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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MEMÓRIA DE NATAL

​Cheira a casca

de laranja

        amendoada ​

 

A luzes de suspiro

e azevinho

 

​Com estrelas de bainha

​pespontada

a crivo de saudade ​

renda e linho

 

Cheira a lenha ​

da memória resgatada ​

onde as rosas

adormecem de brandura​

 

​No vidro

        coalhado ​

de uma jarra

 

​E o vulto da mãe

é seda e asa

 

 

Maria Teresa Horta

 

Natal de 2011

A VIDA DOS LIVROS


de 26 de Dezembro 2011 a 1 de Janeiro 2012

 

Como habitualmente publicamos o conto de Natal de 2011
 


«A livraria do convento estava silenciosa. O Natal aproximava-se. Frei António preparava, como habitualmente, um sermão. Naquela altura do ano não havia por ali amenidades de tempo, o Inverno era rigoroso, o frio e a humidade estavam em toda a parte. Para variar, na livraria sentia-se especialmente a intensidade do tempo invernoso. Felizmente, nos últimos dias, naquela cidade de Pádua, o sol espreitava entre as nuvens, o que dava uma maior luminosidade, que entrava pelas janelas. Contudo, o mês anterior tinha sido muito agreste – e, se é certo que a chuva agora dera tréguas, a verdade é que o frio viera sem pedir licença. Apesar de sempre muito ocupado, Frei António lembrava-se muitas vezes do tempo ameno da sua cidade de Lisboa, e de Coimbra, onde fizera toda a sua formação com os cónegos de Santa Cruz. Naquele momento dedicava-se a preparar os tópicos para o Sermão da missa do Galo. Começara por invocar as circunstâncias em que Maria e José se afadigavam para encontrar um lugar onde pudessem pernoitar. Mas faltava-lhe ainda o tema, que lhe permitisse reter a atenção dos fiéis, sendo-lhes útil espiritualmente. Estando nestas reflexões, entrou pela porta da livraria o pequeno Manuel, que muitas vezes o vinha visitar, sem que se soubesse exatamente de onde vinha. Em tempos, a criança dissera que vivia algures na proximidade do convento, mas, além do nome, ninguém sabia o que quer que fosse da sua vida ou identidade, apenas ele dissera um dia que tinha quatro anos, mas agora já deveria ir nos cinco. Todos se perguntavam porém sobre de onde viria, como viveria e para onde partiria, quando subitamente desaparecia apenas com um misterioso «Volto já», que tantas vezes se prolongava por muitos dias até que, de novo, aparecesse. Ninguém já se perguntava sobre o pequeno Manuel, que ora se entretinha a passear por entre os livros e as imagens que povoavam a livraria, ora se encarregava de fazer mil perguntas, sobre tudo, normalmente a Frei António. Uma vez mesmo a criança dera-se a fazer apreciações sobre uma velha imagem de S. José, dizendo - «Não está nada parecido». Mas que saberia ele disso? Dias havia em que o diálogo se prolongava, uma vez que o frade tinha vagar suficiente para corresponder às bizarras perguntas daquela criança de cabelos negros com caracóis. Outras vezes, Frei António pedia ao pequeno Manuel que o deixasse preparar em paz os sermões que tinha por encargo fazer, sob indicação de Frei Francisco. A verdade é que todos sabiam no convento que, nos dias em aparecia o pequeno Manuel, o sermão saía mais inspirado e não poucas vezes influenciado luminosamente pelos estranhos diálogos que se desenrolavam entre Frei António e a criança. Naquele dia, porém, Manuel estava especialmente irrequieto. Aparecera, como era hábito, sem se anunciar e sem que alguém soubesse quando chegara e de onde viera. Ao contrário do que era costume parecia mesmo apostado em motivar a desatenção de Frei António relativamente ao seu sermão. O pequeno chegou mesmo a dizer a Frei António que estava a fazer de propósito, uma vez que notara nos últimos tempos uma especial desatenção quanto à sua pessoa. Por momentos, Frei António julgou estar assaltado por uma fúria. Por um lado, precisava de acabar o sermão a tempo da missa do galo. Por outro, não podia aceitar que, contra todas as regras vigentes aquela misteriosa criatura o importunasse de forma tão excessiva. No entanto, lembrou-se de como lhe faziam bem aqueles diálogos improváveis com Manuel. Não tinha explicação para o facto, mas era indubitável a serenidade que sentia ao falar com ele. Perante essa recordação Frei António procurou regressar ao trabalho e à sua tentativa de fazer, nas suas ideias mestras, o sermão natalício. Acontece, contudo, que continuava a faltar-lhe o tema. Era muito pouco recordar aquela noite de Belém, o édito de César Augusto para o recenseamento, a procura de uma estalagem, o desencontro, as portas fechadas. Tantos corações desatentos… Frei António esquecera-se de Manuel e, de súbito, notou que a criança subira para a banca em que tentava escrever de pé e estava sentada à sua frente num equilíbrio muito instável. É verdade, lembrou-se Frei António que, noutras ocasiões, Manuel fizera bizarros exercícios em que parecia quase suspenso, sem quaisquer apoios. Estranhamente, agora como noutros momentos, apesar de desafiar as leis do equilíbrio, não parecia instável. De novo o frade teve de suster o seu ímpeto. Então não queriam ver que aquela criança queria mesmo distraí-lo e tirá-lo das suas obrigações? Era de mais – sobretudo porque agora o pequeno começara a cantar, com uma voz naturalmente infantil, mas muito bela e segura. Então vários dos frades que estavam na proximidade, acorreram com a curiosidade de desejarem ver aquela estranha visita. Nessas vindas periódicas era a primeira vez que tal acontecia. Noutras, a criança fazia perguntas, tantas vezes sobre trivialidades (sobre quem eram os copistas e os autores das iluminuras que enchiam a livraria, sobre quem eram os jardineiros e como escolhiam as árvores e as plantas dos jardins, sobre a razão de ser dos hábitos dos frades menores, sobre o significado e modo de fazer os nós da corda que cingia o hábito). Outras vezes, fazia perguntas inesperadas, que Frei António tinha muita dificuldade em responder (como era isso de medir o tempo e como era possível não chegar atrasado aos compromissos)… Manuel era uma criança especial, os seus olhos eram penetrantes de atenção, as suas palavras eram por vezes aparentemente inseguras, mas encerravam um especial cuidado e rigor. Frei António naquela circunstância não tinha, porém, tempo a perder – e não o escondeu: «Agora não posso atender. Por favor, escolha outro dia; porque agora preciso de acabar este sermão, uma vez que tenho uma missão importante a cumprir». Noutro dia, talvez o pequeno Manuel se tivesse esgueirado, num dos seus desaparecimentos inusitados, mas não, ficou por ali, com se Frei António nada lhe tivesse dito. Depois de cantar, entrou em mais uma longa série de perguntas, cada uma mais trivial do que a anterior - «Frei António, como se protege do frio? Frei António, já pensou se abriria a porta do convento quando batessem à porta Maria e José?». «Frei António, por que razão não me dá atenção?». Mas Frei António pediu, uma vez derradeira, que precisava de terminar o exercício que estava a tornar-se tão difícil. Ainda não passara das ideias gerais e tinha de fazer a pregação. Nada, todavia, parecia demover o pequeno Manuel. Ele ali continuava irrequieto, capaz de encontrar os mais ínfimos pormenores em tudo o que o rodeava e para que olhava. Nenhum pormenor lhe escapava. Agora, a criança subira a uma das estantes mais altas. Ninguém ousava dizer ou fazer alguma coisa, para o impedir. Todos estavam estupefactos, nunca aquilo acontecera. Frei António esperava, sem poder acrescentar uma linha ao que já escrevera, pois não tinha atenção possível. Foi então, que o frade começou a perceber que algo de muito importante se estaria a passar. E lembrou-se da pergunta insistente de Manuel sobre a falta de atenção relativamente a ele… Entretanto, Manuel deu um pequeno salto e colocou-se mesmo ao lado do frade. Frei António não resistiu e disse ao jovem visitante: «Tenho de fazer o sermão de Natal, pois sem ele não posso cuidar das almas destes fiéis que esperam pela minha palavra». De um modo firme e enigmático, a resposta não se fez esperar. O menino olhou fixamente os olhos de Frei António e disse-lhe: «Esse é o pior argumento sobre falta de tempo, pois sobre as almas sou eu que cuido, e continuo por aqui». Frei António caiu em si, e compreendeu. Então, como de costume, ouviu-se o rápido «Volto já» e o pequeno Manuel desapareceu. E consta que nesse dia o sermão de Frei António foi mais eloquente e inspirado de sempre e versou sobre a desatenção, a indiferença e a necessidade de não nos distrairmos do essencial da vida, ou seja, dos pequenos pormenores…».       

 

Guilherme d'Oliveira Martins

PALAVRAS PARA GONÇALO RIBEIRO TELLES

 

  "Cantam ao longe. Anoitece.

   Faz frio pensar na vida ;

   E a Natureza parece

   Dizer, em voz comovida,

   Que o Homem não a merece".

 

 

   Há meio século, Carlos Queiroz adivinhou. Parecemos ter perdido o fio de Ariana, regressou o Minotauro e o palácio de Cnossos pode  uma vez mais desmoronar-se.

   Nem já Murilo Mendes, como há quarenta anos, prometeria voltar " para saudar o reino mineral onde a desordem é mínima" . Até no reino mineral a desordem é máxima e aquilo a que chamamos progresso é um rasto de caracol.

   Mas existem homens como o Gonçalo, que parecem ter estado naquela ardente madrugada bíblica em que Jesus Cristo entrou na barca de Simão-Pedro e lhe disse: " Faz-te ao largo; lancem as vossas redes para pescar".

   "Duc in altum" - faz-te ao largo, olha para longe, e as redes romper-se-ão com o peixe em abundancia.

   Sempre o conheci, ora como um principe flamengo saído do retábulo do juízo final de van der Weyden em Beaune, ora a clamar no deserto entre nuvens de gafanhotos.

   O seu paradigma foi a geometria sábia que a Natureza nos oferece, envolta na substância preciosa que tece a evolução do Mundo. A beleza como pedra de toque da verdade e o homem como elo de ligação da Terra ao Universo.

   Foi gradualmente chegando aos pontos fulcrais da vida como se afinam os instrumentos de uma orquestra e é isso a cultura.

   Insurgiu-se corajosamente contra a ignorância assassina do futuro, mas soube tambem olhar para trás, integrar na realidade dos seus sonhos as coisas imaginadas, forjadas, criadas pela humanidade ao longo dos séculos, os seus mitos e os seus símbolos.

   Assim enfrentou e continua a enfrentar o que há-de vir, com o seu corpo que é a sua alma, rochedo de força que não tergiversa e deixa por onde passa o perfume das flores que se abrem e dos frutos que amadurecem, o brilho do cobre,  a lembrar-nos de que a Natureza vive ainda.

   Se no teste das associações viesse à baila o seu nome, eu responderia: " S. Cristóvão ", que transportou o mais extraordinário peso do mundo com uma ímpar convicção humana.

 

                                                                               Alberto Vaz da Silva

 

A VIDA DOS LIVROS


de 19 a 25 de Dezembro 2011

 

Stéphane Hessel e Edgar Morin acabam de publicar «Le Chemin de l’Espérance» (Fayard, 2011), onde nos apresentam um alerta para os dias de hoje. A política, a economia, a sociedade e a cultura precisam de uma tomada de consciência cidadã no sentido da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade e da responsabilidade. Fala-se muito de indignação, e essa foi a palavra usada por Hessel, no entanto os dois autores, nonagenários mas de uma lucidez exemplar, propõem-nos uma nova esperança, assente na vontade emancipadora e da recusa da indiferença. O mesmo tem feito Eduardo Lourenço, agora justamente galardoado com o Prémio Pessoa!

 


Audrey Cerdan, Rue 89.

 

FALAR COM EDGAR MORIN
Foi há dias, em Paris, nas novas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, em La Tour Maubourg. Conversámos sobre o futuro da Europa. O convidado era Edgar Morin, e partilhei o diálogo com José Mariano Gago. Edgar Morin é um velho amigo de Portugal e recorda o momento, no início dos anos sessenta, em que, com Jean-Marie Domenach e nas proximidades do Congresso para a Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, começou a ter um contacto fraterno, que nunca mais seria interrompido, com António Alçada Baptista e o grupo de «O Tempo e o Modo». Depois das desconfianças dos anos quarenta e cinquenta relativamente a uma Europa de tecnocratas com conotações americanas, vieram novas circunstâncias. A Europa tornou-se oportunidade de aprofundar a democracia. A evolução a leste originou muitas perplexidades e dúvidas, a sul do velho continente havia uma opinião pública que se abria e se preparava para a democracia, depois, o choque petrolífero produziu uma nova consciência ecológica e obrigou a mudar de ideias e estratégias. Com Roselyne Chenu, braço direito de Pierre Emmanuel, presente no auditório de Paris, o pensador recordou esses encontros distantes, envolvendo oposicionistas ibéricos, tão diferentes como José Bergamín, Gil Robles, Dionísio Ridruejo ou Ruíz-Gimenez. Os jovens João Bénard da Costa e Helena Vaz da Silva tornaram-se facilmente referências de inovação e inconformismo e são lembrados com saudade. José Vidal-Beneyto vem à baila, como entusiasta de um projeto europeu, capaz de incorporar a história antiga do Mediterrâneo e a evolução moderna, desde às guerras civis às novas exigências da ciência, da educação e da cultura. É a memória de grandes amigos comuns que há pouco nos deixaram, mas cuja lição está bem presente. E como será possível falar hoje de Europa sem lembrar esses contactos, de diálogo e de afeto, de uma geração para quem estavam ainda bem vivos os efeitos dramáticos da Guerra e a exigência da construção da paz e da democracia, através da liberdade de homens e mulheres de cultura?

 

CRISE SEM ILUSÕES
Hoje, a crise europeia é profunda e não admite ilusões. Morin não pode deixar de exprimir o seu pessimismo. Mas considera que não há saída pacífica e justa sem o aprofundamento dos elos europeus. A crise financeira que vivemos deve-se ao facto de a civilização do poder se ter sobreposto a uma civilização do diálogo. A ilusão, o imediatismo, o consumo exacerbado, o produtivismo, a indiferença ética, tudo isso contribuiu para chegarmos onde estamos. Em lugar de uma cultura de criação, impôs-se a especulação, a lógica de casino e a busca de ganhos sem sustentabilidade – enquanto outros poupavam nós gastávamos. A noção de um progresso sem interrupção nem limites gerou o fanatismo do mercado e a incompreensão sobre o facto de a humanidade ter de lidar com a consciência dos limites. Afinal, como o escritor diz na sua obra «La Voie. Pour l’Avenir de l’Humanité» (Fayard, 2011), celebrizada por Stéphane Hessel, há que compreender que existem elementos contraditórios que têm de ser articulados e tidos em consideração hoje: a mundialização e a desmundialização; o crescimento e o decrescimento; o desenvolvimento e o envolvimento; a conservação e a transformação. Edgar Morin fala-nos, por isso, de metamorfose como um processo complexo abrangendo a política, a sociedade, a economia e a cultura, em que vários fatores se influenciam, obrigando à compreensão da diversidade. Morin propõe, assim, a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – por exemplo, a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de autoreconstrução. A noção de metamorfose é, deste modo, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Se a mundialização está na ordem do dia, não podemos esquecer que o local e o tribal existem como elementos, a um tempo, de coesão e de fragmentação, de proximidade e de distância. O crescimento económico torna-se insuficiente e perigoso, uma vez que desvaloriza a proteção dos recursos disponíveis e a sua renovação. O desenvolvimento humano tem de ser integrado e capaz de ligar a coesão, a confiança, o capital social e a solidariedade. Conservação e transformação vivem ligadas uma à outra, o que obriga à criatividade e ao «conhecimento do conhecimento», como impulsionadores da compreensão.

 

O PROVÁVEL E O IMPROVÁVEL
O escritor considera que a catástrofe pode estar no horizonte, mas acredita em que é possível inverter o curso dos acontecimentos. E recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos. Terêncio é chamado – temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. E se falo de «comunidade», dou-lhe o sentido de pessoa em comum (gesamtperson, de que falava Landsberg). A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa e imperfeita, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose!

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Cesaria Évora: a voz da boa esperança

 

Por Teresa Vieira

 

Realizou no decurso da sua existência o canto gravado no real de Cabo Verde. Tudo passou a pela voz exímia de Cesaria num cantar de origem domiciliado no coração.

 

De longe escutámos este jeito de entoar o importante resumo das realidades numa mão aberta de voz.

 

De perto ouvimos este novo humanismo de morna no reflectir de cada canção desta Senhora que deu sentido em todos os instantes em que a escutámos.

 

Hoje, o Mindelo fez um silêncio ligado à grande perda.

A VIDA DOS LIVROS


de 12 a 18 de Dezembro 2011

 

«Pai-Nosso que Estais na Terra» de José Tolentino Mendonça (Paulinas, 2011) é, segundo o subtítulo da obra, «o Pai-nosso aberto a crentes e a não-crentes» e José Mattoso afirma que essa abertura constitui uma característica singularíssima desta obra: «há milhares de comentários ao Pai-nosso, a única oração que Jesus nos ensinou. Não conheço nenhum ao nosso Pai que está na Terra». É por aí que o escritor faz do seu comentário um diálogo aberto a todos. Nesse sentido, este é um livro para este tempo, uma vez que procura sinais de esperança num momento de grande dúvida e incerteza.

 

 

ENTRE A DISPONIBILIDADE E O ENCONTRO
Estamos perante um livro de disponibilidade e de encontro. Pensei nele, há dias, quando em Ponta Delgada, numa iniciativa da Comissão Diocesana Justiça e Paz, me perguntaram como será possível sermos solidários e próximos nos dias de hoje – e respondi que a melhor maneira é darmo-nos como presentes e disponíveis, em lugar de nos impormos. E é essa disponibilidade de dizer «aqui estou!», fundamental em tempos de solidão e indiferença. O tema deste livro é exatamente esse: o de considerar a disponibilidade de quem dá e de quem recebe. De um modo que apela ao desassossego, o nosso autor fala-nos do Pai-nosso com sinal de unidade que tem tudo a ver connosco, e com as nossas diferenças, por isso nos fala da terra, não como lugar de chegada, mas como ponto de passagem e de partida, como instância de peregrinação. De facto, ao dirigirmo-nos ao Pai que está nos céus e na terra, sentimos que Charles Péguy tem razão ao invocar o sentido pessoal e comunitário de um diálogo: «É necessário salvar-se conjuntamente, precisamos de chegar juntos ao Paraíso, precisamos apresentar-nos juntos no Paraíso. É necessário pensar nos outros, é necessário doar-se aos outros. O que é que Deus nos dirá, se chegarmos ao paraíso sem os outros?». É esta a lição fundamental desta extraordinária oração que se baseia no amor e na responsabilidade para com os outros – a outra metade de nós mesmos. E é assim que a lição fundamental deste belo livro se pode resumir nesta afirmação: «Ao recitar o Pai-nosso somos chamados a viver uma aventura que Jesus quis que fosse assim: partir da nossa experiência humana e comum, do nosso viver ferido para descobri-lo companheiro, como Ele foi companheiro dos discípulos de Emaus, naquele entardecer que é ainda o nosso».

 

ABRIR O CORAÇÃO
A Regra de S. Bento diz: «Abre o ouvido do teu coração». A arte da escuta exige que o diálogo seja efetivo. «Escutarmos e podermos ser escutados, até ao fundo e até ao fim, abre, no Espírito, horizontes mais amplos do que aqueles que sozinhos conseguiríamos avistar e relança-nos no caminho da esperança». A cada passo encontramos a palavra esperança, ligada ao «bom uso das crises». Num tempo de escassez de mestres, as experiências «são realmente grandes mestres, que têm alguma coisa a ensinar-nos». Mounier falou dos acontecimentos, esses nossos grandes mestres interiores, e Etty Hillesum implorou: «Meu Deus, esta época é demasiado dura para gente frágil como eu. Mas sei igualmente que, a seguir a este, outro tempo virá». Impõe-se, de facto, neste tempo de crise, uma atenção especial ao que nos rodeia, e dessa atenção tem de resultar o cuidado, que está na etimologia de caridade. Por que razão chegámos aqui? Porque não cuidámos de algumas coisas elementares, designadamente de que o progresso não é ilimitado e de que o desenvolvimento humano não existe, se não pusermos as pessoas no centro da economia e da sociedade. Daí que a austeridade que aí está e que até pode ser boa conselheira, não possa ser cega e surda relativamente à justiça. Não é um fim em si, a austeridade tem de ser um instrumento de dignidade e de respeito mútuo. Tem de ser modéstia, sobriedade e de reciprocidade. «Todas as vidas cabem na imagem quotidiana, quase trivial, do pão que se parte e reparte. Porque as vidas são coisas semeadas, crescidas, maturadas, ceifadas, trituradas, amassadas: são como pão. Porque não apenas degustamos e consumimos o mundo: dentro de nós vamos percebendo que o mundo, que o tempo, também nos consome, nos gasta, nos devora. Por boas e por más razões, ninguém permanece inteiro. Somos uma massa que se quebra, um miolo que se esfarela, uma espessura que diminui». Não podemos continuar a pôr o consumo desenfreado em primeiro lugar, a gastar o que se tem e o que se não tem, a viver a crédito, a julgar que a especulação pode ocupar o lugar da criação, a jogar permanentemente com as aparências, a praticar a ilusão dos resultados que não existem – tudo isso obriga a compreender que devemos merecer o pão nosso de cada dia.

 

O MISTÉRIO DAS TENTAÇÕES
José Tolentino Mendonça recorda, em determinado momento do seu livro, o episódio das tentações de Jesus: «Então o espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: “Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães”. Respondeu-lhe Jesus: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”». Depois, conhece-se o que segue: o diabo coloca primeiro Jesus sobre o pináculo do templo e em seguida num monte muito alto, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória. Mas o resultado é que, em face das respostas de Jesus, «o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no» (Mt., 4,1-11). O autor diz-nos que estas tentações não aconteceram num só dia e que representam a vivência das provações da condição humana. Mas quais as tentações que nos rodeiam e que aqui estão figuradas? O materialismo, o providencialismo e o absolutismo. O materialismo e a idolatria da matéria, numa vertigem de tudo ocupar com a satisfação imediata dos desejos e das explicações simplificadoras. O providencialismo, que confunde a relação com Deus com as interpretações fantasiosas e mágicas. «Não nos podemos atirar de pináculos para que Deus nos segure. Temos de integrar saudavelmente os nossos limites e fazer a nossa parte». E o absolutismo, que faz «do domínio da posse a fonte de felicidade» e que confunde a glória passageira com a experiência da magnitude da dignidade. Mas, para o nosso escritor, temos de lembrar uma quarta tentação, bem ilustrada pelo drama de T.S. Eliot «Crime na Catedral». Aí o que está em causa tem a ver com os desejos de fidelidade poderem ser sinais de orgulho e de vaidade… Será que não cometemos o pecado da soberba perante as virtudes que julgamos possuir? E é essa quarta tentação que pode minar a confiança, uma vez que ela é verosímil e que nos pode atingir. O cristianismo caracteriza-se, porém, por aproximar o exemplo do Filho de Deus das nossas próprias provações. Não se trata de nos compararmos com Alguém que não pode compreender-nos, mas de colocar as nossas angústias ao alcance do próprio Deus. Essa é a chave da Encarnação. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» - os ecos do Salmo são o ponto nodal de um profundo diálogo. Daí a confiança nascida numa comparticipação que tem a ver com a experiência humana. E Simone Weil afirma: «Só a confiança dá suficiente força para que o receio não seja a causa da queda».

 

«VAI ONDE NÃO POSSAS…»
Angelus Silesius diz: «Vai onde não possas / vê onde não vês: / escuta onde não ressoa / e assim estarás onde Deus fala». Este é o silêncio fundamental que exige que oiçamos o essencial por parte de quem «é o Jesus que nos interpela a cada passo e inesperadamente». Com fome, deste-me de comer, com sede deste-me de beber, nu, vestiste-me… Afinal, esse é o sinal de responsabilidade que se nos pede. E este ir onde se não possa, não é mais do que ser cada vez mais exigente e nunca acomodado, mantendo os olhos abertos.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 5 a 11 de Dezembro 2011

 


Um dos livros mais importantes sobre a Restauração de Portugal de 1640 é a “História de Portugal Restaurado” da autoria de D. Luís de Menezes, Conde de Ericeira (1632-1690). Teve numerosas edições e foi republicado com a grafia e pontuação atualizadas, por António Álvaro Dória (1902-1990), em 1945 e 1946, na Editora Civilização, em 4 volumes. É uma obra de grande interesse sobre um período difícil de estudar e interpretar. A sua leitura deve ser feita como uma meditação sobre as circunstâncias existentes, tornando-se necessário compreender como Portugal no final do século XVI e no século XVII respondeu aos desafios de um mundo em profunda mudança.

 


Armas de Portugal no Forte de Santiago do Outão (Setúbal).

 

CAUSAS DA DECADÊNCIA
Continuando a ler a obra de que falámos há quinze dias («História Económica de Portugal (1143-2010)» de Leonor Freire Costa, Pedro Lains e Susana Münch Miranda, Esfera dos Livros, 2011) poderemos tentar perceber Portugal, para além de alguns lugares comuns repetidos, mas que as análises cuidadas não confirmam. Afinal, a decadência do final do século XVI é muito complexa, não tendo apenas raízes internas. De facto, a União Dinástica teve efeitos positivos e negativos, que foram agravados pela tentação centralista do Conde Duque de Olivares e pela Guerra dos Trinta Anos. Contudo, até 1620 houve efeitos económicos favoráveis, devido à complementaridade territorial e às potencialidades económicas, contrariados drasticamente pela influência mundial crescente de holandeses e ingleses, que puseram termo ao domínio português da rota do Cabo. Vamos, no entanto, um pouco atrás, para compreender melhor. Enquanto na monarquia agrária medieval portuguesa se destacou a venda, fora dos mercados nacionais, de produtos como as uvas, os figos secos algarvios, algum vinho e o sal, que deu a Setúbal proeminência como porto de exportação por excelência, o império dos séculos XV e XVI acrescentou a distribuição de mercadorias provenientes de outros continentes ao nosso comércio externo. A baldeação de produtos provenientes de África e depois do Índico nos portos portugueses destinados à Europa permitiu a cobrança de importantes receitas aduaneiras, que constituíram a base do que a obra designa (e bem) como Estado fiscal. Assim se chegou ao monopólio ou exclusivo da pimenta e das especiarias. O ciclo do açúcar, iniciado na Madeira, abriu caminho ao comércio de um bem com grande procura e gerador de apreciáveis rendimentos. Depressa, porém, S. Tomé e o Brasil se imporiam como produtores por excelência, com preços mais favoráveis, apesar das medidas protecionistas (quotas de mercado) do duque de Viseu em relação à Madeira. Em cerca de cem anos o Brasil tornar-se-á o maior exportador mundial de açúcar – e o Atlântico começará a afirmar-se no âmbito do império português, além do açúcar, pelo ouro e pelos escravos. A escravatura começa por se centrar a norte do Equador, só se tornando significativa a ligação Angola / Brasil no século XVII. Cabo Verde abastece, como entreposto, mão-de-obra vinda da costa da Guiné, não só para as ilhas atlânticas, mas também para a Índias espanholas. E em S. Jorge da Mina ocorre não só a compra mas também a venda de escravos, para obtenção de ouro. Falando de ouro ainda, importa dizer que em princípios do século XVI os réditos do açúcar eram equivalentes aos do metal precioso, com ligeira vantagem para este. E assim se ia reajustando o centro de gravidade do império.

 

O CAMINHO DA ÍNDIA
Depois de 1498 e da viagem de Gama, a ligação regular entre Portugal e o Índico vai incrementar os lucros do reino, em virtude do trafego da pimenta a preços muito favoráveis para os mercados europeus. Ao longo do século XVI, verifica-se, porém, uma descida da quantidade de pimenta transacionada, ainda que os rendimentos nominais não tenham registado quebra significativa, em virtude de a segunda metade do século ter sido caracterizada por uma acentuada alta nos preços e consequente depreciação monetária. É de salientar, aliás, a tendência verificada na década de 1580 para uma prevalência do comércio do Atlântico e em especial do Brasil, por comparação com os fluxos do Índico. Desse modo, estava-se a preparar já a transição para um império atlântico, diferente do que antecedera a chegada de Vasco da Gama à Índia. Houve quebra nas importações de pimenta e redução dos respetivos preços. Refira-se a degradação da qualidade das embarcações e a sobrecarga das mesmas, que reduziu a eficácia do transporte e induziu a diminuição das compras e vendas, na transição dos séculos XVI para XVII. Em teoria, navios maiores poderiam transportar uma quantidade maior de mercadorias, mas as possibilidades de naufrágio aumentavam significativamente para eles, como grandes perdas. No entanto, a Carreira da Índia manteve-se estável até 1620, considerando não só o monopólio da coroa na pimenta, mas também o comércio de particulares, em especial no que tocava aos têxteis asiáticos. As receitas do Índico compensavam as importações necessárias ao pagamento das transações imperiais (apesar do fim da feitoria de Antuérpia). O resgate do ouro em S. Jorge da Mina obrigava à provisão de panos norte-africanos, linhos, objetos de cobre e latão. Por seu turno, o comércio da pimenta e das especiarias exigia um «cabedal» constituído por metais e têxteis italianos e valencianos. A prevalência do transporte não permitiu, porém, que Portugal desenvolvesse industrias e manufaturas que reduzissem o peso das importações vindas do norte da Europa e do Mediterrâneo, o que fragilizou a nossa estrutura económica. Se recordarmos o dilema formulado por António Sérgio, na linha da Geração de 70, entre fixação e transporte, percebemos que há elementos dessa análise cuja pertinência se mantém. Os autores têm, porém, o cuidado de não seguir a pista segundo a qual a derrota de Alcácer-Quibir foi um fim.

 

CONSEQUÊNCIAS DA UNIÃO PESSOAL
A União Dinástica, a partir de 1580, potenciou a complementaridade entre as monarquias ibéricas com efeitos mútuos benéficos. Por outro lado, o incremento da produção brasileira do açúcar, reforçou a frota portuguesa, apesar de haver uma tendência para holandeses, franceses e ingleses ganharem importância crescente. Se é verdade que nas Cortes de Tomar foram salvaguardados os elementos de independência, com relevância para os rendimentos e monopólios ultramarinos, a verdade é que a política dos Habsburgos veio afetar seriamente a economia portuguesa. Os conflitos dos Áustrias levaram a que o império português fosse atacado por holandeses, ingleses e franceses, com o pretexto do conflito que tinham com o Sacro-Império. É verdade que a decadência da «Carreira da Índia» vinha de 1570, agravada por desinteligências e «fumos», inerentes a um império muito extenso, com grandes dificuldades de coordenação e governança, no entanto Portugal irá sofrer sobretudo por força do envolvimento no grande conflito europeu que culminará na Guerra dos Trinta Anos (1628-1658). Holandeses e ingleses (e menos os franceses), agindo segundo a conceção de «Mare Liberum» de Hugo Grócio, conduziram a que os navios portugueses perdessem o controlo da rota do Cabo. O sistema atlântico assentava no açúcar e nos escravos, vindos também de Angola. Se o eixo de gravidade ainda pendia para a Ásia em finais do século XVI, a verdade é que «despontava um complexo económico capaz de dilatar as receitas da monarquia e dos particulares». Daí o crescimento nominal da receita alfandegária até 1607. Assim, as rendas no núcleo asiático darão lugar à importância crescente da economia brasileira, graças aos bandeirantes e aos engenhos do açúcar.

 

Guilherme d’Oliveira Martins