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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 12 a 18 de Março de 2012


«As Luzes de Leonor, a marquesa de Alorna, uma sedutora de anjos, poetas e heróis» (D. Quixote, 2011) de Maria Teresa Horta é uma obra que nos dá o retrato de uma época contraditória de iluminação e de penumbra, através de uma personalidade fascinante que personifica a inteligência e a abertura de espírito, em termos pioneiros. A marquesa de Alorna simboliza um cosmopolitismo que abre perspetivas novas de liberdade e de descoberta da crítica, da emancipação e da modernidade.

 

 

A MAGIA DE ALCIPE
Leonor de Almeida é o símbolo dos claros e escuros que formam a história portuguesa. Não importa agora tanto ajuizar a trama política que levou ao processo dos Távoras, o certo é que não é possível compreender-se a transição para o século XIX sem esse episódio. «Os dezoito anos que me vi forçada a passar no convento de S. Félix, em Chelas, pela suprema vontade de um déspota, cedo me determinaram a existência, pois ao condenar à morte os meus avós Távora, ao prender o meu pai nas masmorras da Junqueira e ao mandar enclausurar minha mãe num mosteiro, comigo e a mana Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José de Carvalho e Melo salgar o chão do meu destino». Estas são as palavras que Maria Teresa Horta pôs na boca de Leonor, no magnífico retrato da futura marquesa de Alorna, tendo como pano de fundo as contradições de um tempo em que as ideias novas foram aparecendo por vias muito diversas. O certo é que a figura de Leonor articula em si a memória heterogénea das repercussões do iluminismo despótico e da germinação resultante dos ventos de mudança vindos um pouco de toda a parte, numa circunstância em que o mundo mudava radicalmente, por entre várias leituras da emergência das luzes da razão. Só o facto de as ideias circularem e fluírem levava a que, por caminhos incertos e inusitados, as liberdades se fossem afirmando, ora por reação à injustiça, ora como expressão da cultura e do espírito. E a futura marquesa personifica a cada passo essa dualidade e essa relação.

 

REVOLTA E ÂNSIA DE JUSTIÇA
«Os últimos anos de clausura (regressamos à voz de Leonor) no convento de Chelas foram talvez os mais difíceis dos dezoito que lá vivi, pois à medida que o tempo passava maior era o meu rejeite do despotismo e a consciência da escandalosa injustiça que nós as três sofríamos, condenadas certamente pela nossa inocência». Com estas palavras, Maria Teresa Horta faz-nos sentir uma revolta interior alimentada pela ânsia de justiça e pela leitura especialmente de Voltaire – numa genuína sede de emancipação pelo espírito, completada pelo convívio dos poetas do tempo, a começar em Filinto Elísio. E a verdade é que Voltaire, para a futura Alcipe, tem maior peso e influência do que Rousseau – ensinando, de modo marcante, a necessidade do respeito pela fraqueza e pela imortalidade, como igualmente sagradas, assim como a «relevância da liberdade e da razão». É impressionante a lista de leituras e interesses dessa jovem, que alimenta no leitor comum uma admiração crescente, apesar dos caprichos, das obstinações e das incertezas. «Para Filinto Elísio nenhuma outra mulher chega à sua graça, ao seu encontro. Apesar da determinação e de uma certa aspereza que nela tanto o fascinam como o afugentam, e de o trato nunca ser fácil ou demorado, pois aquilo que hoje desdiz amanhã reinventa». Percebemos, assim, facilmente que a jovem tinha uma especial aura e um poder magnético indiscutível.

 

PERSONAGEM FASCINANTE
Perante a personagem fascinante, temos a plena ilustração de como a «Viradeira» é contraditória e alimentada por ressentimentos, mas também por continuidades, que põem a tónica na necessidade de abertura às nações civilizadas. E o Portugal do início do século XIX está eivado de todas estas tensões, ora cosmopolitas, ora conservadoras. A «Encyclopédie» é passada clandestinamente pelas grades do convento de Chelas, mas fica a dúvida sobre se essa suposta proibição não era inútil por força das ideias que circulavam. O insuspeito Novalis afirma: «A noite original é substituída, enfim por cadeias de Luz». E na variedade de leituras de Leonor vemos os grandes pensadores cristãos ser completados pelos diversos iluminismos, em cuja articulação a leitora ávida não vê choque ou paradoxo. Deste modo, a «luzes de Leonor» (título extraordinário), as luzes que se difundem, vão permitindo a germinação característica do novo tempo. «Leio quando posso (confessa-nos a jovem em carta a seu pai), porque reconheço que a ignorância é a primeira causa das preocupações e da irregularidade dos costumes». E mais tarde reconhecerá: «Procurei preencher a minha vida com a poesia, o saber e a razão. Mas o preconceito, o despotismo e os partos travaram-me os passos, impediram-me a ação política, atrasaram-me o estudo». Nota-se uma capacidade de antecipação que singulariza a personalidade multifacetada que marcará decisivamente a Arcádia.
Ao viajar pela Europa, ao passar pelas principais capitais do velho continente, procura as novidades do espírito, sempre pretendendo combater o rasto omnipresente da intriga e da suspeita. E, mais do que o brilho, procura cultivar a reflexão. Mas não passa despercebida, no salão de Sophia Condorcet ou de Madame Necker, recitando em português, mas sobretudo deixando a força do seu entusiasmo e da sua atenção aos talentos. A riqueza artística fixa a sua requintada atenção, seja em Madrid, Paris, Viena ou Londres. Tornada condessa de Oyenhausen, obtém para o marido, Carlos Augusto o lugar de embaixador na corte de Viena, onde vive os prolegómenos românticos, intuindo a importância de Goethe e de «Sturm und Drang». «Leonor é diversa», talvez poucos a compreendam, conhece a riqueza da inovação criadora. O salão da Imperatriz Maria-Teresa é bem diferente de tudo o que conhecera até então. E Leonor pensa numa dimensão cosmopolita e universalista da liberdade, não esquecendo, ainda, Voltaire. A célebre Madame Necker envia-lhe uma reflexão de Madame Deffand a Horace Walpone: «Ai a razão, a razão! O que é a razão? Que poder exerce em nós? Quando fala? Quando a devemos escutar? Que bem, afinal, procura? Triunfará ela sobre as paixões?» O cosmopolitismo de Leonor é espiritual, intelectual e de sentimentos: «a minha Pátria é aquela onde o debate de ideias pode ser feito em liberdade». O conde de Oyenhausen, Carlos Augusto, militar mais que diplomata, função a que não se adapta, compreende-a mal, dir-se-ia que vivem horizontes bem diferentes. Para compreender o movimento, Maria Teresa Horta liga no romance permanentemente as raízes, o destino da avó Leonor de Távora, condenada sob o poder de Sebastião José, e o laborioso testemunho da sua neta Leonor de Almeida. Esta dirá: «Só uma insurreição espontânea pode hoje salvar a Europa, opondo a força à força, a ofensiva à agressão». As suas ideias tornam-se, porém, ameaçadoras. Pina Manique obriga-a ao exílio. Mas, abatida e saudosa, não desiste: «mais do que nunca Senhora do meu próprio destino, embora diante de mim veja um imenso deserto a que me querem ver condenada: a tentarem matar a sede de independência e conhecimento que me impele».

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS


de 5 a 11 de Março de 2012


Dalila Pereira da Costa (1918-2012) faleceu no Porto há poucos dias. Foi uma importante ensaísta com ampla obra publicada sobre a cultura portuguesa, avultando «Místicos Portugueses do século XVI» (Lello & Irmão, 1986), além de muitas outras, como «O Esoterismo de Fernando Pessoa» (1971), «Os Jardins da Alvorada (1981) e «Gil Vicente e Sua Época» (1989). Dela disse o pintor Lima de Freitas: «É desde há muito uma figura ímpar na nossa cultura, inovadora e luminosa, que não cessa, ao longo dos anos, de nos surpreender como pensadora e ensaísta não só pela agudíssima e por vezes relampejante penetração intuitiva, escorada numa sólida e profunda cultura de um tipo raríssimo no nosso país». E António Quadros afirmou: «na sua personalidade se encontram harmoniosamente, tanto a inteligência hermenêutica apoiada na mais sólida cultura, como a predisposição e «saber de experiências feito» de quem é, ela própria, uma espiritual, uma mística».

 

 

A MÍSTICA PORTUGUESA
A propósito dos místicos portugueses e estabelecendo um paralelo com os descobrimentos, afirmou Dalila Pereira da Costa: «Julgamos não ser arbitrário estabelecer um paralelo entre esse ato passado dos portugueses, como conhecimento da terra, e toda a sua contribuição para a nova ciência da Idade Moderna, então iniciada, e este outro agora anunciado nestes tempos atuais, o conhecimento do Espírito, como abrindo novo ciclo de ser e conhecer à humanidade». Numa obra realizada a partir de uma análise circunstanciada do pensamento dos nossos mais significativos místicos de quinhentos, a autora procura apresentar-nos os sinais de uma espiritualidade ibérica, na sua perspetiva portuguesa. Parte assim, de uma análise das idiossincrasias culturais do ocidente peninsular, assentando fundamentalmente em duas místicas algo diferenciadas, mas complementares: de Frei Tomé de Jesus (1529-1582) e de Frei Agostinho da Cruz (1540-1618). Frei Tomé de Jesus será seguido por D. Hilarião Brandão (?-1585), por Frei Sebastião Toscano (1515-1583) e pelo poeta místico D. Manuel de Portugal (?-1606). E a ensaísta aponta a especial força do primeiro: «É seu anseio ou pedido ardente, o que se expressa através dessas páginas de fogo dos “Trabalhos de Jesus”; louvor e cântico dessa união transformante, deificante e que aqui só se pode manifestar e transmitir aos homens, unicamente por interjeições, que por elas marcarão assim a fronteira, na humana fraqueza, desse termo de inultrapassável formulação entre a palavra do homem e a palavra de Deus, como silêncio: seu indizível». Nota-se, assim, com evidência a herança de S. João: «Nunca a identidade explícita de Deus, Verbo e Amor foi mais potentosamente dita na sua língua».

 

O CATIVEIRO DE MARROCOS
Estamos diante de uma mística voluntarista e afetiva – marcada e intensificada pela experiência pessoal, em especial nos momentos finais do tremendo cativeiro de Marrocos. A vida contemplativa, como união perfeita com Deus, articula o agir e o partilhar com os irmãos de uma vivência de realização do amor. E o biógrafo de Frei Tomé, Frei Aleixo de Menezes dirá: «Era muito dado à oração e lição dos Santos Padres em tanto grau, que sendo mestre de noviços jamais se encostava antes das matinas, gastando aquele tempo nestas duas cousas, e quando voltava delas, se encostava e então dormia um pouco». Pelo recolhimento e meditação no Convento de Penafirme procurava, em solidão, entre o céu, o mar e a terra, encontrar-se na profundidade dos seus exercícios místicos. Dirá ainda Frei Aleixo: «Deu grande exemplo de caridade com os necessitados e enfermos, e ajuntava muitas esmolas para repartir com os parentes pobres dos religiosos; por que eles não se distraíssem com esta ocupação». Frei Tomé de Jesus acompanhou D. Sebastião a Alcácer-Quibir, por desejo expresso do monarca e aí teve ação importante nos momentos trágicos da derrota. Foi então tornado cativo, sofrendo maus tratos e perigando a sua vida. Esteve preso durante quatro anos e recusou a intervenção de familiares para o libertarem – respondendo preferir «morrer cativo pelo bem das almas de seus naturais e companheiros, que viver em liberdade com perda de tão grandes ganâncias». Deste modo encontrou a morte, estando o seu fim ligado ao destino da pátria. A glorificação da Paixão de Jesus Cristo teve em Frei Tomé de Jesus o significado de sacrifício individual e coletivo, pessoal e nacional, como dupla identificação a Cristo de um português e de uma nação.

 

O FRADE DA ARRÁBIDA
«Se a união como celebração gloriosa entre terra e céu se fará na mística de Frei Agostinho da Cruz marcadamente pela Assunção da Virgem, e em Frei Tomé de Jesus pela paixão de Deus-Homem, ambas as celebrações possuirão um sentido e dimensão cósmicas: tal será a língua sagrada de dois místicos do século XVI, simultaneamente realizada numa nação sofrendo então a forma derradeira do Mal no mundo terreno: como perda de liberdade». Com esta afirmação, Dalila Pereira da Costa fala-nos de uma abolição do tempo profano e da entrada na eternidade, vida e salvação, o que é particularmente evidente quer nos «Trabalhos de Jesus» quer nos «Hinos à Senhora da Memória» do arrábido. De facto, os exercícios realizam-se por força do amor cristão e da sua sublimação mística. É a união com Deus que é procurada - «Ó amor divino, possui-me todo e de ti possuído arroja-me por onde quiseres, alaga-me em quantos mares quiseres; espedaça-me com quantos tormentos quiseres; porque em ti e comigo não podereis ser perdido» (Trabalhos). Já Frei Agostinho da Cruz, presença de homem e terra, saudosos do céu, vindo da Ribeira do Lima, franciscano da Arrábida, entende a comunhão com a natureza o fundamento da experiência mística. «No meio desta Serra onde se cria / Aquela saudade d’alma pura / Que no duro penedo acha brandura / Ardente fogo dentro n’água fria». Aqui se ligam finito e infinito na demanda do absoluto, através do exemplo da Virgem. A Natureza passa a ser divinizada – através da experiência do poeta. «Todo o convento é construído sob o esquema do labirinto, para uma iniciação ou santidade: ambos caminhos visando a um mesmo fim». E lá está o símbolo do Conventinho: «santo e homem, braços abertos em cruz, um pano vendando os olhos, um aloquete fechando a boca, uma vela na mão direita, na esquerda as penitências; e pousa-lhe aos pés a antiga serpente, que se enrola no globo azul do mundo». Ao homem velho antepõe-se o homem novo, à ideia de Deus distante, o amor próximo feito de fé e de vontade.

 

GIL VICENTE, INESPERADO
Inesperadamente para alguns, encontramos Gil Vicente, em cuja obra perpassa «esse mesmo ideal franciscano de união com a natureza, toda ela descrita num realismo estreme, intima e amorosamente e de experiência de união vivida e cantada em termos de exultação como raro atingido em cultura portuguesa». Leiam-se os autos da Barca do Inferno, de Mofina Mendes, da Lusitânia e, especialmente o da Alma: «Assim foi causa conveniente que nesta caminhante vida, houvesse hua estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão pera a eternal morada de Deus». Aí estão os ingredientes místicos, usados com especial talento. Gil Vicente faz a ligação entre as raízes medievais e a modernidade, pelo franciscanismo… O teatro encontra a mística. Além disso, sem atingirem as alturas de Teresa de Ávila, de João da Cruz, de Tomé de Jesus ou de Agostinho da Cruz, temos Hilarião Brandão, Sebastião Toscano, que nos conduzem com algum fulgor à contemplação do sacrifício de Cristo pelas «chagas, paixão e sangue do filho de Deus», não se esquecendo a obra poética de D. Manuel de Portugal (enaltecido por Sá de Miranda) e «A Arte de Orar» do jesuíta Padre Diogo Monteiro ou o testemunho de Frei Amador de Arrais. Dalila Pereira da Costa pensou a cultura portuguesa lendo-a e interpretando-a. E se a teologia trata do conhecimento de Deus, é preciso ir à mística, onde o intelecto se subordina ao sentimento nela havendo o primado de um conhecimento – amor, vivido e direto; a «especulação do intelecto» vem tão-somente depois, «como esforço de elaboração, desocultação e organização desse conhecimento primeiro dado: e então será teologia mística».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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