuguesa de Novecentos». Em 2003, graças ao labor de Mário Cláudio, saíram os «Sonetos Italianos», em 2008 foi dado à estampa o pequeno conto infantil «Gondelim» e, em 2010, pudemos ler «Do Espelho de Vénus». Tiago Manuel dos Anjos ou Tiago Veiga (nascido no Brasil, em Irajá, e não em Castro Laboreiro, como julgou primeiro o biógrafo) é um inesperado bisneto de Camilo Castelo Branco, neto de Nuno e Berta Maria dos Anjos, e filho de Inácio Manuel dos Anjos e da irlandesa Mary Leonard O’Heary… É a vida de Tiago que motiva estas exaustivas oitocentas páginas da autoria do fiel biógrafo e confidente, Mário Cláudio. O suicídio da mãe, testemunhado por Tiago, que brinca com o sapato caído do pé da enforcada, é uma referência tétrica que marca a narrativa. O romance e a realidade entrelaçam-se em cada momento. A ficção ocupa o espaço concreto do tempo, e estamos diante de um mosaico artificioso e compreensivo sobre o século XX português, e não só. Pode, de facto, dizer-se que Tiago Veiga é o símbolo da ambiguidade portuguesa de quase um século. A personagem fundamental do livro é tanto mais significativa, quanto é certo que nunca quis ser notada, notável ou célebre. E deste modo passou pelo século, revelando o que se foi apercebendo do mundo que se desenvolvia em volta, sem ser perturbado ou manchado pelos acontecimentos. Secretariou Bernardino Machado (considerando as raízes familiares de Paredes de Coura), conheceu Teixeira Gomes, o esteta cosmopolita, o cidadão que Tiago considerou pouco compreensível, colaborou com António Ferro, mas teve reservas perante o excesso da sua personalidade («idólatra sem conta e medida»).

 

O PESO DE UMA LENDA
Sobre a relação com o autor de “Mensagem”, temos a registar uma lenda: «a dignidade de “super-Camões” que se afirmava haver sido concedida por Fernando Pessoa a Tiago Veiga, e que fora perfilhada, um pouco a sério, um pouco a brincar, pelos amigos mais chegados ao poeta, e sobretudo por aqueles que o acompanhariam no fim, não encontra no espólio pessoano, nem em qualquer outro lugar palpável, a mínima expressão, sobrevoando todavia os anos terminais do nosso biografado como um desses mitos em que tão fértil se mostra a história literária». W. B. Yeats, os irmãos Sitwell, Cocteau, Bárbara Hutton, Benedetto Croce, Marianne Moore são personalidades com quem se cruza e tantas vezes se desencontra. José Régio, Ruy Cinatti ou Luís Miguel Nava são outras referências significativas, para entender a complexa personalidade de Tiago. ENCONTRO COM PASCOAES. - Mas Teixeira de Pascoaes merece referência especial, num episódio que ilustra bem o que é esta biografia cheia de pormenores sobre os diálogos literários: «Pascoaes abriu então a pasta que trazia de imitação de cabedal, e da raça das que costumavam utilizar os cobradores de água e eletricidade, retirou dela um quadro que representava Lúcifer num fundo crepuscular e declarou, “Aqui tem você o seu S. Miguel de Portugal, transforme-o naquilo que lhe apetecer, mas imploro-lhe que não o ponha de fato-macaco a lidar com uma caldeira gigantesca”. Colocou ele a pintura sobre a mesa, e apressou-se a sair, tacitamente encarregando o seu ex-interlocutor de pagar os cafés bebidos». O cenário era uma esplanada no Porto, lá para a Cordoaria, e a ocasião a da escrita de «Triunfo e Glória do Arcanjo São Miguel de Portugal», sobre o qual se gerou uma lenda ilusória, que envolvia T. S. Eliot, a propósito da qualidade superlativa do poema… Os grandes temas do romance são o do encontro e desencontro, do anonimato, da distância, e da capacidade de estar e de se aproximar, sem ser mais do que a testemunha, que não tem plena consciência da importância de cada figura ou acontecimento, porque participa sem participar. A começar pelo seu estranho nome, sobretudo para quem nasceu no último ano do século XIX, a figura de Tiago (talvez James, por influência da mãe) corresponde a um enigma permanente que o romancista vai desvendando e ocultando. De facto, da primeira à última linha, este exercício tem uma ambivalência inteligente e talentosamente urdida, na qual nunca há uma revelação plena. Estamos perante um extraordinário jogo literário, em que tudo poderia ter acontecido, uma vez que a parte mais importante do romance aconteceu verdadeiramente no testemunho de Mário Cláudio. Poeta inédito e virtual? Personalidade etérea ou autêntica? Uma coisa é certa, Tiago Veiga existe hoje, sem sombra de dúvida, como literatura e como encontro histórico com a cultura portuguesa do século XX (e as suas vicissitudes). Não importa que o poeta seja uma sombra, sem obra significativa. É de propósito que tal acontece. Se a escrita ou a vida de Veiga tivesse sido marcante, decerto não teria passado despercebido. Assim, Mário Cláudio sentiu necessidade de o inventar e reinventar. E não será uma biografia sempre um exercício de ficção?

 

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 21 a 27 de Novembro 2011


«História Económica de Portugal (1143-2010)» de Leonor Freire Costa, Pedro Lains e Susana Münch Miranda (Esfera dos Livros, 2011) é uma excelente síntese, sobre a evolução portuguesa, a partir da demografia, das alterações nas formas de propriedade, na organização da produção, no comércio externo e nas finanças públicas, que nos permite ter uma interpretação séria e fundamentada sobre uma «economia nacional» com nove séculos de existência, com um desenvolvimento complexo e multifacetado.

 

 
Cerco de Lisboa, 1384, na Crónica de Jean Froissart (1333-1405)

 

UM PERCURSO POUCO CONHECIDO
Ao longo de seis capítulos, podemos ter contacto com uma realidade que muitas vezes conhecemos mal, e sobre a qual há muitas simplificações inverdadeiras: a formação (1143-1500); a expansão (1500-1621); a restauração (1621-1703); a consolidação (1703-1807); o liberalismo (1807-1914) e a convergência (1914-2010). Diga-se que a história económica de Portugal é reveladora de uma tensão entre elementos de continuidade e descontinuidade, entre fatores de progresso e atraso, entre referências internas e externas, singularizando-se neste último aspeto pela ligação muito forte, em especial nos momentos cruciais da expansão, às tendências inovadoras da mundialização. «Assim (dizem os autores), dada a sua longevidade e projeção internacional, a história económica de Portugal é uma forte contribuição para o estudo das transformações na longa duração de um espaço nacional nas suas relações com a economia mundial» (p. 444). De facto, há uma precoce participação de Portugal na economia internacional, o que exige atenção à inserção europeia, devendo dizer-se que «a importância das relações com o exterior foi crescendo, mas jamais foi dominante». Isto explica a existência de períodos de fechamento cultural, que alternam com momentos de abertura. E é interessante verificar que Portugal nasceu como uma nação europeia e é hoje uma nação europeia, tendo tido três impérios que apenas constituíram parte da sua vida económica.

 

UMA INVESTIGAÇÃO A PROSSEGUIR
Como no-lo afirmam os autores, há muito trabalho de investigação ainda por realizar no sentido de conhecer, com mais e melhor informação, as razões pelas quais o país se desenvolveu ou marcou passo, bem como sobre o motivo de tão ampla longevidade. Deste modo, importa encontrar pistas para a compreensão do desenvolvimento, para além do tema do atraso, já que a sistemática atenção a este último tema tem alimentado um pernicioso fatalismo, que os autores não seguem. Sendo uma economia periférica, Portugal não pode ser compreendido sem uma análise cuidada das tendências internacionais. Lembremo-nos das repercussões dramáticas da Peste Negra na população, em finais do século XIV, por contraste com o crescimento da população entre 1500 e 1800, neste caso ligeiramente abaixo do registado no Noroeste europeu, mas acima das regiões do Mediterrâneo. Por outro lado, os fluxos migratórios sentiram-se entre nós especialmente no final do século XVIII (para o Brasil, com o surto do ouro), na segunda metade do século XIX (ainda para a América do Sul, segundo uma tendência europeia) e no terceiro quartel do século XX para a Europa. O certo é que desde o século XVI as «relações imperiais foram determinantes para a definição da estrutura do comércio externo português». A reexportação dos produtos coloniais (especiarias, açúcar e depois ouro) permitiu a criação de excedentes no século XVI, enquanto a decadência imperial do Oriente traduziu-se nos défices externos do século XVII, a que se seguiram os excedentes do ouro no século seguinte. Em seguida, nos séculos XIX e XX, os desequilíbrios foram contrariados pelo protecionismo e pelas remessas de emigrantes. E a verdade é que «os défices externos e as recorrentes dificuldades em cobri-los são tanto uma causa como um efeito do atraso relativo da economia portuguesa» (p. 450). Já nas Finanças Públicas, as rendas dos monopólios ultramarinos e das alfândegas puderam compensar os fracos réditos da tributação interna da agricultura e do comércio. Se nos ativermos à viragem do início do século XV, a conquista de Ceuta (1415) desencadeou uma dinâmica, do povoamento dos arquipélagos atlânticos à presença militar no norte de África, passando pelas viagens de exploração da costa ocidental para sul. Importa, porém, revisitar criticamente os mitos ligados às origens dos descobrimentos e ao Infante D. Henrique, duque de Viseu. É verdade que a ele coube a liderança inicial, mas as razões da expansão são múltiplas e variam ou completam-se ao longo dos tempos. A ideia de «cruzada» tem de ser considerada no contexto da época e da posição assumida pelo Infante, como grão-mestre da Ordem de Cristo, como aliás foi dito por Zurara. Mas as razões económicas são relevantes: já que precisávamos de ouro para amoedação, em virtude da intensificação da atividade mercantil, com a informação de que Marrocos tinha o metal precioso (saber-se-ia depois que esse ouro vinha do Sudão).

 

A DINÂMICA ESTÍMULO – RESPOSTA
O certo é que havia constrangimentos ao comércio no levante mediterrânico originados pela expansão dos otomanos no Médio Oriente o que obrigaria à procura de alternativas nas rotas. Como já se disse, a Peste Negra induzira uma recessão demográfica, com aumento de salários e quebra de preços, com necessidade da nobreza e do alto clero encontrarem alternativas para recuperar rendimentos perdidos na conquista, no corso e no saque. De facto, a quebra de rendimentos da terra para a aristocracia terra-tenente conduziria à necessidade de participação nas atividades de conquista e comércio marítimos. A redução da produção de cereais obrigou ainda a alargar a produção aos circuitos do norte de África, apesar de em Ceuta o objetivo ter sido gorado, por ter havido um desvio dos abastecimentos da cidade. No entanto, ao longo dos descobrimentos, há uma preocupação de integrar espaços económicos norte-africanos com a costa africana e os arquipélagos atlânticos – e o Índico. Afinal, a legitimação pela reconquista e pela cruzada está presente até D. Sebastião, bastando lembrar-nos dos projetos para o Médio Oriente de Afonso de Albuquerque e de D. Manuel. Por seu turno, a opção de D. Afonso V pelo norte de África, levou à entrega da exploração da costa da Guiné aos mercadores. Fernão Gomes teve, assim, de descobrir 100 léguas de costa contra o pagamento de 200 mil réis à Coroa, ficando com o arrendamento do resgate dos escravos. Deu-se, contudo, tão bem com a empresa, que descobriu S. Tomé e Príncipe, que reconheceu o troço do Golfo da Guiné e que descobriu regiões onde o ouro de produzia. Este facto levou, aliás, a Coroa a interessar-se diretamente pela atividade. É fundado o Forte de S. Jorge da Mina (1482), o plano da Índia passa a mobilizar energias, o preço da pimenta torna-se atraente para os mercadores e a colonização do Brasil segue o sistema das capitanias donatarias, como nas ilhas atlânticas.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

FRANÇOIS MAURIAC E GRAHAM GREENE

 

 

Recordo uma fotografia emblemática, é de 1948, que representa Graham Greene com François Mauriac. Ambos estão no auge do seu sucesso e aquele encontro representa as diferenças e as confluências das obras dos dois romancistas. Vê-se que se admiram e respeitam, muitos dos temas que tratam são profundamente diferentes, mas as preocupações confluem. Pela vida fora, surpreenderão os seus leitores, cientes de que o cristianismo que os une exige um compromisso com a verdade, que é muito mais importante do que a previsibilidade. Conhecem bem a técnica das parábolas e, no fundo, procuram reescrevê-las com ingredientes contemporâneos. A austeridade da fotografia a preto e branco esconde para todos os leitores dos dois celebrados escritores uma multidão de temas e de personagens. Com Graham Greene vem-nos à memória o drama de “O Poder e a Glória” em que a Graça e o Pecado se encontram e desencontram – uma vez que o romancista britânico diz-nos que é na situação limite e no afrontamento do mal que a Graça se revela. Muitos não o compreenderam, mas o tempo veio a revelar que o livro se tornou uma referência do nosso tempo – colocando-nos no centro da dúvida e da fé. De que vale ficarmo-nos apenas na comum normalidade? É preciso interrogarmo-nos sobre a essência das coisas, o que obriga a ir até às fronteiras onde os sentimentos, as virtudes e o pecado se encontram. A samaritana surpreende-se por encontrar Cristo àquela hora na fonte. Muitos se escandalizam… Tal como no drama de Tabasco no México, perante a perseguição e a incerteza, devemos lembrar o caso de “Thérèse Desqueiroux”, em que François Mauriac também afronta a humanidade pelo lado da presença constante de um confronto de resultado incerto entre o bem e o mal. A Graça e a liberdade encontram-se e não se anulam. Como disse Paul Henri Simon: «Mauriac engendra um outro trágico, mais complexo e mais moderno, do homem que age e que luta, suspenso entre duas eternidades, do nada e da salvação, entre o infinito deserto e a plenitude infinita do amor, sem que saibamos por que lado se deixará levar…».

 

Mas nessa fotografia austera e belíssima está presente um debate sempre inacabado – o de saber se há uma literatura cristã ou católica. Greene e Mauriac consideram-se, antes de tudo, romancistas. O seu compromisso com a criação e a cultura obriga a entrar propositadamente nos caminhos difíceis, arriscados e ameaçadores. É verdade que Mauriac não segue as audácias de Léon Bloy ou de Georges Bernanos, mas, em momentos cruciais dá o testemunho difícil de pôr em confronto o nada e o infinito, a Graça e a liberdade. É verdade que ambos são cristãos, e é também certo que os valores dos Evangelhos estão bem presentes na sua escrita, ainda que muitas vezes façam questão de partir dos antípodas ou do avesso. No entanto não há um romance cristão como não há uma arte cristã. Há, sim, cristãos na arte e na vida – de Fra Angelico a Rouault. Mauriac fala de iluminação pela fé e da presença de Jesus Cristo - «foi o estado de pecado e é o estado de graça que fizeram o dia e a noite do mundo humilde que imaginei – estas trevas atravessadas de raios». E como é bem evidente no inesperado encontro de Cristo naquela tarde quente do que se trata é de dar testemunho pela dignidade humana não numa sociedade formatada e perfeita, mas situada entre a imperfeição e a estranheza – porque o vento da Graça sopra onde menos se espera.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS


de 14 a 20 de Novembro 2011


O livro «Viagens e Exposições – D. Pedro V na Europa do Século XIX» da autoria de Filipa Lowndes Vicente (Gótica, 2003) trata das duas viagens europeias dos futuros reis D. Pedro e D. Luís (1854 e 1855) e a esse propósito contem uma análise circunstanciada dos itinerários seguidos e dos comentários feitos pelo rei «Esperançoso» sobre o que vê, na perspetiva de contribuir ativamente para a modernização de Portugal, que considera essencial. Assinalando-se 150 anos da morte de D. Pedro V (1837-1861) a 11 de Novembro, o CNC homenageou o jovem rei no domingo, visitando o Palácio da Ajuda, onde não viveu, mas onde se encontram a sua melhor iconografia e objetos que invocam a sua memória.

SER MODERNO
D. Pedro V tem atraído a atenção e a simpatia de diversos autores, avultando o estudo de Ruben Andresen Leitão em «D. Pedro V, Um Homem e Um Rei» (agora reeditado, Texto, 2011). A verdade é que, quanto mais conhecemos o seu pensamento e a sua ação, mais percebemos as suas qualidades e a sua força anímica. Filipa L. Vicente, dizendo que se limita a acompanhar os escritos de viagem do futuro rei, consegue dar-nos um retrato impressivo de um jovem, à beira de fazer 18 anos de idade, que revela uma personalidade determinada e positiva, profundamente crente na mudança e na moralização de Portugal. Ruben A. disse, certeiramente, que foi o primeiro homem moderno que houve em Portugal e percebemos, de facto, que não é já um romântico, posto que admire a geração romântica (como Herculano, Castilho e Camilo), mas sim alguém que acredita na necessidade de um salto no sentido do progresso. O coração do país deveria bater ao ritmo da Europa, como dirá a geração dos jovens do Casino. D. Maria da Glória e D. Fernando II, seus pais, preocuparam-se sempre com a exigência na formação do futuro monarca, e a verdade é que D. Pedro de Alcântara correspondeu com disciplina, trabalho e sentido do dever. Muito jovem ainda deslocava-se ao Palácio da Ajuda, onde Herculano era diretor da Biblioteca (por influência de D. Fernando) para ter longas conversas com o velho historiador. Cedo teve de combater um presságio, presente num sonho tremendo quando tinha dez anos: «Sonhei (…) que uma águia me levava às nuvens; que, lançando-me da maior altura, fez com que me despedaçasse caindo eu sobre a terra, subindo ao mesmo lugar donde me levantara o meu irmão Luís. Terrível pesadelo este; parece-me que ainda sinto a queda». De qualquer modo, não se deixa esmorecer. Estuda os clássicos latinos, aprende grego com o seu amigo António José Viale, entusiasma-se com as ciências naturais e a matemática, prepara-se com Fortunato José Barreiros nos domínios militares. Em cada disciplina empenha-se, compreendendo que um rei moderno tem ter a melhor formação e informação.

 

VIAJAR SEM SER PASSATEMPO
Quando o jovem D. Pedro é chamado à ribalta, com apenas 16 anos, por morte prematura de sua mãe, D. Maria da Glória (1853), decide concretizar as viagens que há muito era aconselhado a fazer, ora por seus tios a Rainha Vitória e o Príncipe Alberto, ora por seus pais e conselheiros. Era tempo de fazer uma ronda pelas nações mais civilizadas. No dia 28 de Maio de 1854, parte e visita Inglaterra, onde ficará a maior parte do tempo e depois parte para a Bélgica, Holanda, Prússia e Áustria, regressando a Lisboa a 17 de Setembro, no dia seguinte ao seu aniversário. Em 20 de Maio de 1855, volta a partir, regressando a 14 de Agosto. É em França que permanece, desta feita, mais tempo. Depois visita Itália, a Suíça, a Bélgica e a Ilha de Wight. São curiosíssimos os comentários. O jovem enfastia-se com as cerimónias longas e inúteis. Em contrapartida entusiasma-se com as experiências científicas e o progresso tecnológico. Com a Rainha participa na inauguração do Palácio de Cristal de Londres (1854). A cada passo, interessa-se pelas descobertas científicas: «Julguei dever começar pelo mundo animado para acabar com o mundo inanimado e com os objetos que são domínio da história» - dirá em Londres no mesmo ano. Mas em França recusa frivolidades: «Decididamente não nasci para fazer figura na sala de baile» (1855). D. Pedro enquadra o objetivo da viagem: «ninguém abordava a questão essencial, que é o facto de ser esta uma viagem de instrução. Pensavam que nos íamos divertir, porque em Portugal viajar no estrangeiro significa diversão». Não se trata, pois, de um passatempo, mas sim de um rigoroso contacto com o que de mais avançado se produz e se faz. Na Exposição Industrial de Paris de 1855, afirma: «aconteceu o que eu havia predito; as matérias-primas foram recebidas de uma maneira muito lisonjeira para o nosso futuro comercial; a indústria popular mereceu muita atenção; e a indústria regularmente organizada não fez efeito nenhum». No fundo, percebe que o importante é apresentar um país apto a responder positivamente aos estímulos imediatos da modernização. Em Londres mostra-se animado e ativo, mas ao chegar à Bélgica sente tédio pelo formalismo anacrónico da corte.

 

FINALMENTE, REI
Em 1855, com a maioridade, é aclamado rei e define um plano de ação ambicioso. Coloca à porta do Paço das Necessidades uma Caixa Azul e outra Verde, a primeira é para os pedidos de ajuda financeira e empenhos; a segunda é para reunir as Cartas dirigidas ao monarca, no sentido de obter sinais positivos. No reinado fugaz, avultam acontecimentos marcantes. Logo em 1856, no ano da inauguração do primeiro troço da linha de caminho-de-ferro, o rei assina um relatório sobre «O Caminho de Ferro de Leste». Nomeia em Junho o tio-avô Marquês de Loulé do Partido Histórico como chefe do governo, o qual vencerá as eleições de 9 de Novembro. Começa a funcionar a linha telegráfica entre Lisboa e o Porto. É decretada a liberdade para os filhos de escravos nascidos no Ultramar, depois de atingirem os 20 anos. Em 1857, é assinada a Concordata sobre o Padroado Português. Declara-se a epidemia de febre-amarela. Dá-se o incidente com a barca «Charles et George», aprisionada em Moçambique por traficar escravos. Em Dezembro é assinado o contrato matrimonial do rei com D. Estefânia de Hohenzollern-Sigmaringen. O Partido Histórico volta a ganhar eleições em 1858. É abolido o beija-mão real, e a 18 de Maio de 1858 realiza-se o casamento de D. Pedro e D. Estefânia, na Igreja de S. Domingos. O executivo cede ao ultimato do governo francês na questão da «Charles et George». A pressão contra as irmãs de caridade aumenta. Em 1859, é designado um novo governo, regenerador, com a participação de Fontes Pereira de Melo; inaugura-se a Mala-Posta para o Porto (34 horas de viagem). Ocorre a tragédia da morte de D. Estefânia com o tifo. D. Pedro V faz luto pesado, mas não baixa os braços e aprova o Curso Superior de Letras, onde tenta recrutar Herculano e Castilho, no entanto é Rebelo da Silva que se encarregará da cátedra de História. As relações com Herculano tinham esfriado o que dificultou a abordagem, que não terá sucesso.
O Rei encontra Camilo Castelo Branco na Cadeia da Relação e deseja vê-lo livre o mais depressa possível. Dirime-se com a Holanda a questão de Timor-Leste. Em Agosto de 1861, inaugura-se a Exposição Industrial em que o rei põe muitas esperanças. O infante D. Fernando, irmão do rei, contrai o tifo e morre, seguindo-se D. Pedro V e D. João e haverá tumultos contra o governo de Loulé, a quem acusam de envenenar os príncipes. Há uma aura que se estabelece com D. Pedro V, espécie de contraponto a D. Sebastião. Ruben Andresen diz: «O Rei vivia muitos anos para além da época em que reinava, e isso prova a não existência de uma torre de marfim onde os Reis e mesmo os indivíduos que não o são, pretendem habitar; D. Pedro queria que o igualassem como homem aos outros homens, profetizou uma igualdade entre aquele mínimo de condições humanas que é lícito qualquer ente possuir (…). O que fez foi pensado e pensava em tudo aquilo que necessitasse estudo e meditação».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 7 a 13 de Novembro 2011

 

 

Na nossa já épica viagem a Malaca e às Molucas, ao chegar a Ternate, e depois em Tidore, tivemos a evidente sensação de encontrar Luís de Camões, no Canto X de «Os Lusíadas». Lá estavam os cumes ferventes, as reminiscências das flamas ondeadas, as árvores do cravo ardente, além da noz-moscada… Foi como se Camões aqui tivesse estado, ficando a prova do rigor posto pelo poeta nesta sua obra-prima tão mal cuidada por todos nós. E a completar essas rigorosas referências, a alusão a uma velha lenda destas ilhas. «Aqui há as áureas aves, que não decem / Nunca à terra e só mortas aparecem». Contaram-nos, de facto, em Ternate que havia o velho hábito de cortar as patas a certo tipo de aves para recordar essas míticas «aves de prata» que não desceriam à terra senão mortas…

 

 

«OLHA CÁ PELOS MARES DO ORIENTE»
Duas lanchas rápidas levam-nos, com o fresco da manhã, de Ternate para Tidore. A viagem entre as duas ilhas é curta. Ao olharmos para Ternate percebemos a sua origem vulcânica pelos fumos muito ténues que vêm das entranhas da terra. «Olha cá pelos mares do Oriente / As infinitas ilhas espalhadas: / Vê Tidore e Ternate, co fervente / Cume, que lança as flamas ondeadas. / As árvores verás do cravo ardente, / co sangue português inda compreendidas». É Camões quem no-lo diz, no canto X de «Os Lusíadas», onde descreve com pormenor este limite oriental da divisão de Tordesilhas. O Dr. Mudaffar Sjah, Sultão de Ternate, recebeu-nos de braços e alma abertos, fazendo questão de lembrar que é bem-vinda a presença antiga dos portugueses nestas paragens, em nome de uma longa tradição (cheia de incertezas e vicissitudes) de entendimento, por isso falamos do diálogo entre culturas e religiões e no projeto da UNESCO da cultura da paz. Em seguida, vemos o tesouro, em especial a coroa, sobre que há muitas lendas, e cuja idade se perde na noite dos tempos. A verdade é que os sultões de Ternate e Tidore ganharam poder através dos portugueses, que para aqui trouxeram a prosperidade das especiarias, com o comércio da noz-moscada e do cravinho. E Fernão de Magalhães veio a Maluco pelo ocidente com base nas informações provindas de Ternate. Percebemos, pois, que as Molucas tiveram uma importância (mercantil e missionária) imensa. Malaca enquanto centro nevrálgico fez chegar aqui a sua influência, como bem vimos, antes de chegar aqui, vindos de Amboino, na antiga cidade cosmopolita de Makassar, nas Celebes, onde os portugueses pontificaram e coexistiam chineses, árabes, siameses, javaneses e malaios.

 

A MAGIA DE TIDORE
Em chegando a Tidore, fomos surpreendidos por uma luzida receção com danças tradicionais oferecida pela municipalidade. Sentimos a genuína generosidade de quem faz questão de repetir que há boas recordações ancestrais dos portugueses. Apesar de insistirmos em que é hoje e o futuro que nos importa, percebemos que a História antiga não foi esquecida. Depois das boas-vindas, visitamos o memorial dedicado a Sebastião d’Elcano, que substituiu Fernão de Magalhães no comando da circum-navegação, depois de o português ter sido morto nas Filipinas. O memorial está no Forte de S. José del Cobo, e Luís Filipe Thomaz recorda o Tratado de Saragoça de 1529, segundo o qual as Molucas foram confirmadas na zona de influência portuguesa e as Filipinas na castelhana. Os portugueses pagaram então 300 mil cruzados ouro, valor que foi incluído no dote de D. Isabel de Portugal (de quem fala o poema de Sophia sobre o Duque de Gândia), aquando do seu casamento com Carlos I de Espanha, V de Áustria. As fabulosas Ilhas de Especiarias caberiam ao rei de Portugal, por aqui terem efetiva inserção os mercadores e os missionários portugueses. As relações entre os sultões de Ternate e Tidore foram sempre atribuladas, e em virtude disso portugueses e espanhóis se digladiaram (e também se completaram), para beneficiarem da abundante produção das matérias-primas. Encontramos os portugueses em Ternate até 1575, saindo depois do ato tresloucado de João Silva Pereira, o sobrinho do capitão português, que matou o sultão Hairun. Ora em Ternate, ora em Tidore, numa alternância pendular, portugueses e castelhanos exerceram influência até 1665. Regressámos a Ternate por volta de 1605, mantendo-nos até 1663 numa situação de partilha luso-espanhola, altura em que os holandeses passaram a dominar através da Companhia das Índias Orientais (VOC). Os fortes de Santiago dos Cavaleiros e dos Reis Magos são marcos da presença ibérica, como em Ternate o forte de S. João Baptista. O sultão de Tidore, Djafar Sjah, um ancião sereno e afável, no seu novo palácio, pede-nos que não esqueçamos o importante património histórico deixado desse tempo antigo.

 

AS FOTOGRAFIAS EXTRAORDINÁRIAS DO BATÁVIA
Chegados a Jacarta, vindos de Ternate, procuramos aproveitar o pouco tempo que temos da melhor maneira. No Museu Nacional percebemos a influência em Java dos mercadores hindus, bem evidente na prolífera estatuária que nos permite entender como o sincretismo religioso da Índia se pode adaptar a regiões bem diferentes daquelas onde se desenvolveu, apesar das dificuldades que um sistema de castas levanta a qualquer expansão marítima. É muito problemático encontrar um modo eficaz de compatibilizar a vida quotidiana de uma comunidade embarcada com a rígida diferenciação das castas. Como ter refeições diferenciadas? Como encontrar lugares diferentes para estar ou pernoitar? De qualquer modo, a expansão do hinduísmo para as ilhas do sul foi um facto, como verificámos em Bali. As soluções foram, afinal, encontradas. Além da estatuária e da simbologia hindu, encontramos as referências etnográficas sobre o povoamento e as habitações indonésias. Satisfazemos, por fim, a nossa curiosidade ao vermos os padrões portugueses com as armas do rei D. Manuel, que aqui se encontram, mesmo sem sabermos ao certo de onde provêm. No Café Batavia, onde se invoca e sente o ambiente colonial holandês (lembremo-nos de que o desenvolvimento de Jacarta se fez a partir da decadência de Malaca), reencontramos o encarregado de negócios de Portugal, Pedro Coelho, e temos a agradável oportunidade de contactar com elementos proeminentes da comunidade tugu. São descendentes de portugueses ou de falantes da nossa antiga língua franca vindos de Malaca, Cochim e Ceilão, cuja identidade continua marcada pelo «papiar kristang». Falam-nos com entusiasmo das suas músicas e tradições, dos seus espetáculos e da sua ligação ancestral à cultura portuguesa. Sentimos alegria e entusiasmo e há um fervilhar de ideias. Testemunham este encontro singular as paredes silenciosas do Café, repletas de fotografias extraordinárias da autoria dos melhores autores (como Man Ray e Karsh), invocando artistas, escritores e as glórias dos anos de ouro do cinema.

 

OS IRMÃOS DA COMUNIDADE DE TUGU
Rapidamente passamos em revista mentalmente a sucessão de lugares, experiências e pessoas dos últimos dias – e com os amigos de Tugu percebemos que, se é verdade que há muito não falam ou ouvem o português, a verdade é que nas festas populares é a reminiscência da nossa língua que faz a diferença. Cada vez menos pessoas falam o português herdado do século XVI, mas notamos uma enorme vontade de preservação dessa memória, pela aprendizagem da língua contemporânea e pelo estudo e renovação das modas tradicionais. Uma jovem, de olhar vivo, confidenciou-nos, com legítimo e incontido orgulho, que está a aprender português contemporâneo. Naquele momento, voltámos a lembrar Tidore, as águas cálidas e vulcânicas, o fantástico banho de mar do dia anterior, a hospitalidade inexcedível. Quando deixámos Jacarta, a caminho de Singapura e nos despedimos dos irmãos de Tugu, ficou a promessa de que não esqueceremos as suas canções e o seu profundo e sentido apego à nossa antiga língua comum partilhada há quatro séculos.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

 

Fotografia: Helena Serra