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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 27 de fevereiro a 4 de Março de 2012

 

Quem quiser compreender o Portugal do final do século XVIII e inícios de XIX terá de ler uma preciosidade na literatura de memórias que se intitula «Recordações de Jácome Ratton sobre Ocorrências do Seu Tempo em Portugal», de 1813 (com reedição da Fenda, 1992). Ratton (1736-c. 1822) foi um homem de indústria, nascido em França e emigrado em Portugal, onde teve sucesso e influência, havendo, no entanto, caído em desgraça no período das invasões francesas – sendo preso e depois exilado em Inglaterra (1810-1816). A obra em questão apresenta-nos um relato muito interessante e positivo sobre as mudanças ocorridas em Portugal durante a vida de quem viveu na velha Rua Formosa (hoje Rua do Século) paredes meias com a casa de família de Sebastião José de Carvalho e Melo.

 


O PERÍODO POMBALINO

Para José-Augusto França, o melhor intérprete do pombalismo, «um documento político que ficara célebre como balanço e reflexão da situação ao termo do reinado joanino, o chamado “Testamento Político» de D. Luís da Cunha, velho diplomata “estrangeirado” de visão cosmopolita, recomendara ao príncipe herdeiro Sebastião José de Carvalho e Melo, antigo e modesto embaixador em Londres e em Viena, para seu conselho – e enumera-lhe as qualidades de “génio paciente e especulativo” que agora, na crise do terramoto e nas suas imediatas providências, tinham campo de ação, não só circunstancial mas imbricado num quadro de ideias de governação de “despotismo iluminado” que deu, na história do país, os resultados que pôde dar, por razões de estrutura e de conjuntura, e de qualquer modo preparou uma grande mudança na relação de forças das classes sociais». O certo é que os acontecimentos vieram a dar razão a D. Luís da Cunha, não só porque Sebastião José demonstrou saber agarrar bem a situação, mas também porque as experiências londrina e vienense se revelariam cruciais para a prática de homem de Estado e de bom conhecedor dos meandros administrativos. De facto, a premonição do velho diplomata foi notável, admire-se ou não a figura complexa do futuro Conde de Oeiras. Um homem é um momento, como dirá o autor do «Portugal Contemporâneo» relativamente a Mouzinho da Silveira, e a verdade é que para Carvalho e Melo esse tempo decisivo foi o terramoto de 1755. A circunstância agigantou o homem. Tenha dito ou não tenha «Enterrar os mortos e cuidar dos vivos», a realidade é que agiu em conformidade com rigor e proficiência, persistência e afinco. E tem razão quem afirmou que ao terramoto físico se sucedeu o terramoto político, que pôde reformar duravelmente a nação, que vivera os efeitos de ostento das riquezas do ouro do Brasil, com todas as consequências de decaimento.

OS ESTRANGEIRADOS
Cabe falar dos «estrangeirados», sobre quem tanto se tem dito, muitas vezes sem uma compreensão exata da sua importância. O seu papel não é exclusivo, mas tem de ser associado à evolução interna. De facto, quando falamos de iluminismo em Portugal temos de dizer que já no reinado de D. João V houve tentativas para modernizar o ensino e a ciência de acordo com as novas correntes de pensamento. Lembrem-se os contactos da governação joanina com Jacob de Castro Soromenho em Londres e a obra de Manuel Azevedo Fortes («Lógica Racional Geométrica e Analítica», 1744), sob a influência de Descartes e Locke. Já Luís António Verney («Verdadeiro Método de Estudar», 1746) fala de defeitos e enfermidades da cultura portuguesa, com intensidade crítica, e propõe um ideário global iluminista. Sem ser em rigor um estrangeirado, Sebastião José era um cosmopolita, conhecedor da importância da emergência da Boa Razão, fosse ela designada por «enlightment», «aufklärung» ou «lumières». Os estrangeirados eram intelectuais ou académicos que estavam fora da universidade portuguesa, sob os efeitos da Inquisição, criticando o atraso científico e a influência do fanatismo. O obscuro diplomata Carvalho e Melo tomara contacto com os movimentos do pensamento que emergiam na Europa e pôde ser proeminente artífice da influência iluminista. Jacob de Castro Soromenho, António Nunes Ribeiro Sanches e Verney, enquanto estrangeirados, tiveram indiscutível influência no pombalismo. Mas, além dos estrangeirados, o franciscano Frei Manuel do Cenáculo e Teodoro de Almeida, padre oratoriano, de uma congregação que passou de suspeita a aliada da política de Sebastião José, foram dos iluministas de maior influência. Foi, aliás, o oratoriano quem afirmou: «Enfim, abrindo os homens os olhos, depois de longo tempo, chegaram a conhecer que a experiência, o cálculo e as matemáticas haviam de conduzir a razão para descobrir a verdade no conhecimento da natureza (…).Portanto, com uma mão na matemática, com outra nas experiências físicas, de ambas se valeram para introduzir nas escolas a boa filosofia».


DESPOTISMO ILUMINADO
Quando lemos, porém, a «Dedução Cronológica e Analítica» (1768) e o «Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra» (1771) sentimos que os textos oficiais do pombalismo são marcados por uma lógica de combate político que tem como alvo a Companhia de Jesus e que corresponde à fase final do consulado de Pombal (marcada pelas repercussões da tentativa de regicídio e da centralização brasileira) faltando-lhes a distância crítica que encontramos nos principais pensadores iluministas. A reforma económica e financeira, a criação do Erário Régio, a reconstrução da cidade de Lisboa, a refundação da Universidade de Coimbra contribuirão decisivamente para tornar a herança de Carvalho e Melo como relevante para a modernização portuguesa, independentemente de apreciações unívocas («mal por mal, antes Pombal», dirá o povo de Lisboa). E é curioso verificar como a chamada «Viradeira», depois da morte de D. José, manteve as linhas fundamentais da ação pombalina. E lembre-se que a Lisboa de Pombal, símbolo da razão e das luzes, com o seu plano ortogonal, o domínio da natureza através da estacaria de pinho verde para impedir inundações: «foi a maior obra coletiva realizada na arte nacional, e uma das grandes empresas levadas a cabo na história do país – “toda feita por mãos portuguesas” como o ministro sublinhou na hora do balanço» (J.A. França).

 

UM CURIOSO RETRATO DE POMBAL
Jácome Ratton dirá de Sebastião José que «possuía muitas qualidades para ser, como foi, um grande ministro. Empregando todo o tempo da semana no serviço do seu amo, reservava as manhãs dos domingos para os negócios da sua casa, nos quais se ajuntavam todos os seus almoxarifes, feitores e mestres de obras, no quarto da sua contadoria metodicamente escriturada com livros em partes dobradas e ali conferia com eles, recebia e pagava à boca de cofre as entradas e despesas da semana precedente». Era «extremamente reservado», sabia ouvir; «as suas respostas eram graves, breves e terminantes», «não consta que se enfadasse e descompusesse as partes que o buscavam». «Possuía mais o Conde de Oeiras um arranjo metódico, tanto na distribuição do seu tempo, como nas matérias de que se achava encarregado; e foi por efeito desse arranjo metódico que ele pôde dirigir bem todas as repartições do Estado», «deixou, quando saiu do ministério, 48 milhões de cruzados no Erário Régio, e 30, segundo ouvi, nos cofres das décimas, riqueza que jamais se tinha ajuntado desde a descoberta das minas». E Ratton acrescenta ainda: «Este espírito metódico se mostra bem no arranjo económico da sua própria casa, o qual confirma o axioma de que quem não sabe bem governar a sua casa não presta para governar o estado», esclarecendo que foi «da sua estrita economia que ele pôde fazer a sua grande casa, e não à custa do Estado», tendo vivido sempre «sem fausto nem aparato».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

“Porque tu? é uma rosa”

 

 

Em redor da casa, sobre uma terra musgosa onde assenta a grande mesa,

nas raízes que descem onde nunca fui,

lá onde o corpo e a túnica se tecem em espiral,

lá também onde ponto por ponto um entendimento inventa o pássaro

e este averigua o incêndio no céu do coração,

e no fuso da palavra que não carece de nada nomear,

um deus na tua mão, era o local de todas as memórias por viver.

Assim me destino à terra dos mitos e me arrisco plenamente a uma outra gestação do teu sorrir

 

Porque tu? é uma rosa.

 

Teresa Vieira

26 de Fevereiro de 2012 - Sec. XXI

A VIDA DOS LIVROS


de 20 a 26 de fevereiro 2012

 

«Pierres Blanches – Problèmes du Personnalisme», de Paul-Louis Landsberg, com introdução de Olivier Mongin, atual diretor da revista «Esprit» (Félin, 2007), é a reedição da obra póstuma do pensador alemão, publicada em 1952, pelas edições Du Seuil, com prefácio de Jean Lacroix. Então só o subtítulo atual figurava na identificação da obra, que reunia um conjunto de ensaios publicados sobretudo na revista de Emmanuel Mounier.

 



UM FECUNDO ENCONTRO EM PARIS
Não podemos nem compreender a evolução do pensamento de Emmanuel Mounier (1905-1950) sem estudarmos o pensamento de Paul-Louis Landsberg (1901-1944) nem perceber o papel de Landsberg na filosofia europeia sem estudarmos e seguirmos a história da revista «Esprit», sobretudo depois de 1934. De facto, Mounier e Landsberg constituem a partir desse momento um «tandem» fundamental no pensamento de inspiração cristã, com repercussões muito para além dessas fronteiras. Quando Mounier lançou o ambicioso projeto da revista «Esprit» em outubro de 1932, há 80 anos, o panorama da história europeia era de grande incerteza. Viviam-se os efeitos da «Grande Depressão», a sombra negra da guerra e dos tratados de Versalhes fazia-se sentir, o desprestígio da política era evidente. Tudo se associava no sentido de uma estranha ameaça em que os nacionalismos agressivos se ligavam aos ressentimentos alimentados por uma perigosa associação do «salve-se quem puder», dos protecionismos e de uma violência social descontrolada, com tensões que se acumulavam. Três episódios vão marcar decisivamente a evolução do pensamento de Mounier e do grupo de intelectuais que o rodeavam – a invasão da Etiópia pela Itália fascista (1934), a Frente Popular francesa (1936) e o início da guerra de Espanha. Em 1932, a revista «Esprit» vai nascer ligada ao movimento «Troisième Force» (de Izard e Deléage), sob as fortes dúvidas de Jacques Maritain, que desejaria uma revista católica e de católicos. Mounier aceita num primeiro momento associar-se ao movimento político, mas opta por um projeto pioneiro baseado na cooperação entre cristãos e não cristãos. No entanto, quanto à «Terceira Força», depressa a revista se autonomizará dela, afirmando-se como um projeto cultural com intervenção política, não confundível com um partido.


O ACONTECIMENTO NOSSO MESTRE INTERIOR
Como afirma Guy Coq «a linha seguida por Mounier nestes anos cruciais de antes da guerra organiza-se em torno da viva consciência da escalada de um perigo mortal na Europa». Diz então Mounier: «Sinto um sofrimento cada vez mais vivo por ver o nosso cristianismo solidarizar-se com o que designarei um pouco mais tarde de “desordem estabelecida” e de vontade de fazer rotura». Numa carta que escreve a Jean-Marie Domenach afirma: «o acontecimento será o nosso mestre interior». De facto, Mounier considera-se essencialmente testemunha do seu tempo. E este testemunho põe a tónica na relação entre o pensamento e a história, o que é mais importante do que uma apreciação puramente conjuntural das tomadas de posição em face das circunstâncias. Estamos perante o valor da imperfeição como um sinal da ação humana, o que é muito mais importante do que a consideração de modelos ou receitas fechados. Se lermos os textos de Mounier (sobretudo depois de conhecer Landsberg) percebemos bem que correr riscos (o sujar as mãos) é fundamental para procurar a justiça animada pela verdade. Péguy ou Maritain falam dos polos profético e político – E. Mounier e P.L. Landsberg procuram fazer do compromisso (engagement) a ligação entre o respeito da «eminente dignidade humana» e a realização das ações necessárias à justiça, à verdade e à dignidade, a partir dos «sinais dos tempos», de que falará João XXIII.

OS VALORES FEITOS PESSOAS
Mounier concebe a pessoa humana como superação de si-mesma - «ela é o movimento do ser para o ser». O tema dos valores espirituais torna-se, por isso, crucial perante o drama histórico que prenuncia o recrudescer da guerra. Landsberg e Mounier demarcam-se da ideia de Max Scheler, segundo a qual os valores são realidades absolutas. Não é possível subordinar a pessoa a um abstrato impessoal. E assim trabalham o vínculo entre a pessoa e o valor, a partir do cristianismo: «o personalismo cristão vai até ao fim; todos os valores se reagrupam para o cristianismo, sob o apelo singular de uma Pessoa suprema». Deste modo, consideram os valores espirituais compreendidos ora como resposta cristã, ora como sinal filosófico, orientado pelo crivo da razão. Os valores não são, assim, ideias gerais ou desenraizadas - «são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal, mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade». Assim, há uma viragem metafísica em Mounier com a chegada de Landsberg. Conhecedor da experiência e dos perigos alemães, bem como das ameaças e riscos que se manifestam em Espanha, onde esteve exilado nem Barcelona, o pensador introduz um conjunto de preocupações novas, que vão revelar-se fundamentais. Leia-se o capítulo «Réflexions sur l’engagement personnel», e logo se perceberá. Há uma especificidade da política, distinta da dimensão espiritual. E as noções de acontecimento e de compromisso vão assentar num diálogo intenso entre a pessoa e os valores. E os dois pensadores recusam separar o corpo e o espírito – do mesmo modo que não aceitam encarar a realidade histórica que os cerca sem uma filosofia do compromisso, que significa um pensamento de ação. Note-se que, por isso, a revista «O Tempo e o Modo» de António Alçada Baptista e de João Bénard da Costa (1963) afirma-se como de pensamento e ação. «O compromisso pode revestir diversas formas: é humano, ético, político, espiritual, segundo a dimensão da ação que domina. Mas nenhuma das formas pode ser pensada de modo totalmente independente por referência às outras». E a verdade é que a coerência de Landsberg leva a que, depois da tomada de consciência sobre a situação dramática em que então se vivia, numa caminhada inexorável, o filósofo sofra até às últimas consequências o seu compromisso, indo até ao sacrifício supremo da morte, no Campo de concentração de Oranienburg.

 

UMA MEMÓRIA VIVA
Jean Lacroix recorda o muito que Landsberg poderia ter dado à Europa do pós-guerra se tivesse sobrevivido. Mounier esperá-lo-á em vão. «A minha pessoa e em mim a presença e a unidade de uma vocação intemporal (…) chama a superar-me indefinidamente e opera, através da matéria que a refrata, uma unificação sempre imperfeita, sempre recomeçada, de elementos que em mim se agitam». Se o compromisso e o acontecimento se tornaram centrais nesta reflexão, devemos ainda acrescentar a capacidade de fazer frente aos acontecimentos, a ideia de afrontamento: «a pessoa expõe-se, exprime-se, faz face a, é rosto». E, de facto, a palavra grega mais próxima da noção de pessoa é «prosopon»: aquele que olha de frente, a máscara que identifica o ator no teatro grego. Ora, a partir da ideia de «afrontamento», chegamos áquilo que Unamuno designava por «agonia», a luta pessoal emancipadora, a partir da consideração dos valores espirituais. «A pessoa toma consciência de si própria, não no êxtase, mas na luta de força». Afinal, «o amor é luta; a vida é luta contra a morte; a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital». Quantas vezes António Alçada Baptista nesses termos no otimismo trágico? No fundo, alguém só atinge a plena maturidade, no momento em que «opta por fidelidades que valem mais do que a vida».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 13 a 19 de fevereiro 2012

 

«Sebastianismo e Quinto Império», de Fernando Pessoa, edição, introdução e notas de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda, Ática, 2011, acaba de ser publicado, contendo cinquenta e oito textos já conhecidos e quarenta e três inéditos. Trata-se de uma oportunidade para revisitar o pensamento do poeta, confrontando diversas leituras sobre o complexo problema do sebastianismo, que é um dos grandes enigmas da obra pessoana. Em bom rigor, não encontramos algo de inesperado, mas apercebemo-nos da complexidade da reflexão pessoana, das suas dúvidas e hesitações, e da sua capacidade de construir e de desenvolver uma mitologia.

 


Aleister Crowley (1875-1947) e Fernando Pessoa a jogarem xadrez em Sintra (1930).

 

TEMPOS DIFÍCEIS
Em tempos de crise o tema da cultura e da língua vem à liça. Muitas vezes nos perguntamos como encontraremos respostas relativamente às dificuldades que sentimos, e o certo é que, como tem ficado evidente, não será com receitas contabilísticas ou de curto prazo que poderemos encontrar saídas. O arrumar da casa obriga a preservar a alma. Parece não oferecer dúvidas o facto de a chamada crise financeira (afinal crise de valores) se dever à confluência de várias ilusões perigosas: o modelo do crescimento sem limites, a cegueira relativamente à destruição do meio ambiente, a desatenção no tocante à criação e à sustentabilidade, a indiferença relativamente a valores como liberdade, justiça, igualdade, equidade e responsabilidade, o esquecimento da partilha de deveres entre gerações, a subalternização da cultura como confluência necessária entre a memória, a herança e a criatividade. Afinal, o que está em causa é a capacidade de criar valores duráveis e justos, mais do que correr atrás do sucesso imediato ou de uma lógica de roleta. É a economia, na sua aceção mais genuína, que está em xeque – economia para as pessoas. Não economia sem alma. E a verdade é que a dificuldade que hoje se sente na Europa e nos Estados Unidos tem a ver com as fortes resistências a que se mude de rumo, num sentido da sobriedade económica e financeira, isto é, de modo a que haja mais equilíbrio entre o que criamos e consumimos, sem esquecer que a coesão e a confiança exigem poupanças para investir reprodutivamente. Quem pensar que podemos regressar à prática dos últimos vinte anos, de viver do crédito barato e sem pensar na prevenção quanto ao esgotamento de recursos essenciais, engana-se totalmente.

 

CULTURA, EUROPA E LUSOFONIA
Olhando Portugal e a cultura portuguesa, não podemos esquecer que vivemos na encruzilhada entre a Europa e o mundo. Precisamos absolutamente da Europa, porque aí estão e estarão os nossos principais destinos do comércio e o campo estratégico. De facto, só evitaremos a periferia, a irrelevância e a mediocridade se aí inserirmos a nossa base de afirmação. O Infante D. Pedro das Sete Partidas e o Príncipe Perfeito definiram sabiamente a necessidade de uma plataforma europeia para tornar efetiva uma afirmação planetária. Não poderemos, porém, ser europeus passivos e subalternos – por muito que isso nos exija de esforço e de vontade. Mas precisamos também de uma ação extraeuropeia, com passos seguros e diversificados, sem a tentação dos pequenos resultados imediatos destituídos de consistência durável. E é aqui que temos de falar da política da língua – trabalhada em vários domínios. De facto, se a língua portuguesa é a terceira língua europeia em número de falantes no mundo, o certo é que a sua influência efetiva é insuficiente e precisa de novos avanços e de muito trabalho. Contudo, não podemos esquecer que temos neste ponto uma vantagem indiscutível, como tem sido reconhecido por muitos estudiosos da globalização – sobretudo considerando as potencialidades das economias emergentes, a começar no primeiro dos BRIC, o Brasil, e a continuar nas ligações da lusofonia, encarada como realidade multifacetada, complexa e heterogénea. A lusofonia não pode ser uma coutada, é um espaço aberto, que não pode ser confundido com qualquer tentação retrospetiva e paternalista. Não há dilema entre Europa e lusofonia – Portugal, hoje e no futuro, terá de realizar o seu desígnio, criando uma base portuguesa e europeia e procurando projetá-la universalmente, com muito trabalho, exigência redobrada e uma administração rigorosa da escassez disponível. E a política da língua terá de aproveitar todos os meios disponíveis. Desde as universidades, as escolas, os leitorados, as comunidades da diáspora até à rede de iniciativas económicas – tudo deve ser considerado. Veja-se o que se passa com o Instituto Cervantes, que articula iniciativas de defesa e difusão da língua espanhola com o British Council, numa lógica muito inteligente de complementaridade. Os protecionismos e os fechamentos só servem para reforçar fragilidades. Temos de ter presente esta perspetiva.

 

SEBASTIANISMO E QUINTO IMPÉRIO
Na obra de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda constituída por textos importantes de Fernando Pessoa, que acaba de ser publicada, deparamo-nos com a consabida dificuldade de interpretação de um sentido profético misterioso. Mais importante do que qualquer providencialismo, estamos perante a necessidade de esperança mobilizadora («Ninguém vive do presente, - diz Pessoa - porque está nele. Essa é a parte da vida, que não a nossa. Vivemos ou da saudade ou da esperança. … A vida humana é feita de esperança, e por isso a vida das nações, que é a vida humana maior, é feita de profecias»). O certo é que é fundamental a intuição sobre a importância da língua, já antes assumida por Padre António Vieira: «…como já notou João de Castro Osório, Portugal não é propriamente um país europeu: mais rigorosamente, se lhe poderá chamar um país atlântico – o país atlântico por excelência. Além disso, Portugal, neste caso, quer dizer Brasil também. Como o império, neste esquema, é espiritual, não há mister que seja imposto ou construído por uma só nação: pode sê-lo por mais que uma, desde que espiritualmente sejam as mesmas, que o serão se falarem a mesma língua». Ligando essa projeção da língua à vocação cultural portuguesa, poderemos encontrar, libertando-nos de qualquer providencialismo (contra o que a geração de 70, a «Seara Nova» e Eduardo Lourenço nos alertaram), um conceito de humanismo universalista, de que Jaime Cortesão se fez eco. «Metrópole do Mundo, Portugal criou de certo modo, cidadãos do Mundo (afirmou o historiador). Formou-se nesses homens, ao contacto múltiplo dos povos peregrinos, uma consciência nova e unitária da Humanidade. Neles, nas suas obras e nos seus atos, raiou pela primeira vez a vasta e complexa compreensão do humano, na sua riqueza e diversidade. Do humano em todos os continentes e em todas as raças. (...) Humanismo mais pragmático e moral do que filosófico e crítico, ele, dissemos nós, não era apenas uma ideia. Era menos e mais do que isso. Era uma regra de conduta. Um temperamento moral. – Uma cultura em ação. O sentimento duma unidade humana a realizar, quer pela fé, quer pelo conhecimento e pelo amor». Leia-se a entrevista de Fernando Pessoa à «Revista Portuguesa», de 13 de outubro de 1923. Aí temos o elogio o cosmopolitismo («o povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo») e a invocação da Europa: «Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho». E assim se sente o apelo forte - «Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa».

 

Guilherme d’Oliveira Martins

WHITNEY HOUSTON

 

Uma gota de céu numa das vozes mais belas do mundo.

O fruto da música pop está de luto.

A humidade dos sonhos cantada por Witney na célebre canção I Will Always Love you constitui um legado inesquecível até ao futuro dos dias.

Não é demais agradecer.


 

M. Teresa Bracinha Vieira

12.02.12

Secc.XXI

CENTENÁRIO DE CHARLES DICKENS

«Charles Dickens (1812-1870) é para muitos o símbolo da literatura. Tantos de nós começámos por ele, mesmo que não tenha sido o primeiro autor que lemos. Foi, porém, certamente, o primeiro escritor que não nos pôde deixar indiferentes. Deste modo, foi com Dickens que nos confrontámos com a narrativa como relato da vida, difícil e incerta. Nenhum de nós deixou de se identificar com Oliver Twist perante a provação e as injustiças. Com ele pedimos mais, roídos pela fome. E não é possível esquecer David Copperfield, Mr. Scrooge, Nicholas Nickleby ou Pickwick . Nesses exemplos temos um retrato rigoroso da sociedade industrial que dava os primeiros passos. Muitas vezes com traços autobiográficos, sempre beneficiando de uma leitura atenta da realidade urbana que avançava, substituindo a sociedade rural, a obra de Dickens é dramática e irónica, trágica e crítica, triste e bem humorada, como a vida. Estamos diante de um caso singularíssimo, em que a popularidade do escritor sobreviveu à sua morte. Por um lado, contribuiu decisivamente para alterar o estado de coisas do seu tempo no sentido de uma justiça reformista – designadamente perante a terrível lei dos pobres -; por outro lado, pôde transmitir-nos um retrato fiel do género humano, para além das circunstâncias e num contexto de «tempos difíceis». O realizador João Botelho salientou, e bem, que a obra do escritor é muito atual, uma vez que o egoísmo, a avidez do capital financeiro, a tentação imediatista agravaram-se nos tempos de hoje. Neste ano do duplo centenário, importa não só reler Dickens, mas também aprofundar a relação entre a literatura e a construção da justiça. Como se vê bem com David Copperfield, o autor não é neutro, por isso quis contribuir ativamente para que o leitor não ficasse indiferente. Eis por que razão estamos a celebrar a literatura, a cultura, a arte, a verdade e a justiça!».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

UM POETA DA PINTURA


 

Nasceu em Barcelona o pintor Antoni Tàpies. Na Régua vi alguns dos seus quadros numa exposição orgulhosa e na qual se falava da admiração de DalÍ pela pintura deste grande artista que agora nos deixou.

 

Todos afirmam que a filosofia de Sartre e a sua interpretação do surrealismo marcou para sempre a sua mão na tela.

 

As novas técnicas de colagem utilizadas nos seus quadros ou a sua projecção no trabalho com o bronze deram-lhe lugar cativo nas artes e nas principais galerias do mundo.

 

A sua capacidade para defender a liberdade, faz-nos pensar o quanto o homem sempre pode recomeçar o homem.

 

Inúmeros prémios recebeu Tàpies como se o destino se cumprisse sempre em reconhecimento: contudo o seu perfil nunca se abandonou aos limites do que é interpretado. 

 

Quando um poeta da pintura parte é como se um adeus em cor fosse catálogo de sonho que refloresce no ar: e nós aqui na precaução das linhas que recomeçam dias, tantas vezes incompletos ou colaborantes com as ausências.

 

 

Recordo que o António Alçada me disse um dia: sobre este magnífico pintor deve-se escrever pouco. Soltá-lo como se faz aos poemas bastará.

 

 


M. Teresa Bracinha Vieira

 

7.02.12

 

Sec.XXI 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS


de 6 a 12 de Fevereiro 2012

 

A exposição «Fernando Pessoa, Plural como o Universo», no âmbito do Ano do Brasil em Portugal, resulta de uma iniciativa do Museu da Língua Portuguesa com o apoio das Fundações Roberto Marinho e Calouste Gulbenkian e apresenta-nos o multifacetado autor português como um dos símbolos do século XX. Os seus escritos são uma oportunidade extraordinária para compreendermos a relação do poeta com o mundo e a sua intuição genial para no-la revelar a partir de diversas perspetivas e personalidades.

 

 

SINGULAR LEITURA DO UNIVERSO
Fernando Pessoa representa o seu tempo de um modo singularíssimo, ligando a leitura do universo à circunstância de ser português – esse curioso casamento entre a história de um povo que o escritor procura interpretar e uma reflexão cosmopolita e universalista, que assume com todas as consequências, é uma característica única, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica, que não pode ater-se a uma cultura particular. Contudo, sem ser redutora, a perceção da identidade própria é feita à luz de uma consciência universalista. Como disse Eduardo Lourenço no fecho do seu imprescindível «Pessoa revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Assim se podem entender os paradoxos e as contradições que tantas vezes encontramos e que mais não são do que a aceitação de que uma cultura é sempre complexa e heterogénea, abarcando elementos diversos. Estamos perante a imperfeição de que fala Lourenço, que exige sempre a abordagem de diversos caminhos, sobretudo evidente numa cultura como a portuguesa, nascida originalmente numa finisterra de múltiplas presenças e depois espalhada pelo mundo como cultura de várias línguas e língua de várias culturas. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Caeiro, Reis, Campos e Soares) corresponde, assim, a uma curiosa representação da pluralidade do universo. A modernidade de Pessoa tem, no fundo, a ver com essa projeção, que nos leva ambiguamente ao conceito de Quinto Império – incompreensível sem referência a Vieira, o imperador da língua portuguesa, e sem ligação à espiritualidade da comunicação. Em vez de um projeto de domínio temporal, estamos diante da exigência de um diálogo, em busca da diferença. No entanto, diálogo obriga a que cada um e cada cultura se afirmem tal como são, sem a tentação de se dissolverem mutuamente. Por isso mesmo Caeiro, Campos ou Reis são profundamente diferentes, e Fernando Pessoa, ele mesmo, tem uma perspetiva própria e diferente sobre a vida e o mundo.

 

A CONSIDERAÇÃO DOS MITOS
«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. E António Quadros disse que «mais perto andaremos do pensamento de Fernando Pessoa» se virmos os heróis da «Mensagem» como «protagonistas de um macromito, com seus símbolos e cifras, o mito do Regresso ao Paraíso, dentro do qual se desenvolvem os micromitos de um Portugal – eleito de Deus, em ação profunda no duplo plano do ideal cavaleiresco e do inconsciente coletivo nacional…». Ora, os mitos permitem interrogar as raízes e o desenvolvimento de uma identidade, e essa abordagem crítica abre as portas para a superação de uma mera lógica defensiva ou retrospetiva. Nesse sentido, compreende-se que os amigos presencistas de Pessoa tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético do autor. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Mas será Eduardo Lourenço, ainda ele, quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da geração de 1870 e em especial de Oliveira Martins, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo seareiro. A heterodoxia do autor de «O Labirinto da Saudade» tem a ver, afinal, com a recusa das escolas dominantes ou dos grupos instalados, mas sobretudo pretende obter liberdade para seguir a necessidade crítica não acomodada à lógica positivista – de modo a partir dos mitos, a fim de poder compreender a sociedade e a cultura na riqueza das suas idiossincrasias. Afinal, Pessoa dissera sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Eis por que motivo qualquer leitura superficial ou unívoca da obra pessoana pode conduzir num sentido redutor e incapaz de a compreender. Alberto Caeiro, o mestre, assume o panteísmo naturalista. Diz Campos: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo». «Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. / Passo e fico, como o Universo». Ricardo Reis afirma a nostalgia dos deuses gregos e romanos, Álvaro de Campos é o cantor da civilização mais moderna. Fernando Pessoa procura transcender, reunir, completar («seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro»). Segundo Quadros trata-se de uma catarse, pela qual podemos, a um tempo, encontrar o poeta em toda a sua riqueza interior multifacetada, bem como entendê-lo em toda a sua capacidade de se revelar numa ascese emancipadora. Anselmo Borges fala do «seu balancear constante, triturante, paradoxal e contraditório entre a Presença e a Ausência».

 

O ENTENDIMENTO DOS SÍMBOLOS
Há um pequeno texto de Fernando Pessoa, em «Sobre Portugal», que trata do provincianismo. Muitas vezes tem sido referido e citado, talvez como um juízo definitivo, que não é. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». O poeta pensa na necessidade de haver escóis, de haver uma aristocracia comportamental, de se cultivar a abertura e o cosmopolitismo, de superar uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização e a degenerescência. Não importará tanto ver circunstancialmente o que significa cada uma destas preocupações. A ilusão do progresso ilimitado, a tentação de não cuidar do futuro, o fatalismo e a indiferença – tudo isso está em causa. E o certo é que a ironia ganha uma especial importância. É fundamental sermos capazes de nos vermos projetados no espelho da crítica. A poesia encarrega-se de perscrutar diversos caminhos. Mais do que encontrar soluções, que não cabem à arte, trata-se de iluminar e de ajudar a ver. Impõe-se, porém, cuidar do entendimento dos símbolos, o que obriga à consideração, segundo Pessoa, da simpatia, da intuição, da inteligência, da compreensão e do conhecimento transcendente. Tem o intérprete de sentir simpatia pelo símbolo. Tem de ser capaz de ver o que está para além dele. Tem de saber interpretá-lo. Tem de o entender. E tem de apreender o seu sentido e significado. Eis por que a criação cultural se torna fundamental, por contraponto às ilusões do provincianismo…

Guilherme d’Oliveira Martins