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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Eu, Cáriton de Afrodísias, secretário do retórico Atenágoras, proponho-me narrar um caso de amor que se passou em Siracusa.

 

 

O romance surge tardiamente na literatura grega, num mapa delimitado pelas conquistas de Alexandre e num seio cultural da ampla tradição literária do Próximo Oriente helenizado. Ele ocupa o último lugar na sucessão histórica dos géneros literários na Grécia, se recordarmos o épico, a lírica, o drama, o relato histórico e filosófico, para os que o entenderam como género, e introduziu a narração na primeira pessoa, não desvinculando autor de narrador, criando uma espécie de impersonalidade descritiva.

 

Inicialmente um desinteresse por uma literatura destinada às camadas populares e a sua influência no campo sentimental, ditou-lhe suspeitas de pouca respeitabilidade.

Contudo, nas grandes cidades os homens habituaram-se a viver com gente de outras culturas, e sentiam-se inseguros face a um mundo que se lhes apresentava muito complexo e os tornava individualistas. Assim, o romance também surge a responder a exigências de um público variado, e detinha a finalidade de distrair e emocionar, permitindo à prosa arrogar-se caminhos de modernidade e liberdade face à tradição.

 

Muitos autores foram os que, ao longo dos séculos, assentaram modelo vindo dos romances gregos, recorde-se de Shakespeare a Racine e não se descurando a influência na própria literatura portuguesa.

 

Quéreas e Calírroe de Cáriton, constitui o mais antigo dos romances conservados e por essa razão tido como o primeiro exemplar romanesco da literatura ocidental.

A datação da obra de Cáriton é hoje aceite como tratando-se de um texto do século I d.C. correspondendo a um período chamado de «renascimento grego».

Seguir-se-lhe-ão outros expoentes como As Efesíacas de Xenofonte de Éfeso.

 

De notar que convencionalmente o romance vai centrar-se nas aventuras de um par, dominado pelo amor, atormentado por ameaças de uma viagem, cujo regresso levaria ao reencontro com a felicidade sustida numa resistente fidelidade mútua. A este caso de amor Cáriton atribui, como protagonista, Calírroe a quem Quéreas se dirige dizendo:

 

Esta carta vai banhada de lágrimas e de beijos. Sou Quéreas, o teu Quéreas, aquele que tu, ainda menina, viste no templo de Afrodite e por quem perdeste o sono.

 

A Sorte ditava os desfechos das súplicas e inquiria os destinos das verdades e as condições para ser herói ou heroína. O saber dos instruídos conhecia o quanto o Amor era adepto da mudança, razão pela qual os poetas e os escultores lhe atribuíram o arco e o fogo, armas leves e que não se afeiçoam ao estar paradas.

 

A beleza deveria ser causa de conflitos e paixões em mundos distantes e ardentes. As circunstâncias históricas, o poder e as tensões determinavam reinados e guerras e archeiros de proveniência mobilizadora das façanhas do amante e herói.

E depois tudo eram medos e tudo era a viagem que levava Calírroe até à Síria, mas quando chegou ao rio Eufrates, ponto de partida para o império persa, a saudade, impôs-lhe o grito:

 

«Maldito destino que voltas toda a tua animosidade contra uma só mulher! Levam-me, a mim que sou das ilhas (…) e até do teu túmulo, Quéreas, me arrancam (…) eu que receio voltar a impressionar alguém com a minha beleza».

 

E afinal sempre o herói liquida os concorrentes ao seu amor e à falsidade da sua morte e enfim o caminho de Afrodite antecede o anonimato, que é apanágio dos venturosos, ou não afirmasse sentenciosamente o povo «os felizes não têm história».

Redigiu-se pois o decreto da paz e da cidadania orgulhosamente partilhada. As gentes  reconhecem talentos e atribuem terras de cultivo aos generosos. E resta só uma prece: que nunca mais se separe Quéreas de Calírroe.

 

Devo dizer que acredito na Cultura Clássica e no futuro dos estudos Clássicos em Portugal, e o ressurgir destes estudos terá de ser feito por nós, nas escolas, na rua, em casa, no convívio com os amigos e companheiros, e pelo que deles se relata se possa despir a roupagem mistificadora e assim se saiba situá-los no nosso tempo.

 

Só assim dos mundos distantes se faz o aqui e o agora.

 

 

 

 

Teresa Vieira