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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

LONDON LETTERS

IX. The Black Thursday, 1929

 

A festa na Fifht Avenue é ainda esplendorosa. Sir Winston Spencer Churchill é o convidado de honra de Bernard Baruch, o financeiro que reúne na sua mansão cerca de 40 “bankers and master plungers” naquela noite de October 29, 1929. Todos se apresentam galantes as usually, but dramatically cada qual empobrecera já com a Black Thursday na New York Stock Exchange e a Niagara liquidation que se lhe seguira. O pior, porém, está para vir. – Do remember Steinbeck’s The grapes of wrath. Um nefasto evento, em especial, ensombra a segunda viagem aos USA do futuro Britain's wartime Prime Minister. Acompanhando a brutal queda de valor dos títulos bolsistas, 50% logo nos primeiros dias, alguém salta da janela do hotel onde estão três dos filhos de Lord Randolph e Jennie Jerome. – Quelle horreur! A crise gerará uma infinita pobreza e cedo atravessa o Atlântico para estoirar com o sistema financeiro internacional, polvilhar o velho continente com strong mens e pavimentar a road to II World War (1939-45).

 

 

Dada a magnitude dos efeitos decorrentes do Wall Street crash que extingue a exuberante ilusão de prosperidade dos 1920s, surpreende que os 11 negros anos da Great Depression comecem sem ninguém se aperceber do facto. Se, out of touch, o US President Herbert Hoover decreta uma “re-established confidence” à data do financial cataclysm, identicamente The Harvard Economic Society então atesta que “[a] severe depression like that of 1920-21 is outside the range of probability. We are not facing protracted liquidation.” Também entre os papéis de Sir Winston, cuja integral digitalização foi agora disponibilizada pelo Churchill College, Cambridge, existe um tranquilizador cablegram datado de November 15, 1929. Escreve Baruch na mensagem enviada a nenhum outro senão o decisor do regresso britânico ao Gold Standard (enquanto Chancellor of the Exchequer do Stanley Baldwin’s Govt derrubado nas últimas eleições): “Financial storm definitely passed.” Nada mais distante de uma negra realidade económica em aceleração! Com a escassez do dinheiro, e um pouco por todo o lado, a produção colapsa, o desemprego alastra e regressam as poor man's soups. O desespero tem preço.

 

 

Desconheço se o governador da Big Apple está na “bizarre celebration” do Churchill’s “favorite American”, mas em breve Mr Franklin Roosevelt rumará a Washington DC sob o lema do New Deal. E é à luz daqueles dias que um e outro líder depois inscrevem na Atlantic Charter, acordada a bordo do HMS Prince of Wales em August 14, 1945, que, “after the final destruction of the Nazi tyranny, they hope to see established a peace which will afford to all nations the means of dwelling in safety within their own boundaries, and which will afford assurance that all the men in all the lands may live out their lives in freedom from fear and want.” Ora, pela liberdade face ao medo e à necessidade voltaram as manifestações às ruas de London. Já Rt Hon William Hague avisa em Berlin que a Britain's relationship with Europe está a zeros. O Foreign Secretary informa da public unhappiness quando Mrs Teresa May ultima preparativos para a 130 powers’ devolution de Brussels. Com a Eurozone’s crisis em fundo, o caso da retirada continental é tão sério quanto mais de metade dos ministros é eurocéptico e Mr David Cameron ameaça vetar o crescente EU budget. – Are they making a B-plan?!

 

St James, 23th October

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 29 de Outubro a 4 de Novembro de 2012

 

«Chica da Silva e o Contratador de Diamantes: o outro lado do Mito», de Júnia Ferreira Furtado (Companhia das Letras, 2003) é uma oportunidade para conhecermos um pouco mais o Brasil mineiro do século XVIII, com as suas contradições, dúvidas e projetos.

 

EM FRENTE DA CASA DE CHICA DA SILVA
É manhã em Diamantina, há uma leve e fresca brisa, o céu está nublado, e paramos diante da casa que foi de Chica da Silva. Estamos no velho Arraial do Tijuco, perante um solar tipicamente português, semelhante aos que encontramos em Goa, com beirado, um primeiro andar austero e treliças nas janelas altas. A tradição da casa portuguesa aqui está. A cidade bem poderia ser do Minho ou das Beiras. A mansão senhorial (com eira e beira) está num ponto alto da cidade. Por aqui entramos na urbe, concebida pelos engenheiros militares portugueses, com uma estrutura tradicional, condicionada pela divisão da propriedade, sem um plano preconcebido, ao contrário da colonização espanhola, com grandes quadras, rua direita e largo do mercado ou da quitanda. O solar, adquirido pelo desembargador João Fernandes de Oliveira (1720-1779), contratador de diamantes, bacharel em leis pela Universidade de Coimbra, foi a morada onde este viveu, com Francisca da Silva Oliveira, antiga escrava, mulata alforriada, de quem teve treze filhos, todos reconhecidos, o que na altura era incomum. A célebre Chica da Silva. E a verdade é que, apesar de concubina e de ter vivido quase sozinha a partir de cerca 1770, ganhou grande influência social, participando nas quatro irmandades da cidade: quer nas de brancos, como do Carmo e de S. Francisco, quer nas de mulatos e negros, as das Mercês e do Rosário. Sentimos a aura desta mulher notabilizada pelas mais variadas lendas, ao caminharmos até à igreja de Nossa Senhora do Carmo. Lembre-se que as ordens e os seus conventos estavam interditos nas regiões de mineração, cabendo a iniciativa de culto às irmandades, neste caso à da Ordem Terceira do Carmo. O templo acabou por ser financiado apenas por João Fernandes, que se desentendera com os outros membros da Irmandade, ao escolher o local para a construção, na proximidade da sua Casa do Contrato. A igreja barroca (1765) de nave retangular, com óculo rococó na fachada, tem uma característica singular, pois possui uma torre, não colocada na fachada, mas atrás da nave. Há diversas explicações para o facto: ou a situação permitiria que Chica da Silva frequentasse os ofícios, porque uma regra proibiria os negros de irem "além das torres", ou porque assim o toque dos sinos incomodaria menos a casa da benemérita. Não importa entrar em grandes considerações. A verdade é que a vida do desembargador João Fernandes, regressado a Lisboa, foi perturbada pelo fim abrupto do contrato de exploração de diamantes, apesar dos apoios dados pelo pai e homónimo ao financiamento da reconstrução de Lisboa depois do grande terramoto. Isto, por decisão do Conde de Oeiras, Sebastião José, em paralelo com complexos arranjos testamentários, em torno de notáveis casas da cidade de Lisboa, entre as quais a célebre «Casa da Lapa», na Rua do Sacramento, no sítio de Buenos Aires, que hoje alberga a Fundação Luso-Americana e assim está remotamente ligada a Diamantina e também a Chica da Silva.


DEAMBULAÇÃO EM DIAMANTINA
Mas continuamos a peregrinação de Diamantina. Rua da Quitanda, Casa do Muxarabié, o comércio crepita nas margens do Jequitinhonha com intensidade: panos bugigangas, tapetes de arraiolos, botecos. É uma cidade do século XVIII plantada nos dias de hoje. Muxarabié é o balcão com treliças de influência moura que esconde a biblioteca do Dr. António Torres – cuja bengala foi celebrizada na prosa de Nemésio. Mais adiante, está a Catedral Metropolitana de Santo António, construção do século passado que substituiu a antiga Sé, agora com dois preciosos altares de talha dourada da velha igreja, invocativos de Nossa Senhora e de Santo António. A igreja barroca de S. Francisco de Assis, no início da ladeira do mesmo nome, foi concluída em 1772, e tem pinturas de Silvestre de Almeida Lopes. Aí está sepultada, com honras excecionais, Chica da Silva. Em frente, no largo fronteiro, encontra-se a estátua de Juscelino K., que pontua como referência do herói cívico e político da cidade que o viu nascer. No pequeno museu do diamante, na casa que foi do Padre Rolim, um dos inconfidentes mineiros, lembramos o início clandestino desta exploração, iniciada em 1713, mas só oficializada junto do Rei de Portugal nos anos trinta. Primeiro funcionou a regra do quinto, que também se aplicava ao ouro, mas depressa se percebeu que o regime deveria ser outro e a Carta Régia de 9 de Fevereiro de 1730 deu plenos poderes a D. Lourenço de Almeida para regular e providenciar sobre a exploração de diamantes. Calcula-se que entre 1730 e 1860 tenham sido produzidos, em Minas Gerais, 610 quilos de diamantes, sendo o Brasil nesse tempo o primeiro produtor mundial. Vemos alguns dos exemplos das preciosidades…

 

UM MERCADO CONHECIDO
Seguimos para o mercado, estrutura de madeira semelhante aos nossos mais antigos de Entre Douro e Minho, como o de Ponte de Lima. O desenho dos arcos denuncia influência árabe, e foi aqui que Niemeyer se inspirou para o projeto da fachada do palácio da Alvorada. Com o estômago carecido de urgente restauração, recompomo-nos magnificamente com uma refeição mineira no «Apocalipse», num primeiro andar, debruçado sobre o largo do mercado e o início do chamado caminho dos escravos. E vêm as sobremesas, que superam tudo o que seria esperável, como se fora Menino Jesus em metáfora doce. Depois, retomamos a caminhada por entre as ruas acolhedoras que nos são muito familiares. Muitos dos colegas de viagem dizem desejar que o tempo pare para poderem gozar deste ambiente tão português, com uma pureza fantástica, bem evidente, por exemplo, na rua do Burgalhau. E vamos à igreja da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (1728), a mais antiga da cidade, com um frontão em madeira e arquitetura da Contra-Reforma, com imagens dos santos da devoção da irmandade: Santo António de Cartagerona, S. Benedito, Santa Ifigénia e Santo Elesbão. Deambulamos pelos altos e baixos da cidade, tomamos contacto com o barroco e o rococó, dentro do recato próprio de uma cidade excêntrica que conseguiu manter a descoberta dos diamantes escondida durante mais de duas décadas. Vamos ainda à casa do Presidente Juscelino Kubitschek e depois até ao Passadiço da Glória, verdadeiro ex-libris da cidade, a lembrar os tempos em que o velho orfanato era incomodado pelo barulho suspeito do Bataclan. O passadiço azul é de 1878, quando os dois prédios passaram a ser do orfanato dirigido pelas irmãs de S. Vicente de Paulo. Fora casa de dona Josefa Maria da Glória, depois residência dos intendentes do distrito e lá ficaram hospedados grandes exploradores como Auguste de Saint-Hilaire, Langsdorff, von Martius e Richard Burton. Hoje, alberga o centro de geologia dedicado ao nosso bem conhecido Barão Wilhelm von Eschewege (1777-1855), que visitou o Arraial de Tijuco em 1811 e é considerado o patriarca da geologia brasileira, tendo sido intendente das Minas de ouro (1811). Amigo de Goethe, foi encarregado por D. Fernando II, se grande admirador, para reconstruir o Palácio da Pena e o seu parque. À noite, tivemos uma tocante seresta, que é uma serenata mineira, com uma ternura muito especial e ecos, ora do fado, ora das mornas cabo-verdianas. E tudo acabou, com intensa emoção, a recordar J.K. e a sua querida canção emblemática. «Como pode um peixe vivo / viver fora de água fria».

 

UM OUTRO MUNDO
Pela manhã, muito cedo, às seis, à hora prima de tempos imemoriais, voltámos à estrada em direção a Inhotim, passando à ilharga de Belo Horizonte. E que é esse parque imenso de futuro, iniciativa de Bernardo Paz senão um encontro único com a arte de hoje, com a botânica e o meio ambiente, a cidadania e a inclusão, o desenvolvimento sustentável e a educação? Janet Cardiff joga com o som, Adriana Varejão com os azulejos, Edgar de Souza com os corpos e Cildo Meireles com os espaços. Inhotim é a certeza de que é o futuro o que o passado anima…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

COISAS DA CHINA...

 

"A terra da China produz todos os bens em abundância:porque deveríamos então comprar no estrangeiro pacotilha sem interesse?" - perguntava o imperador Ming Zhu Gaozhi (1425-26), justificando o termo brutalmente imposto às expedições ultramarinas iniciadas pelo eunuco muçulmano chinês Zheng He (1371-1433) sob o imperador Ming Yong Le (1360-1424), que terão possivelmente levado naves chinesas a dobrar, em sentido contrário, antes dos portugueses, o Cabo da Boa Esperança. Durante três décadas, de 1405 a 1433, Zheng He terá comandado sete expedições que chegam à Arábia e África Oriental, provavelmete até Sofala, tocando em caminho a Malásia, a Indonésia e a Índia. Algumas das esquadras compõem-se de mais de duzentos navios, transportando quase trinta mil homens e muitas mercadorias: sedas e porcelanas,etc...que se trocam por essências, resinas e madeiras, jade... Mas não os move a procura obsessiva do ganho, nem o proselitismo religioso que "empurraram" as descobertas europeias. Como diz Joseph Needham: "os chineses não procuravam contornar uma grande civilização estrangeira que se situasse no caminho das suas rotas comerciais; interessavam-se por objectos estranhos, por raridades e pela percepção de tributos de princípio, mais do que por qualquer tipo de comércio; não eram movidos pelo proselitismo religioso, não construíam fortes nem fundavam colónias. Durante menos de um século verifica-se a sua presença e, repentinamente, deixaram de aparecer e a China regressou à sua vocação agrícola voltada para o interior". Se a exaustão dos cofres do Estado, pelas elevadíssimas despesas com a construção do grande canal de união dos dois grandes rios, com a mudança da capital do sul (Nanjing) para o norte (Beijing) e a edificação da Cidade Interdita foram, tal como o custo das expedições ultramarinas, um factor de peso na terminação destas últimas, já o facto de Zhu Gaozhi, sucessor de Yong Le, e sobretudo Zhu Zhanji terem mandado destruir todos os navios, cartas e mapas, como tudo o que servisse à navegação, bem como proíbido sob pena de morte qualquer viagem ou contacto com o estrangeiro,reflecte uma política deliberada de regresso a um confucianismo agrário de seclusão do Império do Meio. Como se lê no "Livro dos Documentos": "Nós reinamos sobre tudo o que vive debaixo do céu, pacificando e governando os Chineses e os bárbaros com a mesma bondade e sem distinção entre o meu e o teu... E não há lugar algum em que não se tenha ouvido falar dos nossos costumes e admirado a nossa civilização!". Em 8 de Novembro próximo,o Comité Central do Partido Comunista Chinês inicia o seu XVIII Congresso. Tema central das discussões e dcisões políticas será o ritmo de crescimento do PIB e o próprio modelo económico do Império do Meio. O frenesi e a rapidez de grandes investimentos e obras tem sido posto em causa, não só por razões de ordem financeira, económica ou social, mas pela qualidade e segurança das mesmas. Assim, num jornal de Hangzhou, escreve Tong Dahuan: "Ó China,abranda o passo, deixa de correr a toda a velocidade! Espera um pouco pelo teu povo, espera um pouco pela tua alma! Espera um pouco pela tua moral! Espera um pouco pela tua boa consciência! Não deixes que os comboios descarrilem, nem que as pontes se abatam, nem que as estradas se transformem em ratoeiras e as casas se tornem perigosas! Abranda, para que todos os cidadãos cheguem sãos e salvos ao seu destino, para que a liberdade e a dignidade de todas as vidas humanas sejam respeitadas e para que nenhum cidadão fique de fora da sua época!". E todavia a taxa de crescimento do PIB será, em 2012, de 7,5%, ou seja, quase metade da de 2007! Das suas componentes, baixam o investimento e as exportações, começa a crescer o consumo interno. Um dos intelectuais mais críticos e respeitados do Partido, Deng Yuen, escrevia há pouco: "O cerne do problema do abrandamento é que a China desenvolveu uma economia voltada para as exportações e assente numa mão de obra e em recursos baratos, ao ponto de já não ser capaz de encaixar o choque externo provocado pela recessão económica mundial".  Por isso, apela a uma transformação do modelo de crescimento,designadamente quanto à orientação dos investimentos públicos para o bem estar dos cicadãos, e não já em sectores industriais com capacidade excedentária. Mas também reclama um Estado de direito, a democratização e a reforma da vida política. Que farão os sucessores de Hu Jintao e Wen Jiabao, cujos nomes conheceremos oficialmente já neste Novembro? Da China, como vimos pelo exemplo exposto no início do presente texto, tudo se pode esperar. Mas uma certeza temos: grande ou pequeno, qualquer país terá de se pensar hoje como parte de um mundo global. Pelo que a política e a diplomacia se deverão preocupar e ocupar, menos com manobras, e mais, muito mais, com a afirmação e partilha de valores e princípios de convivência e acção.
 
Camilo Martins de Oliveira

A loucura é o quarto do esquecimento


O prémio Albert Londres foi atribuído ao primeiro jornalista (repórter da France 2) ocidental morto na Síria desde o início da revolta contra o regime do contestado presidente Bashar al Assad. Assim li a notícia e vi o rosto da viagem longa deste jornalista de investigação que era

 Gilles Jacquier.


Albert, francês, era o jornalista «literário» e o jornalista irrequieto, o jornalista investigativo e que também levara a França a confrontar-se com os seus asilos psiquiátricos, com o trabalho forçado, e a aplaudi-lo de pé quando, em 1932, um mês depois da sua morte, um teatro de Paris esgotou a sala com uma peça extraída de um dos seus livros.


No princípio do século XX Albert Londres era um dos mais notados jornalistas em França. Informou sobre os combates na Sérvia, Turquia, Albânia e nomeadamente descreveu a nascente bolchevique na URSS.  Interessou-se analiticamente pelo esforço físico do Tour de France e criticou as regras impostas aos que ele chamou os condenados da estrada e Tour de France, Tour de souffrance.


À sua poesia não quis a crítica de então dar-lhe reconhecimento e aos 40 anos de Albert, ainda se dizia que, a inveja, se esforçava por deixá-lo na sombra das reportagens portadoras da sua estilizada palavra e pertinência temática. Recordo-me de ter falado com o António Alçada sobre Albert, e bem me lembro com que força de tónica na palavra ele então me dissera:


«Ele era imprevisível, Teresa. Ele era imprevisível e todos temiam o embaraço.»


Gilles morre nos dias de uma Síria de hoje, e é meu o embaraço se não recordo Albert Londres, o jornalista que tão bem retratara países transtornados sob grotescas verdades, onde, ao serviço de uma realidade se morre como que deportado por uma luz que também espreita o livro de Albert Londres “COM OS LOUCOS”


 

Albert também se atreveu a atacar a incompetência do trato nos asilos psiquiátricos.


O nosso dever não é para nos livrar do louco, mas para livrar o louco da sua loucura, escreve.


Era então a conhecida lei 38 a que regia os asilos num autêntico arsenal jurídico que grave punição atribuía ao violador do segredo profissional. Afinal ao violador que gritasse contra a mão que empunhou a granada que matou Gilles, na Síria de hoje.


«Os asilos fabricam loucos.(…)Doutores! Não faltam asilos aos «doentes», faltam cuidados. (…) O Senhor tem razão, (…) façamos uma emenda à Lei de 38!Tornemos o internamento mais cómodo.»


E como quem lê os sulcos do cérebro, Albert escrevia:


«A outra tinha-lhe “pregado a partida” de provar que não estava louca! (…) mas não basta estarmos inocentes; é preciso o nosso vizinho não fazer os outros pensarem que podemos vir a ser criminosos. Em caso de dúvida, todos nos tornamos duvidosos. Os curados continuam a estar como “meio loucos” nos asilos.


Afinal para Albert Londres o escravo não era comprado, nascia. E uma imensa realidade se explicava assim: de braços caídos.


E quando um médico lhe respondeu que aqueles continuavam no asilo porque não conseguiam adaptar-se à vida em sociedade e não tinham preocupações com o seu futuro, Albert acrescentou:


Imagina-se o fenómeno que seria alguém estar fechado desde há seis anos e atrever-se a ter preocupações com o futuro?(…) Este médico-chefe não tem, por certo consciência do que escreveu. Bastaria uma só manhã para eu, com estes mesmos “itens”, internar vinte dos meus melhores amigos.


A chancela da Sistema Solar, em Julho do corrente ano, ajudou a relembrar-nos o quanto um doente do fígado, mal esteja curado sai do hospital e esse é o nosso hábito. Mas nos nossos dias, o louco tem de esperar pela sua hora, pois o louco nasceu cedo demais para ser entendido, e enquanto ao bandido depois de ter cumprido pena, abrem-lhe a porta da prisão, o ex-louco é prisioneiro, não em nome do passado mas em nome do futuro.


Gilles Jacquier, o jornalista que há pouco morreu na Síria, recebeu o prémio Albert Londres: assim a loucura assassina não continue a ser o quarto do esquecimento. De resto, a loucura não é um castigo de Deus, mas antes, tudo o que os homens lhe acrescentam.

 


Teresa Vieira

D’APRÈS D. FRANCISCO DE QUEVEDO

Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu peito.

 

E traí e fui traído,
e duvidei, e impacientei-me, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).

 

Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.

 

Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.



Manuel António Pina

LONDON LETTERS

IX. The Peace Nobel Prize, 2012

 

O Den Norske Nobelkomite atribuiu o 2012 Peace Nobel Prize à União Europeia, "for over six decades contributed to the advancement of peace and reconciliation, democracy and human rights in Europe". – Mes compliments! O galardão ganha força e significado à luz das inquietantes nuvens pairando sobre um continente que hoje como que substitui a co-operação das nações pelo diretório dos Estados e a tensão ideológica global saída da Cold War pela clivagem local da sobrevivência Norte-Sul. – What would Sir Winston Churchill say about it? O galardão surge quando há povos europeus de regresso às ruas.

 

 

 

 

A reação ao anúncio de Oslo foi aqui mista. Uns saudaram a homenagem aos European founding fathers, de Jean Monnet e Robert Schuman a Konrad Adenauer, Paul-Henri Spaak ou Alcide De Gasperi. Mas foi também objeto de pontos de exclamação quando outros colocaram as atuais lideranças no lugar dos projetistas da paz. Já Boris Johnson, o mayor de London, sustenta que tal reconhecimento antes deveria ir para Mrs Margaret Thatcher, cujo monetarismo e firmeza face a Brussels não toldou a perspicácia de reequacionar todo o complexo xadrez geopolítico com Mr Ronald Reagan em Washington e Mr Mikhail Gorbachev em Moscow, extraindo lucidamente as lições de uma Europa dividida num mundo então sempre à beira de uma nuclear war.

 

 

 

Tudo ocorre nos Downing Street years de Maggie. Fora com horror que Mr Harold Macmillan lera os memos do Foreign Office sobre o confronto entre John F. Kennedy e Nikita Khrushchev nos mares da Cuba. Em Outubro de 1962, com os arsenais dos dois lados da Iron Curtain apontados à Mutual Assured Destruction, a Russian nuclear roulette joga-se nas Caraíbas de Fidel Castro – Those were the most dangerous few weeks in history! A lucidez vence a imprevisibilidade: democratas e comunistas recuam para as áreas de influência, sem todavia depois impedirem guerras de procuração nas periferias ou a presença da nuclear paranoia nas chancelarias. O globalizado impasse chega aos 80s, com misseis Cruise e Pershing estacionados até em Berkshire, England. Mas é a esperança pregada nos 60s pelo II Vatican Council a orientar a diplomacia da Iron Lady quando o Kremlin alarga a perestroika à política externa, sob a tradução do bispo polaco Karol Wojtyła como Pope John Paul II. O compromisso alargado dos great powers põe então fim à Cold War e revitaliza a paz europeia ora saudada.

 

Três homens e a honorary gentleman do Carlton Club mudam o mundo – for the better. Oslo será a nova luz na União Europeia - eventually. Afinal, como dizia Alfred Nobel: "If I have 300 ideas in a year and just one turns out to work I am satisfied."

 

St James, 16th October

 

Very sincerely yours,

 

V.

A FUNDA

 

Oliveira Martins

 

O dr. Guilherme de Oliveira Martins propõe que se substitua a Austeridade pela Sobriedade.

Vejamos.

Um homem austero é um homem triste.

Um País austero também.

Um homem sóbrio é um homem auto-controlado.

Um País sóbrio também.

A Austeridade é uma auto-encenação moral, digamos moralista e sentenciosa.

A Sobriedade é uma contenção e um procedimento.

A Austeridade encena-se para o redor.

A Sobriedade respeita o redor.

A Austeridade impõe.

A Sobriedade exemplifica.

A Austeridade esmaga.

A Sobriedade, sobrevivemos-lhe.

A Austeridade é antropófaga.

A Sobriedade senta-se, colectivamente, à mesa.

Politicamente é uma diferença abissal.

A Austeridade é a incompetência política e a Sobriedade é a competência política.

Competência política feita de cultura, de sociabilidade, de solidariedade, de humanismo.

De economia, também. Porque, como diz um Prémio Nobel dela, a Economia somos nós e as nossas vidas.

Há optimismo na Sobriedade.

Há pessimismo na Austeridade.

A Austeridade é um túnel selvagem virado para dentro de si próprio.

A Sobriedade leva a luz ao peito.

Resumindo: a Austeridade é uma pain in the ass e a Sobriedade não é uma pain in the ass.

 

Artur Portela

A poesia vai

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?»    E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —


Manuel António Pina 

A VIDA DOS LIVROS


de 22 a 28 de Outubro de 2012


Na visita ao complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, compreendemos que ali se deu uma viragem na arquitetura mundial, que culminaria na construção de Brasília, graças também ao impulso decisivo do entusiasta de Belo Horizonte, o célebre prefeito J.K.. Hoje recordamos o diálogo entre a arte barroca e as suas sequelas modernas e a obra-prima de Gilberto Freyre (1900-1987) «Casa Grande e Senzala» (1933).

 


DOIS PAÍSES MODERNOS

Uma relação moderna entre Portugal e o Brasil obriga a entender que as raízes históricas têm de ser caldeadas pelas consequências presentes da globalização. A historiografia crítica de ambos os países está hoje em condições de entender que há diferenças e complementaridades que têm de ser compreendidas e aprofundadas – num sentido crítico e emancipador, estruturadas através de um modo universalista de encarar a cultura e de uma língua comum. Impõe-se, por isso, um conhecimento mais exigente de duplo sentido, uma vez que a diversidade cultural e histórica pressupõe movimentos centrípetos e centrífugos. Do ciclo do pau-brasil passou-se ao do açúcar, que no início do século XVII correspondia a cerca de 95 por cento das exportações brasileiras, tornando o nordeste uma das zonas mais prósperas da América. No entanto, a queda dos preços internacionais da matéria-prima mudou drasticamente o curso dos acontecimentos, num sentido dramático não fora a descoberta do ouro e dos diamantes no virar dos séculos XVII e XVIII. É, no entanto, a miscigenação biológica e cultural que vai constituir a chave fundamental para a pujança criadora que gradualmente se foi afirmando no Brasil.

 

CASA GRANDE & SENZALA
Uma leitura moderna e atualista de «Casa Grande e Senzala» de Gilberto Freyre, completada pelos resultados das recentes investigações históricas e sociológicas, permite entender melhor o que Sérgio Buarque de Holanda designa como «Raízes do Brasil», bem como os desenvolvimentos que entretanto se foram produzindo. Lembremos a importância dos bandeirantes paulistas. Foram eles que romperam o limite do meridiano de Tordesilhas, levando o Brasil às fronteiras do presente. Os estudiosos são unânimes em referir as virtudes e os evidentes riscos dessa autocolonização, que poderia ter conduzido à fragmentação territorial. O certo, porém, é que o «melting-pot» e a construção do Estado (à imagem de Portugal) permitiram uma síntese extraordinária e uma unidade surpreendente. E diz ainda Gilberto Freyre: «Em contraste com o nomadismo aventureiro dos bandeirantes – em sua maioria mestiços de brancos e índios – os senhores das casas grandes representaram na formação brasileira a tendência mais caracteristicamente portuguesa, isto é, o pé-de-boi, no sentido da estabilidade patriarcal». Fora da tendência de exclusão que encontramos na América do Norte relativamente aos mestiços, o Brasil é um exemplo de respeito e tolerância no tocante aos filhos de cruzamentos de grupos étnicos diferentes. Não poderemos esquecer que o Padre António Vieira, ele mesmo, era neto de uma mulata, e que tal não o impediu de ser figura de primeiríssimo plano no seu tempo. A religião, a música, a literatura e arte são profundamente influenciadas por essa mestiçagem, mistura enriquecedora absolutamente inédita. Falar de uma «cultura luso-brasileira» é referir uma realidade profundamente original e diferente, demarcada das de onde partimos e que se cruzam no inesgotável território brasileiro. Voltando a Freyre: «para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte plebeia e, além do mais, moçárabe, isto é, com a consciência de raça ainda mais fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do norte, que se estabeleceria na América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente europeu». Já lembrámos a justa crítica de Vitorino Nemésio sobre o desconhecimento nosso sobre a cultura brasileira e a míngua de estudos brasileiros aqui. É um desafio fundamental perante que nos encontramos. Não basta a invocação comemorativa de laços ou recordações. E não se pense que a economia avança sem o intercâmbio e o diálogo da cultura. A situação mundial e europeia obriga a um estreitamento de relações de conhecimento e de criatividade, de saber e iniciativa. Não se trata de pensar em alternativas globais à construção europeia, mas da construção de um novo relacionamento atlântico com interesses e valores comuns e diferentes.

 

O SONHO DE J. K.
No final do primeiro dia da visita do CNC, no conjunto arquitetónico da Pampulha em Belo Horizonte, recordámos Juscelino Kubitschek e a visão futurista do jovem prefeito (1942-44), anunciando ali o que seria o fantástico sonho de Brasília, com Óscar Niemeyer. O Cassino funcionou fugazmente como salão, pela proibição pelo Presidente Dutra dos jogos de fortuna e azar (em 1946), passando a ser um centro de arte na década seguinte. A Casa de Baile acompanharia o destino do Cassino. O Iate Ténis Clube é monumento nacional e os jardins de Roberto Burle Marx são uma referência da arquitetura paisagística. A Igreja de S. Francisco de Assis também é monumento e é um exemplo de renovação da arte religiosa, com os painéis e azulejos de Cândido Portinari, de Paulo Werneck e as esculturas de Alfredo Ceschiatti. Homenageámos, assim, Nuno Teotónio Pereira e os seus companheiros do nosso MRAR, como o tínhamos feito relativamente a Gonçalo Ribeiro Telles, quando falámos de Burle Marx, lembrando igualmente Ruben A., diretor dos serviços de imprensa da Embaixada do Brasil em Lisboa, que tanto contribuiu para o conhecimento da obra emblemática de Belo Horizonte. A utilização das curvas por Niemeyer prolonga o barroco e afirma a identidade de Minas Gerais e desse espírito artístico de contradição, de representação, de metáfora, de sonho, de imperfeição, de humanidade e universalismo. E, sobre o barroco brasileiro, temos de lembrar Mário de Andrade (1893-1945), o primeiro a reconhecer a continuidade entre a obra dos santeiros e dos escultores dos século XVIII e a epopeia modernista. António Francisco Lisboa foi o génio que interpretou e antecipou. O barroco do Aleijadinho não se limita a ser estilo da época (até porque é único) – é uma atitude original, que põe a arte de Minas Gerais num ponto singular na história, como reconheceu Germain Bazin. E se dúvidas houvesse, aí está a literatura pujante desse barroco brasileiro especial, projetado para além de setecentos. Desde o Padre António Vieira até Euclides da Cunha (com «Os Sertões – Campanha de Canudos», 1902, sobre o movimento de António Conselheiro) – onde as metáforas e as contradições se encontram, com a plasticidade da língua. E a verdade é que Mário de Andrade não pôde prever que João Guimarães Rosa seguiria esse filão, como, aliás, João Cabral de Melo Neto (admirador confesso de Quevedo e Gôngora) e Carlos Drummond de Andrade… Por um momento, nesse sonho barroco de letras e artes, quase esquecemos que Belo Horizonte nasceu em 1897, planeada ortogonalmente por Aarão Reis, para suceder a Mariana e Vila Rica de Ouro Preto, onde o bandeirante João Leite da Silva Ortiz, guarda-mor das minas de Goiás, fundou, a partir de uma concessão em sesmaria (1711), o Curral d’El-Rei.


Guilherme d’Oliveira Martins

TRANSFUGA DA NATUREZA...

 

Não se volta atrás,não há regresso possível. O que era foi,sem repetição alcançável. Disse Ortega y Gasset que "el hombre es un transfuga de la naturaleza". E por isso, por em cada um de nós se iniciar e progredir sempre a consciência da liberdade de ser, somos, em música, uma fuga. Desenvolvemos um tema. Ou, em poética, glosamos um mote. À procura dessa qualquer harmonia, do que, à frente e para além, nos reconstitua na felicidade. Esta terá sido perdida - assim nos contam os relatos originais em textos religiosos e filosóficos -- mas talvez volte a ser possível, não como regresso, só como porvir. Os homens são como as árvores: precisam de raizes para crescer, são uma semente cuja sombra possível ninguém conhece. Mas no advento de qualquer futuro - ainda que incógnito - de pessoas, instituições, nações, culturas ou civilizações, há sempre uma parte decorrente do exercício da nossa responsabilidade. E este é inalienável. Este ano, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído à União Europeia. Qualquer "Nobel" vale o que qualquer pessoa lhe queira atribuir, é contingente como todas as coisas do mundo.Mas, em tempo de crise, este gesto dá que pensar: afinal, o que se destaca e premeia é a realização de alianças e instituições supranacionais que conduziram a Europa das guerras a décadas de paz; mas é também uma chamada de atenção para um projecto que, parecendo emperrado, terá de encontrar inspiração e caminhos para o futuro. Quando, sem grande surpresa, recebi a notícia de já se discutiria quem, de entre Barroso, Van Rompuy e Schultz, deveria ir a Oslo receber o prémio, encantou-me a sugestão da Comissária Cacilia Malmstrom: "Porque não enviar 27 crianças?" E ocorreu-me uma ideia de Jean- Louis Bourlanges que já aqui citei: "Não foi a Europa que fez a paz, mas a paz que fez a Europa". Na verdade, na sua memória histórica que lhe mostrou o quanto violou o princípio da paz, todavia bem presente na inspiração cristã das suas raizes espirituais, encontrou a Europa a razão da paz que a uniu. Mas é hoje necessário compreender como a paz só se mantem pela justiça e pela solidariedade. Na verdade, a frase de Bourlanges não se refere à paz no sentido inspirador com que dela aqui falamos, mas quer, sim, dizer que a CEE percursora da União só foi possível graças à pax americana, garantida pelo plano Marshall e pela protecção defensiva que os EUA asseguraram. Pessoalmente, penso que essa  "entrega" da defesa europeia explica, em grande parte, quer a incapacidade de se constituir uma intervenção europeia independente e comum em palcos internacionais como os Balcãs ou a Líbia, quer o acento posto, pelos Estados Membros, na preferência por acções em que cada um considerava prosseguir objectivos de interesse ou prestígio nacional. Hoje, já não temos Plano Marshall e temos o euro. A continuidade da construção europeia, de modo a assegurar a harmonia interna e a sua irradiação, portadora de valores de justiça, esperança e paz, num mundo global, só será possível se os nossos povos e os nossos políticos tomarem consciência firme da riqueza espiritual da Europa, onde mergulham as nossas raizes comuns e ganham sentido propósitos de entreajuda e solidariedade social. É certamente necessário pôr cobro ao facilitismo de um despesismo imprudente ou irresponsável, seja dos indivíduos ou dos Estados. E aqui será indispensável corrigir os comportamentos e propostas, sobretudo os relativos a símbolos de riqueza ou de poder (v.g. a frota automóvel da classe política) e ao gosto do luxo e do supérfluo, que os noticiários e a publicidade todos os dias nos apresentam. Só porque o exemplo também manda nas mentalidades. Como é necessário que os Estados hoje menos afectados pela crise compreendam que esta, agravando-se, começa a bater-lhes à porta. E que não é com ressentimentos históricos (de que a Alemanha, p.ex., foi vítima entre as duas grandes guerras do sec.XX) que se cria o clima propício à correcção de erros e à procura de um futuro melhor. Finalmente,teremos de tratar a res publica com sentido no bem comum,e jamais no modo doentio da prossecução de interesses particulaes, classistas, sectoriais ou partidários, nem com o desejo de protagonismo que torna a acção dos nossos políticos num lamentável exercício de "marketing" político. Antes, e mais do que económica e financeira, a nossa crise é de cultura ética.
   
Camilo Martins de Oliveira

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