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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

de 30 de Abril a 6 de Maio de 2012


 

«Corpo e Transcendência» de Anselmo Borges recentemente reeditado pela Almedina (coleção «O Tempo e a Norma», 2011; a 1ª edição é da Fundação Engº António de Almeida, 2003) é uma obra desafiante que põe em diálogo a existência humana em carne e osso e a importância do espírito. Encontramos, aliás, um tema que tanto ocupou Miguel de Unamuno, no «Sentimento Trágico da Vida», e o nosso António Alçada Baptista, em especial em «Peregrinação Interior» - sobre a compreensão da importância da corporalidade na vida pessoal, em contraste com a lógica do pecado essencialmente ligado à carne. De facto, o mistério da Encarnação cristã obriga a olhar com especial atenção a ligação incindível entre corpo e espírito.

 

 

EXPERIÊNCIAS NUCLEARES DO TEMA RELIGIOSO
Para Gianni Vattimo há três experiências nucleares que estão na base do renascer contemporâneo do interesse religioso: «a experiência da morte de pessoas queridas com quem tinha pensado percorrer um caminho muito mais longo»; depois a questão da religião tem a ver com a fisiologia da maturação e do envelhecimento; e finalmente, precisamente os limites temporais da realização humana têm como consequência «avivar a esperança» de que a coincidência entre a existência de facto e o seu significado, que «não parece realizável no tempo histórico e no decurso de uma vida humana média, possa realizar-se num tempo diferente». No fundo, o fenómeno religioso leva-nos à interrogação sobre os limites. E que é a inteligência senão essa capacidade de compreender a fronteira para além da qual a razão fica limitada, não podendo fazer mais do que duvidar, interrogar-se ou ter fé e esperança. Longe da ideia de que os limites apelam à irracionalidade, estamos diante do cruzamento exigente e inexorável da razão e da fé. Não estamos nem no domínio da demonstração, nem no campo da certeza, mas sim perante a exigência de aceitar que a incompreensão existe e apela à transcendência – que o cristianismo consagra na aproximação ao próximo ou «ao outro através do não outro, Deus». Pedro Laín Entralgo fala-nos de um corpo vivo num determinado momento histórico, que «trata de entender-se a si mesmo». E assim distingue cinco momentos: «o que sou como resultado de um ato criador (eu e a cosmogénese); o que sou como resultado de uma evolução biológica (eu e a filogénese); o que sou como resultado de um desenvolvimento embriológico (eu e a ontogénese); o que sou como resultado de um devir histórico (eu e a história); o que sou como resultado de um processo biográfico (eu e a minha personalidade)». Deste modo, há um fio condutor que é animado pela esperança e que permite «manter um diálogo sempre aberto e introduzir uma intenção fraternal nos mais ásperos debates» (no dizer de Ricoeur). E estamos, nessa esperança que nos supera, ante um elemento escatológico que unifica e eterniza.

 

AMOR E MORTE, FACES DA MESMA MOEDA
O percurso dos textos de Anselmo Borges começa exatamente nesse «corpo que espera», continuando: no homem como corpo-pessoa-no-mundo-com-os-outros que interroga o crime económico; nos temas da morte e da eutanásia; do ateísmo, da ética e da mística (dizendo Simone Weil que «Deus é o bem», pelo que «nenhuma revelação no momento da morte pode provocar desgosto» ou arrependimento); na questão de Deus em Fernando Pessoa; no diálogo inter-religioso; no tema do ministério ordenado; - terminando num notabilíssimo ensaio sobre «o tempo para além do tempo». Afinal, como afirma Hannah Arendt: «A questão da natureza do homem não é menos teológica que a questão de Deus». Daí que a pobreza cristã não seja o esquecimento dos bens terrenos e da propriedade, mas sim a lembrança da liberdade e da dignidade - «não sejais escravos de vós próprios». Por outro lado, é a consciência de ser mortal que me força a pensar, colocando-me em estado de constante e inquieta interrogação e abertura ao mistério. Como disse Gabriel Marcel: «Amar um ser é dizer-lhe: tu não morrerás». E Montaigne ensinou-nos que o pensamento é a permanente aprendizagem da morte. Contudo, nos dias de hoje, encontramos, a cada passo, a tentação da indiferença ou a recusa da compreensão da morte, como se, esquecendo o tema, fosse possível resolver o mistério. A sociedade em que vivemos dominada pela tecnociência pratica paradoxalmente o excesso terapêutico e ao mesmo tempo defende a eutanásia ativa, que tem como modelo a realização técnica da morte. O tema é difícil e melindroso e os abusos dos dois termos da contradição deixam-nos perplexos. E Anselmo Borges (que trata do tema com extremo cuidado) pergunta: «Não será precisamente neste paradoxo que se manifesta de modo claro a crise de uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem finalidade humana?». E, se Camus pergunta se é possível ser-se santo sem Deus, o que está em causa é a procura incessante do bem e da dignidade humana, onde quer que se encontrem, sem preconceitos, indo ao encontro de todas as pessoas, quem quer que sejam e onde quer que se encontrem, crentes e não crentes.

 

O MISTÉRIO INSONDÁVEL DO TEMPO
A obra é extremamente rica abrangendo um conjunto de temas e reflexões que nos levam da mística à ética, da esperança ao amor. O ensaio sobre o tempo é, assim, um magnífico culminar, pondo em contacto tudo quanto ao longo da obra encontramos numa busca fecunda de um humanismo universalista. Como disse Agostinho de Hipona: «Se ninguém me perguntar, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me puser a questão e eu tiver de responder, já não sei o que é o tempo. De facto, o passado já não é, o futuro ainda não é, e o presente quando queremos captá-lo já lá não está». A partir daqui pensamos todos os mistérios que nos abalam. Kant afirmou que o tempo é a «intuição pura». E Pascal, ao falar de toda a eternidade que o antecedeu e de toda a eternidade que se seguirá, afirmou: «Só vejo infinidades por todo o lado, que me encerram como um átomo e uma sombra que dura só um instante sem regresso. Tudo o que sei é que vou morrer em breve; mas o que mais ignoro é esta própria morte que não poderei evitar». E Leslek Kolakowski recorda-nos: «Deus não pode criar uma evidência empírica da sua existência que pareça irrefutável ou mesmo sumamente plausível em termos científicos», pois, para isso, teria de fazer «um milagre lógico em vez do físico». Eis por que motivo fé e razão se completam naturalmente, em domínios diferentes. E o certo é que, desde os gregos, que o tempo é naturalmente ambíguo – entre Cronos que devora os seus próprios filhos, sendo uma divindade mecânica, repetitiva e efémera; e Kairos, filho de Cronos, mas referido à liberdade, à duração e à eternidade. E estamos, deste modo, algures entre o físico e o metafísico…, entendendo a relação fecunda entre corpo e transcendência.


Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

de 23 a 29 de Abril de 2012

 

Assinalaram-se, no dia 18 de Abril, 170 anos do nascimento de Antero de Quental (1842). Daí que, para homenagear o poeta açoriano chamemos à atualidade o intenso e muito fecundo diálogo que Eduardo Lourenço tem, ao longo do tempo, estabelecido com o poeta micaelense. Por isso mesmo, o ensaísta faz questão de assumir a necessidade de uma compreensão da importância dos mitos para a solução dos nossos grandes enigmas.

 

 

UM SEGUIDOR CRÍTICO DA GERAÇÃO DE 70
Eduardo Lourenço é, parece não haver dúvidas, um seguidor crítico da Geração de Setenta. E, ao lermos hoje «As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» de Antero de Quental depressa percebemos que há ecos evidentes desse momento fundador da modernidade no ensaísmo de Eduardo Lourenço. Se bem lermos «As Causas», compreendemos que há aí uma curiosa convergência de preocupações e ideias no sentido da especificidade da cultura portuguesa, como idiossincrasia resultante de várias influências que confluíram na Finisterra peninsular, que significa, a um tempo, síntese das diferenças e apelo à abertura. E é assim que encontramos, neste duplo movimento de integração e de dispersão, um sentido crítico e heterodoxo, bem simbolizado em Antero, a pensar uma decadência, que procura denunciar e superar, e uma exigência de um caminho de emancipação, capaz de conduzir ao reencontro com as raízes e a uma renovação assente na evolução e na justiça. Para trilhar um novo sentido, haveria que fazer a crítica das condições propiciadoras da decadência: “Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados». E encontramos os fenómenos capitais definidores desse decaimento: «três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspetos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares». E o que Antero verbera é o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente a uma Europa “pensante e industriosa” e a perda de qualidades antigas - «o seio do povo era fecundo; saíam dele santos, individualidades à uma ingénuas e sublimes, símbolos vivos da alma popular, e cujas singelas histórias ainda hoje não podemos ler sem enternecimento».

A SOMBRA DAS CONFERÊNCIAS DO CASINO
Sente-se na leitura da conferência do Casino Lisbonense a compreensão de que há potencialidades culturais que importa aproveitar e desenvolver – que se demarquem do dogmatismo e da intolerância. Mais do que a herança do iluminismo, que deve ser entendida e superada, estamos perante o abraçar da mensagem liberal de Garrett e Herculano adicionada pelo valor da igualdade, que deveria completar a liberdade, como resposta às novas injustiças do industrialismo. Temos então uma ideia de Europa a reconciliar com a liberdade e a justiça, capaz de ultrapassar os efeitos das guerras religiosas. E é assim que o poeta dos «Sonetos» assume a ligação entre uma vocação universalista e aberta e uma heterodoxia demarcada de um pensamento conformista e acrítico. E vem à memória o diálogo de Damião de Góis e de Erasmo de Roterdão, que até pode dizer-se prolongado no sentido crítico do Padre António Vieira, facto tanto mais evidente quanto é certo que conhecemos hoje a «Clavis Prophetarum» e podemos perceber que, apesar do seu providencialismo, há um núcleo muito interessante e rico que pressupõe uma ideia fecunda e premonitória de universalismo crítico, que permite relermos o «Quinto Império» à luz de um humanismo de horizontes abertos, que pressupõe a génese de uma cultura de respeito mútuo, assente na eminente dignidade das pessoas. Os dissabores de Vieira com a Inquisição, a procura de um entendimento com judeus e cristãos-novos e a ideia de um império espiritual são elementos que contrariam, no fundo, uma leitura apressada e conjuntural da obra do orador. E, numa perspetiva mais ampla, lembramo-nos de Jaime Cortesão e da sua inteligente ligação entre fatores democráticos, universalismo humanista (de raiz franciscana) e respeito crítico. Longe de qualquer tentação anacrónica, Antero vem dizer, com muita clareza, que não somos um povo eleito nem enjeitado, que temos virtudes e defeitos, como todos, mas que compreendemos a exigência de uma sociedade mais humana.

A PSICANÁLISE MÍTICA
Ora, Eduardo Lourenço tem, nesta linha, procurado persistentemente procede a uma «psicanálise mítica do destino português», com base no sentido crítico e autocrítico, na demarcação heterodoxa e na síntese de diversas dimensões culturais centradas na ideia de imperfeição. Diz-nos o ensaísta num texto hoje esquecido: «a mitologia é a verdade dispersa, túnica rasgada de um deus morto a quem só podemos ressuscitar juntando com paciência piedosa todos os pedaços. Esta tarefa é superior às nossas forças. Por isso, os egípcios confiavam a Ísis a missão divina de caminhar sozinha através da noite para fazer da seara cintilante das estrelas o corpo único do seu esposo ressuscitado, Osíris, o sol brilhante». E o certo é que nesse texto, intitulado «Ísis ou a Inteligência», de 1954, publicado recentemente na revista «Relâmpago» (nº 22, 4/2008), vê-se a atitude fundamental do pensador na sua relação com o mito e a História, compreendendo que a grande dúvida de Antero e da sua geração tinha a ver com a inserção dos mitos na tarefa de compreender e interpretar a evolução histórica. Os mitos procuram interpretar os acontecimentos. Oliveira Martins aproximou-se dessa ideia ao falar de um fundo céltico no sebastianismo e na personalidade coletiva dos portugueses. De facto, os mitos não servem por si para explicar, mas para desnudar, para revelar e para abrir o horizonte da crítica. Diz ainda Eduardo Lourenço: «perceber uma coisa é ver outra no lugar daquela que estamos vendo. Entender uma ideia é ver outra no lugar dela. Sempre a ausência é o pano de fundo da presença, mas essa ausência é a grande presença. O dia não brilha enquanto é dia, mas brilha na ausência, brilha e é dia sob o fundo da noite. Dia e noite jamais dormem na mesma cama, mas a nossa onde dormimos é noite e dia». Ao lermos este fragmento, vem-nos à memória a poesia de Jorge de Sena e a paixão de António Tabucchi por Fernando Pessoa. O mistério da interpretação heteronímica do autor do «Livro do Desassossego» tem a ver com aquilo que, melhor do qualquer outro, viu o ensaísta do «Labirinto»: para além da interpretação positivista ou formal, puramente racional ou idealista, tudo está na compreensão crítica da complexidade e da diversidade. Por isso, Eduardo Lourenço tem sido acusado de pecados contraditórios, ao recusar a interpretação unilateral e simplificadora, sabendo que a crítica deve ser sempre ambivalente, interrogando a ausência, porque «perceber uma coisa é ver outra no lugar daquela que estou vendo». O mito de Ísis está presente. E, quando na obra de Antero se fala de ironia espiritual para explicar a ambivalência pascaliana, temos de compreender que esse dilema é a vivência do sentido crítico como expressão da liberdade.

Guilherme d’Oliveira Martins

A Cultura Contra a Crise

Por Guilherme d’Oliveira Martins

 

 

Assinala-se hoje o “Dia Internacional dos Monumentos e Sítios” sendo este ano proposto o tema “Do Património Mundial ao Património Local – Proteger e gerir a mudança”. Temos de entender que a cultura entra na ordem do dia como sinal de criatividade e de humanismo. No fundo, só há economia para as pessoas se compreendermos as raízes, a história, a memória, a herança e cultura como criação. Assinalamos ainda o 40º aniversário da aprovação da Convenção para a Proteção do Património Mundial Cultural e Natural, adotada na 17ª Conferência Geral da UNESCO de 1971, importante instrumento internacional no qual se assume um compromisso solene de defesa da cultura e da natureza, num tempo em que os riscos de destruição do património e de esgotamento dos recursos afetam gravemente o desenvolvimento humano. Com efeito, “o património cultural e o património natural estão cada vez mais ameaçados de destruição não apenas pelas causas tradicionais de degradação, mas também pela evolução da vida social e económica que os agrava através de fenómenos de alteração ou de destruição ainda mais importantes”. Este documento tornou-se referencial uma vez que consagra obrigações especiais no campo da cultura. Os monumentos, os conjuntos e os lugares de interesse devem ser devidamente considerados e respeitados. Contudo, não se trata apenas de cuidar das edificações, mas sim de considerar essas marcas de civilização como polos de desenvolvimento humano. As raízes e a história dizem-nos de onde vimos, mas também apontam para a necessidade de nos respeitarmos mutuamente. As culturas só se enriquecem abrindo-se e cooperando. Apenas dando e recebendo podemos contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável e aberto. Por isso, falar de Monumentos e Sítios é abrir horizontes para que a sociedade assuma projetos de humanismo e de solidariedade, de respeito, de liberdade e de igualdade. A cultura é marca de exigência e de rigor. Através dela encontramos a distinção da qualidade. Através dela percebemos que a economia e a poupança são valores positivos contra a destruição e o desperdício. Eis por que razão a cultura tem de estar no centro da ação contra a crise, contrapondo sobriedade à mera austeridade.

Realiza-se este ano em Portugal o Congresso Europeu do Património Cultural, organizado pela Europa Nostra e pelo Centro Nacional de Cultura, culminando a 1 de Junho com a sessão solene de entrega dos prémios europeus nos Jerónimos. Trata-se da mais importante realização sobre o Património Cultural que todos os anos tem lugar, constituindo oportunidade para o reconhecimento do que de melhor se faz nesse domínio, incentivando as boas práticas e as melhores experiências. A circunstância desta iniciativa ter lugar em Lisboa, atraindo as organizações europeias de defesa e salvaguarda do património histórico, é significativa, uma vez que se trata da demonstração de que um país antigo como Portugal tem de assumir um claro protagonismos neste domínio. Saliente-se, aliás, que há menos de um ano, a 1 de Junho de 2011, entrou em vigor a mais moderna Convenção Internacional sobre esta matéria – a Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o Valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em Faro em 27 de Outubro de 2005. Nesse importante instrumento que completa as Convenções de Granada, La Valetta e Florença consagra-se pela primeira vez, com todas as consequências, o conceito de património imaterial da UNESCO em estreita complementaridade com o património material, ou seja, as pedras vivas e as pedras mortas, a que se liga a criação contemporânea.

Em suma, o Património Cultural deixa de poder ser entendido apenas numa lógica retrospetiva, passando a corresponder a uma ideia dinâmica em que a História se liga com a vida atual e em que as políticas públicas da cultura passam a articular a conservação e a criação (veja-se o nosso Património, Herança e Memória, Gradiva, 2ª ed., 2011).

Tive o gosto de presidir ao grupo que redigiu a nova Convenção do Conselho da Europa e verifico com agrado o facto de este instrumento já estar em vigor, com um generalizado entusiasmo, em especial das gerações dos novos investigadores, estudiosos e profissionais. De facto, estamos perante a superação de um entendimento já ultrapassado, segundo o qual as políticas de proteção, conservação e defesa do património se contrapunham às modernas políticas públicas da cultura, para as quais a economia e a coesão social têm tudo a ver com as ações dos criadores. A cultura não é um campo excêntrico no âmbito das políticas sociais. Está cada vez mais no centro da inovação e da criatividade. A crise financeira, cujos efeitos duramente sentimos, deve-se à especulação, à ilusão, ao imediatismo e à desvalorização da criação e da cultura. Compreendendo-se que aquilo que mais vale é o que não tem preço, numa sociedade que se deixou arrastar por um mercantilismo cego, pelo fundamentalismo do preço e pela lógica de casino, temos de entender que, longe de ser um luxo, a cultura (vista num sentido amplo, ligada à educação e à ciência) está no coração das políticas públicas contra a crise. Criar espaços de qualidade, de inovação e de diálogo entre pessoas e comunidades torna-se fundamental e urgente. Contra o risco do esgotamento de recursos temos de contrapor um desenvolvimento humano sustentável no qual a cultura esteja no centro como primeira prioridade.

MIGUEL TORGA: um tempo que não acaba.

 

 


Por Teresa Vieira

 

Um dia, há sempre um dia em que nos chega a hora de uma iluminação. Assim me chegou o conhecer Torga o grande Torga pelos seus poemas, pelo que eu por eles intuía e via e já sulcava.

Via as serras, os trabalhadores da empa, os ciclos da natureza, o quanto o amor se podia fazer por cachos de uvas. Aprendia. Aprendia que não estava só no socalco da minha activa espera.

Perguntava-me muito pelas transcendências e não sei se a interrogação, no fundo, não era apenas o adiar de uma certeza que eu tinha.

Encontrava na leitura de Torga um abrir de segredos intocáveis. O Miura condenado a divertir a multidão entregava o pescoço de toiro vencido ao alívio de um gume. Ou a Terra, única mãe de ventre quente, ao legítimo fruto que fazia sair dos seios feitos arvore.

Miguel Torga o poeta, o romancista, o ensaísta, enfim o escritor e o médico já dissera:

Hinos aos deuses, não.

Os homens é que merecem

Que se lhes cante a virtude.

Bichos que cavam no chão,

Actuam como parecem,

Sem um disfarce que os mude.

 

In Nihil Sibi

 

 

O humanismo sentido por Torga pela obra magnífica do homem, pelo trabalho humano exposto à miséria e à doença, à condição de não ser fácil ser virtuoso, nem criador de vida, e, ainda assim um humano constrói paisagem, molda o meio, semeia penedos face à morte e malgrado o limite do homem ser bicho, este homem tão limitado pelo limite, anseia a descoberta de caminhos para chegar às coisas belas e possíveis.

Assim o senti e ainda sinto Miguel Torga, nesta poderosa acepção do perceber.

Como dele disse Mourão Ferreira, Torga vivia na intimidade das forças elementares e para as celebrar aceitava a constante luta numa rebeldia ao que o queria asfixiar.

Fui a Coimbra e visitei-o. Não sei se visitei o seu monasticismo votado à autenticidade sublime da poesia ou de uma escrita, ou a sua fidelidade à medicina: ou se visitei a visita e tão só me era tanto.

Régio e a medicina? Nemésio? Perguntei.

«Teresa, eu barafusto muito com a medicina. De Régio a Nemésio é todo um dia. Tento entender-me.»

Nada acrescentei, mas recordei-me de uns poemas dele – sabia muitos de cor mas envergonhei-me de lho dizer naquela altura.

E ele já escrevera:

 

A começar por mim – meu principal motivo

De insatisfação (…)

Não me sei conformar.

E saio, antes de entrar.

 

E mais além, noutra página de um livro de Coimbra de 1956, continuou:

 

(…) casou-nos o mito

(…) tu com sementes nos pés

(…) sei que não és mentira nem és lenda

Perder-te nada é – perde-se tudo.

 

No comboio que me trouxe de volta a Lisboa justifiquei cada palavra das quase nenhumas que trocámos. Voltei a agradecer-lhe o ter podido conhecê-lo. Na minha mão o beijo que nela deixou. Então recarreguei a inocência daquela ida e recordei a joaninha que ambos olhámos, olhando-nos, e afinal foi o único momento em que lhe disse «não nos deu para coleccionarmos burros». E o Torga sorriu largamente com o perto e a distância de Piódão que então eu não conhecia. E desejou:

«Que alguém te ame muito é o que eu quero!»

 

 

Parei o carro há dois anos atrás, num miradouro no regresso de Piódão, e fui ler o que estava escrito numa pedra no alto da Serra do Açor onde faltava o ar por tão nítida a aldeia, e era isto:

 

Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da sua configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.

                Miguel Torga

 

Na casa de uns anciãos de Piódão estive à conversa acerca das lides da lavra por comparação com as do solar da minha avó e veio a minha pergunta pelo Escritor.

«O senhor doutor escritor já cá não veio abaixo ver a gente. Ele gostava muito disto. Vá, era uma ideia, mas naquele dia já cá não veio comer com nós. Estava já doente e despediu-se lá de cima do miradouro. Parou ali e depois quase a correr foi embora.»

E achei que da tua mão entreaberta me deixaste aquelas casas de xisto que se apoiam umas nas outras e quando do escuro das ruas estreitas alguém diz:

«Lá veio a menina doutora que escreve, está acesa uma janela», afinal é também por ser muito por ali que eu vivo.

Assim hoje te peço coragem aos meus passos, meu poeta primeiro, minha iluminação solidária aos meus 16 anos!

E que das nossas impossibilidades se retorne à raiz que fala a favor da poeira da terra quando passa o vento em lufadas de força e movimento.

E quantas vezes, quantas vezes não dou comigo aproximando-me?

 

Abril-Domingo

Sec.XXI

A VIDA DOS LIVROS

de 16 a 22 de Abril de 2012

 

«Escritos Políticos» de Francisco Sousa Tavares (2 Volumes, Figueirinhas, 1996) e «40 Anos de Servidão» de Jorge de Sena (Moraes, 1982) são duas obras que merecem ser recordadas, trinta e oito anos depois de 25 de Abril de 1974, tão ligadas se encontram as duas figuras que tão intensamente lutaram pela implantação da liberdade e da democracia com grande coerência e determinação.

 


O POVO QUE NÃO ESQUECE

«Povo português, vivemos um momento histórico como talvez desde 1640 não se vive: é a libertação da pátria» - este foi o primeiro discurso de um civil no dia 25 de Abril de 1974, dito no Largo do Carmo, após os momentos dramáticos de incerteza aí vividos. Quem o proferiu foi Francisco Sousa Tavares, homem livre, apaixonado pelas causas justas, de quem Sophia de Mello Breyner Andresen disse: «Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude / Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. / Porque os outros são os túmulos caiados / Onde germina calada a podridão. / Porque os outros se calam mas tu não». Sophia e Francisco foram as grandes referências do Centro Nacional de Cultural, como lugar de liberdade, aberto às diferenças, insuscetíveis de ser fieis a outra causa que não a da procura da dignidade e da justiça. O seu exemplo tem de ser lembrado quando falamos da reconquista da liberdade. E não é por acaso que, se Francisco Sousa Tavares foi o primeiro civil a dirigir-se ao povo, numa revolução militar que devolveu as instituições aos cidadãos, Sophia proclamou «A Poesia está na rua!», com Maria Helena Vieira da Silva a corresponder com um magnífico cartaz, que ainda hoje é um dos símbolos desse momento fundador. E o certo é que Sophia será, para sempre, quem primeiro cantou o momento libertador, com a palavra certa, depois de, na circunstância oportuna, ter reclamado o «país liberto, a vida limpa e o tempo justo»: «Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial, inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo». Não é possível recordar a efeméride sem lembrar essas palavras, esses exemplos, essa afirmação da perenidade das grandes causas. E Sophia disse-o na Assembleia Constituinte, no Verão quente, por entre tantas paixões. Relendo essas suas palavras, percebemos que, mesmo na vertigem dos acontecimentos, é possível afirmar os valores permanentes – em caracteres indeléveis. Hoje, essa lembrança é fundamental, num tempo em que não podemos esquecer que a liberdade só se defende e se salvaguarda se a força da verdade e da justiça não for esquecida. A história de 1974 já foi bastamente contada, lembramos os seus protagonistas e a circunstância épica, no entanto é tempo de regressar à reflexão sobre a exigência de proteger os compromissos em torno da liberdade e do pluralismo. Agora, quando lemos os textos de Sousa Tavares de combate político ou na defesa de uma sociedade centrada na dignidade humana (demarcando-se das conceções transpersonalistas que levaram a Europa e o mundo para a tragédia do século XXI), percebemos que a liberdade de espírito e de opinião é fundamental. Não importa a pugna concreta, mas sim a salvaguarda das diferenças e do pluralismo, da liberdade e da responsabilidade. Essa foi a grande lição do advogado, do político, do jornalista, do polemista. Vêm à memória os acontecimentos de Lisboa em Dezembro de 1383 e em Dezembro de 1640, como bem foi recordado. E voltamos a ouvir Fernão Lopes: «as gentes (…) saíam à rua ver que cousa era; e começando de falar uns com os outros, alvoroçaram-se nas vontades e começavam de tomar armas cada um como melhor e mais asinha podia».

 

A POESIA DE JORGE DE SENA
O poeta de «Fidelidade» era amigo próximo de Sophia e de Francisco, antiga visita assídua da Travessa das Mónicas. Houve cumplicidades políticas e cívicas, como o Centro Nacional de Cultura e «O Tempo e o Modo» em fundo. Os seus poemas de 1974 são significativos. Aí vemos a esperança e o cuidado, o entusiasmo e a distância crítica. «Nunca pensei viver para ver isto: / a liberdade – (e as promessas de liberdade) / restauradas. Não, na verdade, eu não pensava / - no negro desespero sem a esperança viva - / que isto acontecesse realmente. Aconteceu. / E agora, meu general?». O poema é de 27 de Abril. O autor chegava aos dias ansiados, como dizia em «Poesia II»: «Não hei de morrer sem saber / qual a cor da liberdade». E segue em «Nunca Pensei Viver»: «E tu povo, em nome de quem sempre se falou / ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores / com que saúdas as promessas de liberdade / tomarás nas tuas mãos com serenidade e coragem / aquilo que, numa hora única, te prometem? / E agora, povo português?». E o fundo da democracia que Sena questiona, intuindo as dificuldades para além do imediato. E vem a pergunta sacramental: «Qual a cor da liberdade? / É verde, verde e vermelha. / Saem tanques para a rua, / sai o povo logo atrás: / estala enfim altivas e nua, / com força que não recua, / a verdade mais veraz. / Qual a cor da liberdade? / É verde, verde e vermelha». A data é igualmente dos últimos dias de Abril – enviada a Jacinto Baptista, no «Diário Popular», a 29 de Abril. Mas profeticamente Jorge de Sena consegue em poesia exprimir alegria e dúvida, ciente da longa espera e de tantas hesitações. «Com o país dividido quase meio século entre donos da verdade e do poder, / para um lado, o réprobos para o outro só porque não aceitavam que / não houvesse liberdade, e o povo todo no meio abandonado à sua solidão / silenciosa, sem poder falar nem poder ouvir mais que discursos de salamaleque / há que aprender, re-aprender a falar política e a ouvir política». O poeta sabia bem de que falava. Aqui política é usada no mais nobre do termo, com sabedoria e generosidade, com clareza e determinação. Havia adesivos e acomodados, e o mais importante era garantir que liberdade, verdade e justiça não fossem esquecidas. Sintomaticamente, o título desta reflexão é «Com que então libertos, hein?». Com ironia e agudeza crítica Sena deseja que a responsabilidade tome o lugar do acaso! E seria necessário «refazer Portugal sem que se dissipe ou se perca uma parcela só da energia represa há tanto tempo».

 

LIBERDADE, LIBERDADE, TEM CUIDADO...
Falar hoje desse tempo e de Jorge de Sena, como de Sophia e Francisco Sousa Tavares, é invocar a democracia sempre incompleta, vulnerável, exigindo o nosso empenhamento e a nossa força: «Quem te amar, ó liberdade, / tem de amar com paciência. / Sonhou-se tanto contigo / se saber como saber-te / que é muito grande o perigo / de não ver o sonho antigo / nos braços em que há de ter-te». Não se julgue, porém, que esta paciência é confundível com indiferença. Não é, não pode ser. A «Cantiga de Maio» de Junho de 1974 diz tudo, e hoje é atual e premonitória: «Liberdade, liberdade, / tem cuidado que te matam. / Que muito povo se assuste, / julgando que és tu culpada, / eis o terrível embuste / por qualquer preço que custe / com que te armam a cilada. / Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam». A verdade é que por muito que o tempo vá passando e os ecos de júbilo se perpetuem, com descida de intensidade, o certo é que temos o dever de manter atenção a todas as fragilidades e incertezas que ameaçam a liberdade. Nunca há garantias de perpetuação das instituições democráticas sem uma vontade clara e a mobilização efetiva de todos.

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

 

de 9 a 15 de Abril de 2012

 

Prepara-se em boa hora a publicação da obra completa do Padre António Vieira. Saudando a iniciativa, recordamos a edição que tantos de nós lemos e consultámos: os três volumes de «Sermões», no âmbito das «Obras Escolhidas», na coleção «Clássicos Sá da Costa», com prefácios e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade. A primeira edição destes tomos foi de 1954 e a última, ainda está disponível, foi lançada em 2008, no ano do centenário do nascimento do «Imperador da Língua». Podemos através desta edição contactar com o orador sagrado de exceção, lendo os seus sermões mais conhecidos e celebrizados, com notas pedagógicas, que permitem uma boa compreensão das circunstâncias e do contexto em que foram ditos. 

 

 

ORADOR PORTENTOSO
O Padre António Vieira é das figuras mais apaixonantes da cultura portuguesa. Não é, por isso, possível compreendê-lo através de quaisquer simplificações. Há sempre no seu pensamento e na sua escrita um lado misterioso e insondável que ultrapassa todas as aparências. Orador portentoso soube sempre usar a palavra com subtileza e força, como um meio de persuasão e de sedução – como ninguém mais foi capaz na nossa língua. Pode dizer-se que estamos perante uma síntese fecunda do espírito barroco – ligação entre a clareza do verbo, a compreensão da diversidade do mundo e a curiosíssima articulação dos adornos, orientados para dar eficácia às ideias. E o seu carisma chega aos nossos dias. Ninguém fica indiferente às suas palavras, quatro séculos passados. Quantas mudanças, e no entanto persiste a atualidade da atitude, das palavras e da necessidade de mobilizar todos os seres humanos em torno do objetivo de tornar a vida e a sociedade mais justas. Como hoje se vê, conhecendo-se a «Clavis Prophetarum» (na tradução de Arnaldo Espírito Santo) há aí um pensamento de Vieira, que supera o excecional domínio do estilo, com uma reflexão teológica e política da maior profundidade, orientada para a criação de condições humanas de legitimidade e justiça – corolário do mistério da Encarnação de Jesus Cristo.
O debate em torno do «sebastianismo» é inesgotável, mas o certo é que Vieira não considerava a espera circunstancial de D. Sebastião como a questão fundamental. Mais do que o mito importava-lhe o exercício do desígnio de um povo. Como afirmou A. M. Machado Pires, em «D. Sebastião e o Encoberto»: a «essência do sebastianismo não estava na figura do rei (que lhe deu nome), mas nos anelos que há de realizar». O Encoberto não seria assim o monarca desaparecido nas areias de Alcácer Quibir, mas um rei com os atributos anunciados décadas atrás por Gonçalo Anes Bandarra, o sapateiro de Trancoso, capaz de libertar os povos das misérias, da tirania e do erro. D. João de Castro, em 1587, daria, aliás, conta dessa esperança no seu «Da quinta e última Monarquia futura com muitas outras cousas admiráveis dos nossos tempos». Durante o período da monarquia dual, as ideias sebastianistas expandiram-se compreensivelmente, e com maior intensidade nos anos finais (nos tempos de Olivares e do período decisivo da guerra dos 30 anos). Afinal, mais do que uma «Corte na Aldeia» era necessário um rei que consumasse a independência. Existia, assim, um desígnio político claro que tinha de ser compreendido na circunstância histórica, muito mais do que na busca de razões culturais ou até étnicas. O jesuíta deve, porém, ser visto e entendido no cruzamento de diversas influências e ações de fundo messiânico judaico, a começar no Livro de Daniel (2 – 31-35) e a continuar no profetismo de Santo Isidoro e de Frei Gil de Santarém, no ciclo bretão (de Merlim e do Rei Artur), na Idade do Espírito Santo do monge calabrês Joaquim de Flora e dos franciscanos espirituais, na influência de sefarditas e cristãos-novos e no Bandarra («Todos terão um amor / Gentios como pagãos / Os judeus serão cristãos / Sem jamais haver error»).

 

QUE MESSIANISMO? 
Para J. Lúcio de Azevedo (in «A Evolução do Sebastianismo», 1918) a origem do messianismo português estaria ligada a um patriotismo sagrado - «nascido na dor, nutrindo-se da esperança, ele é na história o que é na poesia a saudade, uma afeição inseparável da alma portuguesa». Já Maria José Ferro Tavares («O Messianismo na obra do Padre A. Vieira», 1999) afirma que «a história era a mestra do futuro da humanidade e tinha, por isso, uma função pragmática. Completavam-na nessa função as profecias: “Se quereis ver o futuro, lede as histórias, e olhai o passado: se quereis ver o passado, lede as profecias, e olhai para o futuro”, escreveria Vieira». António Sérgio consideraria o messianismo difundido pelo visionário de Trancoso um fenómeno nascido entre os cristãos novos – o bandarrismo «foi uma das causas ou fatores da imaginação portuguesa da decadência, graças ao encontro de ideias alheias com factos históricos supervenientes: um fenómeno social e intelectual, portanto, independente da raça em que se manifestou». Por seu turno, Machado Pires põe a tónica na interpretação histórica dos acontecimentos: trata-se de um esforço de sobrevivência política impulsionado por um instinto de conservação nacional, uma superação das horas de vexame e tirania». No fundo, as razões são várias. E o mais interessante e curioso é que Vieira, com grande argúcia, vai procurar compreender esses diversos elementos – centrando-se na ideia bíblica da segunda vinda de Cristo e na transposição da vocação de Portugal como a de um segundo «povo eleito». Contudo, ao falar na «Clavis» do Quinto Império o Padre Vieira dá-lhe um sentido universalista, não o ligando sequer a um poder nacional – em nome de «uma perspetiva verdadeiramente ecuménica e menos particularista», centrada na «indistinção» («não há grego nem judeu») e numa leitura de que «o império de Cristo não é só temporal, senão também temporal», como Pedro Calafate salienta («História do Pensamento Filosófico Português», vol. II, 2001).

 

UM ESPÍRITO ABERTO
Sabe-se que o Santo Ofício acusou os escritos do Padre Vieira pelos «laivos de judaísmo», todavia o que há é uma síntese entre o messianismo ambiente da transição dos séculos XVI para XVII e a situação política europeia da última guerra religiosa. Assim é que o clérigo jesuíta, depois de 1640, faz coincidir o «Encoberto» ou o «Desejado» com a figura de D. João IV, «herdeiro das esperanças de Ourique». A questão política é crucial para Vieira, o que se vê desde logo no sermão de S. Sebastião de 1634, onde parte da invasão holandesa da Bahia (1624), considerada como uma violação de um direito humano e divino – os hereges holandeses destruindo e profanando templos, perante os portugueses «verdadeiros soldados de Cristo». E em 1640 (maio ou junho) na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Salvador, dirá o «Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra a Holanda», onde se dirige ao próprio Deus: «Prouvera a vossa Divina Majestade que nunca saíramos de Portugal, nem fiáramos nossas vidas às ondas e aos ventos, nem conhecêramos ou puséramos os pés em terras estranhas. Ganhá-las para as não lograr, desgraça foi e não ventura…». Vieira usa o efeito da palavra para compreender e fazer-se compreender, para agir e fazer agir, para transformar ideias em factos, e para tornar factos em espírito. Como afirma Valmir Francisco Murano: «O messianismo vieirense foi tecido com os fios oferecidos pelo tempo em que viveu e pelo ambiente no qual respirou, como português, católico e filho da Companhia de Jesus. Sem dúvida, as Trovas ofereceram-lhe os moldes nos quais fundiu o seu edifício messiânico» («Padre António Vieira – Retórica e Utopia», Florianópolis, 2003, p.49).    

Guilherme d’Oliveira Martins

UM CÉU QUE SE AZULA: NEMÉSIO.

 

Por Teresa B. Vieira

 

Sempre senti Vitorino Nemésio como um homem despojado e um homem de uma coragem em singelo pela verdade das coisas.

 

Senti na sua comunicação a problemática açoriana como um local de temática religiosa próxima de uma resistência à compreensão do mistério ilhéu. Escrevi.

 

Quando o escutava nas suas palestras televisivas, ele surgia-me como alguém pronto a propor um louvor ao entendimento numa expressão verbal tranquila e cheia de presença humana.

 

Na sua escrita nunca se fecharam as palavras à intenção do mundo, antes a pluralidade de significações das mesmas foram proposta nemesiana do real que somos e que não devemos recusar admitir o quanto o somos, pelo anónimo e pelo quieto.

 

Havia na comunicação de Vitorino Nemésio uma preocupação pelo querer exprimir eliminando da escrita qualquer contaminação que produzisse hiatos descontrolados ao sentido.

 

Estas questões são, na minha modesta opinião, bem mais importantes do que se possa crer. Em rigor o incenso da escrita de Nemésio e de toda a sua comunicação constitui sempre o átomo onde sempre um pouco de céu se azula, e assim surge a via pela qual o sentimento do poeta ocorre num ritmo que nos leva.

E este é outro dom típico de Nemésio num processo extremo e exemplar.

 

Vitorino Nemésio foi e é uma lenha diferente, um peso cultural que a tudo está ligado.

 

Diga-se ainda que Nemésio é organizativo no poema e que une as separações mesmo as que se propunham por razão fabular ao conflito da distância.

 

Do seu Canto Matinal onde já se imaginaria os gloriosos mas sem porta a que se bata (…) até à necessidade de nomear o mundo com medo de o perder, faz-nos pressentir que muitos foram os dias dos luxos poéticos, atentos à viagem de barco, essa que os embala sempre numa certa ondulação do sem pudor, pois que pertence à inteligência ou à luz que macaqueia a luz perpétua.

 

Um dia Se Bem me lembro:

 

Se nós não temos medo de que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: temos sempre presente, como salutar advertência, a sensação de que o mundo é curto, e o tempo mais curto ainda.(…)

 

Ou no excerto do seu célebre livro Mau Tempo no Canal:

 

Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da caldeira sentiu-se uma tropeada, depois pó e um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope:

 

- Slowly! Let go him alone…

 

E como acrescentava Vitorino que ceifava as manhãs nos cabelos dela e ceifava-as uma a uma, canal abaixo, obtinha ele directamente o sonho, pois que fazendo as pessoas falar, sonhava o que se dizia pela fala, no empunhar de um silêncio sempre aberto a uma totalidade que só ele sabia mencionar.

 

Diria que bastou a Vitorino Nemésio um só alento à intuição. E uma doçura: porque o mar antes do meio-dia é sempre Domingo. Talvez por isso sua rede era também um poema do buscar

 

O Poema em que te Busco é a Minha Rede
Bem mais de borboletas que de peixes,
E é o copo em que te bebo: morro à sede
Mas ainda és margarida e não-me-deixes
E muito mais, no enumerar das coisas:
Cordão de laço e corda de violino,
Saliva de verdade nalgum beijo,
E poisas
(…) com um atilho vertical
(…) que estendo às tuas formas de mulher,
Com esta soma e verbal precaução
De um fónico doutor de Mompilher.

 

Vitorino Nemésio, in Caderno de Caligraphia e outros Poemas a  Marga.

A VIDA DOS LIVROS


de 2
a 8 de Abril de 2012


A «Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné» da autoria de Gomes Eanes de Zurara é uma obra que, apesar de muito discutida, constitui um elemento fundamental para a compreensão da decisão política da coroa portuguesa para avançar nos descobrimentos da costa de África para além do Cabo Bojador. Seguimos a edição do Visconde de Santarém de 1841, feita a partir do original que se encontra na Biblioteca Nacional de França, pela Casa Aillaud, com impressão de Fain e Thunot.

 

 

UM CRONISTA CONTROVERSO
Gomes Eanes de Zurara (nascido entre 1410 e 1420, e falecido em 1473 ou 74) foi guarda-mor e conservador da Livraria Real e em 1454 foi provido no lugar de Fernão Lopes como responsável da Torre do Tombo, sendo o primeiro cronista dos Descobrimentos. Como cronista-mor do Reino é autor de: «Crónica da Tomada da Cidade de Ceuta», «Crónica da Guiné» e das «Crónicas do Conde D. Pedro de Menezes e a de D. Duarte de Menezes». A sua obra tem sido envolta em polémica, em especial pelo facto de a «Crónica da Guiné» ter sido acusada de parcialidade e de ser hagiográfica relativamente ao Infante D. Henrique. No entanto, vários têm sido os autores a rebater esse ponto de vista, uma vez que é indispensável situar Zurara no contexto historiográfico e político em que se inseria. A «Crónica da Tomada de Ceuta» é uma continuação da «Crónica de D. João I», sendo provável que Zurara se tenha baseado em elementos recolhidos por Fernão Lopes. Todo o debate sobre as razões da conquista de Ceuta tem, aliás, na sua base, a investigação persistente e serena levada a cabo a partir da crónica de Zurara. E se há quem se pergunte sobre se Fernão Lopes foi «moderno», por comparação com Zurara, a verdade é que o cronista dos feitos da Guiné desempenha a sua função com competência, tendo um pé na historiografia medieval e outro nas novas ideias que alimentarão o renascentismo. Nesse ponto ambos os cronistas representam, cada um a seu modo, a transição no entendimento e nos métodos. Por outro lado, é natural que o cronista seja intérprete de conceções dominantes e inovadoras do seu tempo. E aí Zurara segue as pisadas de Fernão Lopes, em especial para o caso da Crónica de D. João I, centrando-se no papel desempenhado pelos heróis que simbolizam os atos de maior relevância, como no exemplo de Nuno Álvares Pereira. Não há aí diferenças, mas tão só prismas diversos para a análise.
 
HOMENAGEM AO INFANTE D. HENRIQUE
No caso de Zurara é o Infante D. Henrique que o cronista enaltece. Importa destaca-lo à frente dos «mui nobres e excelentes», merecendo especial referência alguns episódios bélicos, capazes de recordar as reminiscências dos romances de cavalaria do ciclo bretão, mais do que a descrição dos movimentos políticos, propriamente ditos. Há muitas vezes erros e imprecisões, que merecem atenção, mas estes não devem pôr em causa a importância de uma obra indiscutivelmente marcante. Aliás, independentemente das certezas históricas, que nunca há, verifica-se, como afirma o Visconde de Santarém, uma preocupação de Zurara no sentido de fazer um relato impressivo, capaz de fazer compreender o sentido das decisões e dos acontecimentos fundamentais. Damião de Góis terá razão ao acusar o estilo: «escrevia com razoamentos prolixos e cheios de metafóricas figuras, que no estilo histórico não têm lugar», contudo importa ver-se que, mais do que o estilo, há o contacto do cronista com os protagonistas dos acontecimentos o que nos permite enaltecer a importância desta obra, que nas linhas e entrelinhas revela muito mais do que pode parecer à primeira vista – havendo ainda mistérios a desvendar que têm a ver com o desenlace trágico de Alfarrobeira e com a morte do Infante D. Pedro. E o certo é que há um longo percurso de investigação e de reflexão historiográfica para verificar que papel desempenharam os Infantes D. Henrique e D. Pedro, qual a intervenção de D. Afonso V e como se situará D. João II nesta evolução muito complexa. De qualquer modo, Zurara não esquece a diversidade dos acontecimentos, destaca as razões de índole económica (desde o tráfico de escravos ao comércio), aliadas às referências aos progressos no conhecimento das novas regiões por onde se aventuravam os navegadores portugueses. O certo é que Zurara é um qualificado cronista do seu tempo, preocupado com o excessivo peso das conceções providencialistas e empenhado na procura de objetivos estratégicos. Se nos reportarmos às cinco razões apontadas para a ação do Infante, o certo é independentemente de elas estarem ou não, desde o início, na mente do impulsionador da expansão, a verdade é que estamos perante a consagração de alguns pontos fundamentais, que foram (e são) elementos assumidos explicitamente pela ideologia imperial portuguesa. Recapitulemos, assim, as razões, que levaram o Infante a pensar avançar para Sul: a vontade de conhecer as terras existentes para além do Cabo Bojador; o desejo de saber se existiriam aí populações cristãs com quem se pudesse comerciar pacificamente; o interesse em ter um melhor conhecimento do poderio dos muçulmanos; a esperança de encontrar um príncipe cristão que se quisesse aliar aos portugueses no combate ao Islão, e o desejo de alargar a cristandade e de difundir o cristianismo.

 

UMA CONVERGÊNCIA DE FATORES
É difícil sabermos quando é que o objetivo da chegada ao Índico foi claramente assumido e em que circunstâncias. Não sabemos ao certo. A verdade é que o Infante D. Pedro trouxe, depois da sua viagem europeia, e a partir dela, um conjunto de elementos informativos de enorme qualidade, quer cartográfica (o mapa de Fra Mauro), quer o relato de viagem de Marco Polo até à China, além de outros relatos. Zurara conhecia esses elementos, sendo, deste modo, um exemplo de que os objetivos da Expansão foram sofrendo adaptações e ajustamentos, ao longo do tempo, influenciados desde o início por uma evidente contradição: por um lado, o alcance do bloqueamento ao crescimento do comércio no Levante mediterrânico pelo Islão; por outro lado, haveria que encontrar alternativas quer em termos de recursos económicos, quer na busca de sucedâneos para os produtos vindos do Oriente. No fundo, ao lermos Zurara, encontramos pistas indispensáveis para uma leitura da história europeia e mundial, a partir da complementaridade conflitual entre uma política de Estado e uma estratégia nacional baseada na vitalidade económica e na iniciativa dos diferentes agentes envolvidos.

 

Guilherme d’Oliveira Martins