A VIDA DOS LIVROS
de 27 de fevereiro a 4 de Março de 2012
Quem quiser compreender o Portugal do final do século XVIII e inícios de XIX terá de ler uma preciosidade na literatura de memórias que se intitula «Recordações de Jácome Ratton sobre Ocorrências do Seu Tempo em Portugal», de 1813 (com reedição da Fenda, 1992). Ratton (1736-c. 1822) foi um homem de indústria, nascido em França e emigrado em Portugal, onde teve sucesso e influência, havendo, no entanto, caído em desgraça no período das invasões francesas – sendo preso e depois exilado em Inglaterra (1810-1816). A obra em questão apresenta-nos um relato muito interessante e positivo sobre as mudanças ocorridas em Portugal durante a vida de quem viveu na velha Rua Formosa (hoje Rua do Século) paredes meias com a casa de família de Sebastião José de Carvalho e Melo.
O PERÍODO POMBALINO
Para José-Augusto França, o melhor intérprete do pombalismo, «um documento político que ficara célebre como balanço e reflexão da situação ao termo do reinado joanino, o chamado “Testamento Político» de D. Luís da Cunha, velho diplomata “estrangeirado” de visão cosmopolita, recomendara ao príncipe herdeiro Sebastião José de Carvalho e Melo, antigo e modesto embaixador em Londres e em Viena, para seu conselho – e enumera-lhe as qualidades de “génio paciente e especulativo” que agora, na crise do terramoto e nas suas imediatas providências, tinham campo de ação, não só circunstancial mas imbricado num quadro de ideias de governação de “despotismo iluminado” que deu, na história do país, os resultados que pôde dar, por razões de estrutura e de conjuntura, e de qualquer modo preparou uma grande mudança na relação de forças das classes sociais». O certo é que os acontecimentos vieram a dar razão a D. Luís da Cunha, não só porque Sebastião José demonstrou saber agarrar bem a situação, mas também porque as experiências londrina e vienense se revelariam cruciais para a prática de homem de Estado e de bom conhecedor dos meandros administrativos. De facto, a premonição do velho diplomata foi notável, admire-se ou não a figura complexa do futuro Conde de Oeiras. Um homem é um momento, como dirá o autor do «Portugal Contemporâneo» relativamente a Mouzinho da Silveira, e a verdade é que para Carvalho e Melo esse tempo decisivo foi o terramoto de 1755. A circunstância agigantou o homem. Tenha dito ou não tenha «Enterrar os mortos e cuidar dos vivos», a realidade é que agiu em conformidade com rigor e proficiência, persistência e afinco. E tem razão quem afirmou que ao terramoto físico se sucedeu o terramoto político, que pôde reformar duravelmente a nação, que vivera os efeitos de ostento das riquezas do ouro do Brasil, com todas as consequências de decaimento.
OS ESTRANGEIRADOS
Cabe falar dos «estrangeirados», sobre quem tanto se tem dito, muitas vezes sem uma compreensão exata da sua importância. O seu papel não é exclusivo, mas tem de ser associado à evolução interna. De facto, quando falamos de iluminismo em Portugal temos de dizer que já no reinado de D. João V houve tentativas para modernizar o ensino e a ciência de acordo com as novas correntes de pensamento. Lembrem-se os contactos da governação joanina com Jacob de Castro Soromenho em Londres e a obra de Manuel Azevedo Fortes («Lógica Racional Geométrica e Analítica», 1744), sob a influência de Descartes e Locke. Já Luís António Verney («Verdadeiro Método de Estudar», 1746) fala de defeitos e enfermidades da cultura portuguesa, com intensidade crítica, e propõe um ideário global iluminista. Sem ser em rigor um estrangeirado, Sebastião José era um cosmopolita, conhecedor da importância da emergência da Boa Razão, fosse ela designada por «enlightment», «aufklärung» ou «lumières». Os estrangeirados eram intelectuais ou académicos que estavam fora da universidade portuguesa, sob os efeitos da Inquisição, criticando o atraso científico e a influência do fanatismo. O obscuro diplomata Carvalho e Melo tomara contacto com os movimentos do pensamento que emergiam na Europa e pôde ser proeminente artífice da influência iluminista. Jacob de Castro Soromenho, António Nunes Ribeiro Sanches e Verney, enquanto estrangeirados, tiveram indiscutível influência no pombalismo. Mas, além dos estrangeirados, o franciscano Frei Manuel do Cenáculo e Teodoro de Almeida, padre oratoriano, de uma congregação que passou de suspeita a aliada da política de Sebastião José, foram dos iluministas de maior influência. Foi, aliás, o oratoriano quem afirmou: «Enfim, abrindo os homens os olhos, depois de longo tempo, chegaram a conhecer que a experiência, o cálculo e as matemáticas haviam de conduzir a razão para descobrir a verdade no conhecimento da natureza (…).Portanto, com uma mão na matemática, com outra nas experiências físicas, de ambas se valeram para introduzir nas escolas a boa filosofia».
DESPOTISMO ILUMINADO
Quando lemos, porém, a «Dedução Cronológica e Analítica» (1768) e o «Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra» (1771) sentimos que os textos oficiais do pombalismo são marcados por uma lógica de combate político que tem como alvo a Companhia de Jesus e que corresponde à fase final do consulado de Pombal (marcada pelas repercussões da tentativa de regicídio e da centralização brasileira) faltando-lhes a distância crítica que encontramos nos principais pensadores iluministas. A reforma económica e financeira, a criação do Erário Régio, a reconstrução da cidade de Lisboa, a refundação da Universidade de Coimbra contribuirão decisivamente para tornar a herança de Carvalho e Melo como relevante para a modernização portuguesa, independentemente de apreciações unívocas («mal por mal, antes Pombal», dirá o povo de Lisboa). E é curioso verificar como a chamada «Viradeira», depois da morte de D. José, manteve as linhas fundamentais da ação pombalina. E lembre-se que a Lisboa de Pombal, símbolo da razão e das luzes, com o seu plano ortogonal, o domínio da natureza através da estacaria de pinho verde para impedir inundações: «foi a maior obra coletiva realizada na arte nacional, e uma das grandes empresas levadas a cabo na história do país – “toda feita por mãos portuguesas” como o ministro sublinhou na hora do balanço» (J.A. França).
UM CURIOSO RETRATO DE POMBAL
Jácome Ratton dirá de Sebastião José que «possuía muitas qualidades para ser, como foi, um grande ministro. Empregando todo o tempo da semana no serviço do seu amo, reservava as manhãs dos domingos para os negócios da sua casa, nos quais se ajuntavam todos os seus almoxarifes, feitores e mestres de obras, no quarto da sua contadoria metodicamente escriturada com livros em partes dobradas e ali conferia com eles, recebia e pagava à boca de cofre as entradas e despesas da semana precedente». Era «extremamente reservado», sabia ouvir; «as suas respostas eram graves, breves e terminantes», «não consta que se enfadasse e descompusesse as partes que o buscavam». «Possuía mais o Conde de Oeiras um arranjo metódico, tanto na distribuição do seu tempo, como nas matérias de que se achava encarregado; e foi por efeito desse arranjo metódico que ele pôde dirigir bem todas as repartições do Estado», «deixou, quando saiu do ministério, 48 milhões de cruzados no Erário Régio, e 30, segundo ouvi, nos cofres das décimas, riqueza que jamais se tinha ajuntado desde a descoberta das minas». E Ratton acrescenta ainda: «Este espírito metódico se mostra bem no arranjo económico da sua própria casa, o qual confirma o axioma de que quem não sabe bem governar a sua casa não presta para governar o estado», esclarecendo que foi «da sua estrita economia que ele pôde fazer a sua grande casa, e não à custa do Estado», tendo vivido sempre «sem fausto nem aparato».
Guilherme d'Oliveira Martins