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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ILÍADA - ODISSEIA


E Janeiro é mês lunar se com ardor e coragem tudo for incerteza como no seguro monumento literário da língua grega.

 

A ILÍADA

 

A ODISSEIA

 

Um aedo era um artista que cantava epopeias acompanhado por um instrumento musical. O mais célebre dos aedos é Homero.

 

Tradicionalmente associado à poesia épica, como é o caso da Ilíada e da Odisseia, a Ilíada utiliza o hexâmetro dactílico que é um estruturado esquema rítmico. Bem mais tarde o poema foi então dividido em 24 cantos sendo esta divisão atribuída aos estudiosos de Alexandria.

 

O conhecimento prévio da mitologia grega acerca da guerra de Tróia é relevante para a compreensão da obra, pois que a história da guerra de Tróia não é contada na íntegra.

 

A Ilíada ocupa-se da grande ira de Aquiles, o maior guerreiro e o mais belo dos heróis reunidos contra Tróia. Era também Aquiles o herói do luto já que os seus homens traziam luto ao inimigo. Vulnerável numa parte do corpo, seu calcanhar, Aquiles e Agamémnon, que era o comandante dos exércitos gregos em Tróia, enfrentam-se.

 

Agamémnon, distinto herói grego tinha tomado e feito sua Briseis, uma bela escrava, espólio de guerra, cujo verdadeiro nome era Hipodâmia. Foi Briseis sequestrada durante a Guerra de Tróia por Aquiles, depois deste ter morto seus três irmãos e seu marido, o rei Mines.

 

Aquiles, por vingança largou a batalha e quase custou a guerra aos gregos!

 

A Ilíada é considerada como a fundadora da literatura ocidental. Chamo também a influência homérica à obra Os Lusíadas de Camões.

 

Clamo as tramas narrativas, surpreendentemente modernas: a superação dos perigos em desespero, e quantas vezes caídos nas ameaças amplas da luta pela sobrevivência.

 

Enfim, assim pudesse eu contar com o amparo de um Oráculo e crer que as suas artes divinatórias fossem a resposta da divindade, por mim consultada, e me exprimisse os desígnios de uma iniciação:

 

o lugar-hora, o lugar-hora te peço,  quando Janeiro é mês lunar de uma esperança que por um aedo se fizesse Odisseia de uma Asia Menor que residiria em qualquer local humano.

 

E já passaram dez anos após o fim da guerra de Tróia, e encontra-se a acção repartida em três tempos principais no vasto colo da Odisseia. Penélope e Telémaco. A presunção da morte de Ulisses e a necessidade da sua viúva, Penélope e de seu filho Telémaco, no lidar com os insolentes pretendentes que se dispunham aos pés de Penélope. Tudo era enfim rescaldo e guerra.

 

E a tudo o aedo Demodocos dá voz, dá canto. E a Odisseia, na essência, deriva da Ilíada ou de lá retira a sua própria verdade. E o canto é profundíssimo em ambas e inspirado pelo sentido da humanidade, pela delicadíssima harmonia e beleza de vida perene.

 

A palavra odisseia passou a referir qualquer viagem longa, especialmente se apresentar características épicas, mas nunca fábulas, já que estas são incapazes de responsabilidades.

 

Também a morte de duas gerações de homens pois que nenhum sobrevive à jornada incrustada naquele presente, conduz à intervenção da deusa Atena que, pessoalmente convence os lados das inacabáveis guerras a abandonar a vingança. Ao que tinham chegado…e porquê?

 

Depois já ninguém aspira a mais do que a voltar para casa. Todos sentem no périplo essa imperiosa necessidade. A ânsia de paz era tal, que ela mesma romperia todos os obstáculos deste mundo, e assim, em paz, se conclui a Odisseia enlaçada para sempre à Ética.

 

E no fim chegou uma juventude que rebrilharia de alegria a todos. A juventude de uma vida tranquila.

 

A ideia de que a grandeza do amor se pode medir pela grandeza dos obstáculos vencidos.

 

Enfim, os homens tornaram a casa com os ventos num saco, com a pátria à vista, o lar pelos olhos molhados.

 

E não é obrigação do mito responder, mas atrevo-me à responsabilidade, pois que nunca os náufragos foram tão acarinhados

 

Boas Vindas ! Boas Vindas !, direi

 

E Janeiro é mês lunar se com ardor e coragem tudo for incerteza como no seguro monumento literário da língua grega.

 

 

Teresa Vieira

 

 

  • Maria Helena Rocha Pereira é expoente na investigação nas áreas da cultura clássica greco-latina
  • "E com o meu nome vos digo que um dia, quando assentar a poeira e não restar memória dos 'light tops' editoriais de 2003, se saberá que o grande livro escrito em língua portuguesa, neste ano da Graça de Deus, foi A Odisseia, traduzida por Frederico Lourenço, quando Palas Atena nele insuflou grande força poética.'' João Bénard da Costa, Público

LONDON LETTERS

William Pitt the Younger, 1759-1806

 

A extraordinária decisão do rei a todos causa séria consternação. Como se não bastassem os efeitos da guerra da independência nas colónias norte-americanas, a galopante dívida nacional a esmagar a economia ou ainda os ecos do terror jacobino vindos da França revolucionária, eis que George III entrega a gestão do reino aos cuidados de um inexperiente colegial saído de Cambridge University. Le meilleur des mondes, sans doute! William Pitt the Younger conta 24 anos quando é nomeado First Lord of the Treasury e Chancellor of the Exchequer, tornando-se o mais jovem Premier de sempre e um dos que mais tempo permanece no No. 10 Downing Street. – Well, the younger brother the better gentleman. O segundo filho do Earl of Chatham entra na House of Commons em January 23, 1781. Tem então 21 anos de idade, representa Appleby e afirma-se um “independent Whig.” Este é o político que dominará Whitehall durante as duas décadas seguintes, num período crucial da história europeia, até ao passamento em 1806, também 23 January, com 46 anos, as finanças pessoais a roçar a falência e à frente do seu segundo governo. O país entroniza-o como um dos santos de Westminster.

 

 

 

Os contemporâneos conhecem-no como o “boy-prime minister” da série Blackadder, na qual Mr Simon Osborne protagoniza um rapazola chamado ao exercício do poder "right in the middle of exams." Ora, se para uns Pitt é uma espécie de James Dean na sociedade hanoveriana e para outros nada diverso de uma criatura de George III e das políticas palacianas, evidente é a longevidade acompanhar a precocidade no caso deste Great Pragmatist. Acontece até que The Younger concerta as finanças públicas enquanto capitaneia os exércitos contra a revolução a cavalo de Napoléon Bonaparte, se bem que à custa do pesado “new graduate income tax” e por via de dilatada redefinição da “law of treason.” Já líderes como Mr Benjamin Disraeli ou Sir Winston S Churchill o veneram como um dos pais fundadores do New Tory-ism e maestro da mutação do ancient régime sem convulsões sociais, justamente quando as fábricas de Manchester recebem os teares mecânicos que impulsionam a First Industrial Revolution.

 

 

William Pitt The Younger serve duas vezes como British Premier: de 1783 a 1801 e de 1804 a 1806. Os public affairs são o negócio da família: quer o pai, William Pitt The Elder, como o tio materno, George Grenville e Earl of Temple, foram PMs. Com tal pedigree e exclusiva dedicação ao país, nunca se casando sequer e empobrecendo em funções, entende a política como “a problem-solving matter” e não um teatro de variedades cortesãs. A atitude austera e a cuidada retórica sensibilizam os pares, mas mesmo os amigos lhe censuram a frieza. Determinação é traço amiúde patenteado, não hesitando em expulsar L'ambassadeur français aquando da decapitação de Louis XVI (que conhecera em Paris, com Marie-Antoinette) ou em afrontar o King George em áreas sensíveis como a emancipação do voto católico, a abolição da escravatura ou a reforma parlamentar.

 

A preservação da liberdade é o princípio político sempre afirmado pelo “House of Commons man.” Em 1805, brindado como “the Saviour of Europe” pelo Lord Mayor de London, Pitt sintetiza lendária visão: “Europe was not to be saved by any one man, and (…) England has saved herself by her exertions; and will, as I trust, save Europe by her example.” Mas este seria tema para outra carta sobre o autor do 1801 Act of Union, que unifica a Great Britain (England, Scotland e Wales) com Ireland como United Kingdom. – Yeah. After all Jack wold be a gentilman if he coude speke frenssh.

 

St James, 22nd January,

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2013


Em 1938, Pedro Calmon (1902-1985) publicou o livro «O Rei Filósofo – Vida de D. Pedro II» (Companhia Editora Nacional), onde podemos encontrar o percurso humano, político e cultural de uma das figuras mais enigmáticas e apaixonantes da história do Brasil. O historiador brasileiro viria a publicar mais tarde (José Olympio, 1975) uma obra monumental, em cinco volumes, «História de D. Pedro II», onde a vida do Imperador é escrutinada em pormenor, no contexto do seu tempo. No entanto, o livro de 1938 é ainda hoje o que melhor permite um conhecimento impressivo e humano da personalidade de D. Pedro II e das suas qualidades intelectuais e cívicas.

 

 

DE TIRADENTES A PETRÓPOLIS
(Notas de viagem) O longo caminho que nos trouxe de Tiradentes para Petrópolis fez-nos perceber a transição do cerrado para a mata atlântica, em descida vertiginosa da montanha para os vales dos rios, num dia fantástico de sol e calor. É o caminho novo da Estrada Real: Barbacena, Santos Dumont, Juiz de Fora, Matias Barbosa… Ao passarmos próximo de Juiz da Fora, lembramos Murilo Mendes, o grande poeta, marido de Saudade Cortesão, português de coração, a recordar o Aleijadinho: «Pálida lua sob o pálio avança / das estrelas de uma perdida infância. / Fatigados caminhos refazemos / Da outrora máquina da mineração»… Vamo-nos despedindo de Minas Gerais, com o nítido sentimento de que é uma terra familiar e de que fomos recebidos com uma invulgar e rara hospitalidade. E chegamos a Petrópolis, por onde os indígenas passavam, para vencer a chamada serra do Mar, no fundo da Baía da Guanabara. D. Pedro I aqui comprou a fazenda do Córrego Seco e seu filho assentaria arraiais, mais tarde, pedindo ao engenheiro Koeler que fizesse uma pequena cidade para acolher a família imperial. Aqui, depara-se-nos a catedral neogótica de S. Pedro de Alcântara (1884) com a sua torre imponente e uma sinfonia de vitrais. Neste lugar estão os restos mortais de D. Pedro II e de D. Teresa Cristina, bem como da Princesa Isabel e do Conde d’Eu. Almoçamos numa das acolhedoras residências da cidade imperial, com os cómodos de outrora e a qualidade gastronómica de hoje… Sentimos a presença forte de uma personalidade atraente como a do Imperador D. Pedro II (1825-1891), cientista e homem de cultura e arte desterrado na política, como ele próprio fez questão de repetir em várias circunstâncias. O Palácio, hoje Museu, construído no estilo neoclássico foi pago com recursos do próprio Imperador. A execução ocorreu entre 1845 e 1862, sob a direção de Julius Koeler, com alterações de Cristóforo Bonini. Mármores negros belgas e de Carrara, soalhos das melhores madeiras do Brasil, decorações nos tetos de grande requinte, eis o que encontramos. Em volta, há um jardim frondoso em que a arte de Jean-Baptiste Binot se juntou à sensibilidade científica do experimentado botânico que era o próprio D. Pedro de Alcântara. Proclamada a República, o palácio foi ocupado sucessivamente por duas escolas, até que, por iniciativa do Presidente Getúlio Vargas, foi criado o Museu Imperial em 1943.

 

A MEMÓRIA DE D. PEDRO II
A visita ao Palácio, com a generosa companhia do seu diretor, Maurício Ferreira, foi fascinante pela descoberta da convergência entre o drama pessoal do imperador e a capacidade que desenvolveu, com abertura e inteligência, para se tornar um fator fundamental na unidade brasileira e no prestígio internacional do país. O caso de D. Pedro II é, aliás, singularíssimo. O seu prestígio ainda hoje é recordado e ninguém esquece que no momento em que foi deposto, a 15 de novembro de 1889, muito poucos queriam que fosse afastado. Ninguém falava em proclamar a República, tratava-se apenas depor o governo, e o Marechal Deodoro da Fonseca, cabeça do movimento, ainda gritou para as tropas formadas em frente do Quartel-General: «Viva Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II». O certo é que D. Pedro era, fundamentalmente, um homem do espírito, amigo de Wagner e de Pasteur, de Herculano e Camilo Castelo Branco, admirado por Nietzsche, Vítor Hugo e Darwin. Em respeito por isso, impediu os seus apoiantes de usarem de violência para recuperar o poder, tornando-se no exílio, paradoxalmente, um símbolo invocado por realistas e republicanos. Apesar de uma aura de prestígio intelectual e cívico, D. Pedro teve uma infância triste e difícil. Órfão de mãe, a imperatriz Maria Leopoldina, arquiduquesa de Áustria, com um ano, e sem o seu pai, que partiu para a Europa, tendo ele apenas cinco anos de idade, ficou com o duro encargo de assumir a coroa imperial. A sua educação foi entregue então ao célebre José Bonifácio de Andrada e Silva, a D. Mariana Verna, futura Condessa de Belmonte, e a um criado do Paço, velho herói negro da Guerra Cisplatina, de nome Rafael. Dedicado ao estudo e à leitura, viveu a sua infância e juventude só e ensimesmado, praticamente sem amigos. Mesmo assim, tornar-se-ia o «símbolo vivo da união da pátria». Aos 14 anos, foi declarado maior de idade e coroado imperador em 1841. Casado com D. Teresa Cristina das Duas Sicílias, teve a inteligência e a argúcia para conquistar prestígio, recebendo manifestações de popularidade e apreço, designadamente nas visitas que fez aos Estados do sul, tendo sido ainda obrigado a gerir, o que fez com prudência, três difíceis crises entre 1848 e 1852 (o conflito sobre a escravatura com a Inglaterra, a chamada revolta Praieira e o conflito com a Argentina). Nos anos sessenta, teve de lidar com o fugaz conflito com o Uruguai e com a sangrenta guerra do Paraguai, vencida pela tríplice aliança. Contudo, quando quiseram erigir-lhe uma estátua para o glorificar, preferiu usar esse dinheiro para apoiar as escolas… Patriota generoso, atraído pela literatura, pelas artes e pelas ciências, foi um viajante apaixonado. Muitos foram os episódios da vida de D. Pedro de Alcântara que lhe granjearam prestígio, mas foi a assinatura de duas leis antiesclavagistas – a do ventre livre (1871, estipulando que todas crianças nascidas de mulheres escravas após aquela data seriam consideradas livres) e a «lei áurea» (1888, assinada pela regente Princesa Isabel), ardorosamente defendidas pelo Imperador, apesar de muitas resistências do poder económico, que não só abriu horizontes no sentido da construção do Brasil como um país moderno e civilizado, como ainda criou condições para a proclamação da República.

 

A CIDADE MARAVILHOSA
A recordação dessa tarde passada em Petrópolis ficou bem marcada nas nossas memórias. E o regresso ao Rio de Janeiro, horas depois, foi um reencontro de amigos e de afetos. É sempre bom gozar de uma imersão total na cultura carioca, essa curiosa «casa dos brancos», usufruir o calçadão de Copacabana de Burle Marx e da engenharia portuguesa, com as sensuais curvas e as três cores, símbolos deste admirável povo plural, visitar a Candelária, ir à rua do Ouvidor (em honra de Francisco Berquô da Silva Pereira, ouvidor-mor da cidade), lembrar as raízes familiares de Bernardino Machado e a casa de Carmen Miranda, visitar o Centro Cultural do Banco do Brasil, passar pelo imponente Palácio dos Vice-Reis, inspirado na ala ocidental do velho Terreiro do Paço, almoçar no Clube Ginástico Português, visitar o Museu Nacional de Belas-Artes e recordar o pintor Pedro Américo. Mas é magnífico invocar as inesquecíveis visitas à Academia Brasileira de Letras, com a aristocrática receção de Marcos Vinícios Vilaça, e ao Gabinete Português de Leitura, graças à simpatia de António Gomes da Costa. E, no fim, no Mosteiro de S. Bento pudemos recolher-nos em silêncio perante uma das mais fulgurantes marcas da cultura luso-brasileira.

Guilherme d'Oliveira Martins

RECORDAÇÕES MUSICAIS E UMA PRINCESA…

 

Três edições discográficas recentes e um livro que recebi ainda com cheiro a tinta trazem-me à memória uma pessoa querida de mim, logo direi quem.  Os discos são recordações de géneros musicais (e não só) diferentes (graças a Deus!): um, que me chegou de Londres, dá pelo título de "18th-century Portuguese Love Songs"; o segundo reúne várias gravações de música do sec.XVI sob o tema do "Elogio da Loucura" de Erasmus van Rotterdam; o terceiro é uma interesante e sentida achega ao fado, não só enquanto expressão musical, mas como tradição de sensibilidades culturais e seu encontro. Também já veremos como. A pessoa recordada por mim foi  - e é-me  -  muito próxima: pelo seu nome (incompleto) de baptismo era meu homónimo: Camilo Maria, 15º marquês de Sarolea, nascido em 1900 e falecido em 1979. Confiou-me um perturbante espólio de cartas e apontamentos vários, alguns dos quais se referem às obras ou temas que acima invoquei.Os textos respectivos foram redigidos em várias línguas: francês, alemão, algum inglês, castelhano, italiano e português. Por vezes recheados de citações e trechos em latim e grego. Confesso que, muitas vezes, me inspirei neles para o que, ao sabor do gosto de dizer ou da necessidade íntima de fazê-lo, eu mesmo escrevi autenticamente meu. Hesitei em rever essa herança interior, por receio ao espelho. E mais ainda receei manifestá-lo, porque o pudor deverá ser discreto. Mas nem sempre resistimos à tentação de comunicar o que temos por indizível. Ao escrever estas linhas (quantas serão?), move-me um como reconhecimento da brevidade da vida, e o assentimento de que há um coração dos homens cuja idade não sabemos, talvez por ser na eternidade. Numa carta escrita a uma princesa que não ouso identificar, Camilo Maria cita estes versos de "modinhas" portuguesas de fins de setecentos ou princípio de oitocentos, as tais de que William Beckford dizia que "os que nunca as escutaram nunca conhecerão a música mais voluptuosa e feiticeira que existiu desde os Sibaritas. "Foi por mim, foi pela sorte /minha desgraça tecida/sou, ó céus, bem desgraçada / nem morro nem tenho vida!" Ou ainda: "Amor vem manso, mansinho, / no coração habitar. / E depois de estar de dentro, quer só ele as regras dar... / Ai amor, amor, amor / vocês zombam com amor / e não é para zombar..." Vêm as citações na sequência de uma referência circunstancial: "Achei-te triste e fechada esta manhã, eu que te estava (e estou!) tão grato por me teres visitado. Talvez depois da tua partida, pela tarde, o dia entristeceu e se fechou. Mas rezo e penso que as nuvens tão baixas nos trazem para perto o céu... e que esta chuva miudinha vai encharcando os campos de frutas e flores, de sombras futuras e benignas, e de cores, tantas cores, que ainda não vemos! Tudo afinal se cria no escuro silencioso do mistério, nesta promessa ininteligível do Deus que esperamos... É bom contemplar, neste despojamento húmido e incolor do inverno, o Ser que é e está além das aparências. Na saudade, que se exprime sempre em português, estás comigo, dou-te a mão e olho. E o que vejo é uma paisagem que se despe com um misterioso pudor, lento e manso, verde, amarelo, castanho, cinzento, melancólico e frio... tão cheio da graça que emprenha a terra e nos torna sublimes de esperança! Bem hajas!" Nenhuma correspondência entre Sarolea e a Princesa (de …)  é datada. Tampouco achei nela indicação de lugar ou destino. Mesmo a simples alusão a efemérides ou a tempos circunstanciais não me permitem datá-la ou localizá-la. Como se tudo se situasse fora do tempo e do espaço. Ou como se a actualidade de coisas passadas reclamasse a constância de algum modo de ser... Talvez o ser tenha, para além do ser-se, uma consistência própria. Uma densidade ignota, entre a gravidade e a graça, na alma de cada ser humano. Somos, como diz  Ortega y Gasset, que tanto gosto de citar, trânsfugas da natureza...Mas seremos também, acredito, trânsfugas de nós mesmos. Há um qualquer território da nossa alma, dessa parte de nós que inconscientemente, por vezes, definimos arriscando dizer "sou eu mas não sei explicar"... há, em cada um de nós, esse território ou terra de ninguém. Onde Jacob lutará com o anjo. Ou onde, talvez, infelizmente, já não haja luta alguma. A ideia da condição humana como batalha, o desgosto do mundo a par da insatisfação com o silêncio de Deus, tudo isto marca a pessoa e os escritos de Camilo Maria que tantas vezes usava uma tradução italiana dum seu apelido alemão, apresentando-se como Vecchio Borgo. Veremos, se for eu capaz de os traduzir, outros passos de textos em que ele quis dizer um percurso espiritual que, todavia, para quem o conheceu "em sociedade", era insuspeitado. Estava simplesmente no lado de lá,  no lado do silêncio. Transcrevo, de uma das cartas (de amor?) que sou tentado a revelar, este trecho: "Alheio, mudo, indiferente,/ nos leva o tempo o momento,/ o dia, a hora, a vida toda.../ na roda desse vento acordamos e sabemos/ a manhã que já foi ou já se irá embora!/ Peregrinos hoje e sempre.../ Em qualquer hora!

Camilo Martins de Oliveira

Ítalo Calvino:

 

creio ser fiel à « Multiplicity» (Multiplicidade), de resto, como já escrevi, sou infiel às estrelas fixas. Desconheço a que distância de horas ou anos me encontro de outros ou de outras realidades, contudo em Calvino, também lhe chamo nó, a ela à multiplicidade nele; e multiplicidade é também enciclopédia de conhecimento e rede entre factos, coisas e mundo.

 

A cada página que escrevo, a cada poema que acedo, existe um sistema múltiplo e complexo que me vai dizendo da presença da Multiplicidade que envolve as várias fases do perceber, do acontecer, do análogo, do calor e do ruído, enfim da rede que propaga a história geológica da destinação da literatura pelo amor que lhe tenho.

 

O conhecimento das coisas enquanto infinitas relações passadas e futuras, possíveis ou impossíveis, convergem para a realidade que, naquele momento, aguarda em mim o localizado semântico que diga à palavra o quanto conhecer é inserir uma realidade no real.

 

De novo com Ítalo Calvino chego à rede que liga todas as coisas como sendo o tema de Proust, afinal o tempo da multiplicidade da ideia da Recherche.

 

Uma ideia da Recherche que implica uma multiplicação infinita das dimensões do espaço e do tempo, como refere Calvino nesta quinta “Lição Americana”. E acrescenta:

 

«O mundo dilata-se até se tornar inapreensível, e para Proust o conhecimento passa através do sofrimento desta inapreensibilidade. Neste sentido o ciúme que o narrador sente por Albertine é uma típica experiência do conhecimento»

 

…Et je comprenais l’impossibilité où se heurte l’amour. (E eu compreendia a impossibilidade contra a qual se choca o amor.)

 

Nous perdons un temps précieux sur une piste absurde et nous passons sans le soupçonner à côté du vrai. ( Perdemos um tempo precioso numa pista absurda e passamos sem dar por nada ao lado da verdade.)

 

Este é um dos contentores da Multiplicidade que carece de um movimento a cada dia, de modo a variar sempre as combinações do seu código de acordo com a Leveza, a Rapidez, a Exactidão, a Visibilidade, e, não estando eu em condições de definir os acessos, todavia, da sua existência, não tenho dúvidas, nem da aproximação que a eles podemos fazer a cada dia.

 

Harvard também floresceu em vigor pois que Calvino lhe disse abertamente:

 

Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinação de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?(…)oxalá fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada de um eu individual, não só para entrar noutros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que poisa no beiral.

 

A sexta lição, «Consistency» esperava Calvino escrevê-la em Harvard. Referimo-nos até aqui às cinco conferências que Calvino levaria.

Segundo Esther Calvino o texto dactilografado das conferências encontrava-se na sua secretária, em perfeita ordem, cada conferência numa capa transparente, e o conjunto dentro de uma pasta rígida, pronto para ser metido na mala de viagem.

 


Teresa Vieira

LONDON LETTERS

The coronation of Elisabeth I, 1559

 

 

 


Elisabeth I seria hoje considerada quer um caso de sucesso político no conjunto internacional, quer um exemplo de popularidade junto do seu povo. O reinado corresponde a uma golden age, dura 44 longos anos e afirma estas ilhas como um próspero e sólido poder global. – Ah! La belle reine célibataire! Mas a fundamental razão da boa memória desta queenship resulta do facto de a monarca governar em maquiavélica renascença para e não contra os seus, doando coesão estratégica aos estamentos até finalmente legar massa crítica ao estado e paz religiosa ao país ao entregar a coroa a James VI de Scotland/James I de England. Assim, com a história consagrando-a como “The Great Queen,” já os contemporâneos a tratam como “The good Queen Bess.” – Ours dear Lady Lisbeth. O mito elisabethano nos public affairs começa a 15 January 1559, com a coroação da filha de Henry VIII e Anne Boleyn em Westminster Abbey. A rainha improvável saíra da prisão para o trono.

 

A história de Elisabeth Tudor tem desde o início o seu quê de épico, mesmo sob os parâmetros da abrasiva House of Tudor. Mais, quando revisitada neste tempo em que a discriminação contra as mulheres conhece arrepiantes extremos de violência à volta do mundo. Também o argumento de a female monarch à época não era causa com muitos adeptos. Se a filha de Henry I outrora reivindicara a English crown e Matilda logra reconhecimento do legítimo direito apenas após 18 anos de guerra civil, no Treaty of Winchester (1153) e na pessoa do filho Henry II, já a busca de herdeiro macho conduz Henry VIII a temível série de casórios e divórcios de amplas consequências. Do perigo de vida que aqui correm as senhoras, lembra o destino da mãe: Anne Boleyn é presa antes que Bess complete três anos de idade e decapitada em 1536 May 19 na Tower Green, dizendo ainda muito dos fundamentalismos em política.

 

 

 

Em 1559, alheia a eventual saída por Traitor’s Gate, de reclusa na Tower of London a rainha aclamada pelas ruas de London basta magnificente procissão para sagrar o início da lenda. E os ingredientes somam. Elisabeth I recebe o cetro da irmã com relevante designação de cocktail, Bloody Mary. Sobrevive a conspirações várias e até a invasões externas, como a Spanish Armada enviada pelo cunhado Felipe em 1588. Entende o poder como absoluto direito divino, mas cuida de térrea assessoria por dois hábeis chanceleres: William Cecil e Francis Walsingham, por dever atentos à querela religiosa com os papistas e ao conflito entre Yorkists e Lancastrians.

 

O facto mais glosado da vida da Gloriana é nunca casar, e de todo não por falta de pretendentes. Enquanto a corte se entretém com a friendly connection com Lord Robert Dudley, este ato eminentemente político é uma decisão pessoal de alto risco. A atitude tanto contraria o expetável para assegurar a sucessão ao trono de Westminster, como insistentemente é mantida contra a opinião do Council e do Parliament. Como o consegue, aliás, é algo mais que interessante.

 

Quando interpelada pela House of Commons sobre o enlace, The Queen dá memorável resposta: “I am already bound unto a husband, which is the kingdom of England, and that may suffice you.” A mão política ganhara mestria distinta dos usos continentais. E Elisabeth I ancora o poder em elementar base à sobrevivência ou morte de qualquer regime político. – Yes, a loving people.

 

St James, 15th January,

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 21 a 27 de janeiro de 2013


O último número da revista «Didaskalia» da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, dirigida pelo Padre José Tolentino Mendonça (2012, vol. XLII, fascículo II) assinala os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II. Há um conjunto muito relevante de textos, permitindo-me destacar de Geraldo de Mori «O aggiornamento como categoria teológica», «Uma hermenêutica criativa ao serviço da renovação pastoral», de José Eduardo Borges de Pinho, a invocação de Michel de Certeau por Stella Morra, e os ensaios de José Manuel Pereira de Almeida sobre «Percursos da Teologia Moral» e de João Manuel Duque sobre «A condição do crente perante os desafios do futuro».

 

 

O «AGGIORNAMENTO» COMO TEMA
Vale a pena ler com atenção os textos publicados. Comecemos por falar de «O aggiornamento como categoria teológica», de Geraldo de Mori, professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte. Aí se dá nota do impulso fundamental animado por João XXIII e que explica o papel desempenhado pelo Papa nesse momento crucial da convocatória do Concílio. Para usar as palavras do Sumo Pontífice, tratou-se de abrir de par em par as janelas da Igreja para que o ar puro pudesse circular, sem medo de correntes de ar. O termo «aggiornamento» significou a rejeição do divórcio entre fé cristã e cultura ocidental, intensificado na era moderna, abrindo a Igreja para o diálogo universal com o novo, neste momento da história. No entanto, esse esforço de «pôr em dia» não teria sido possível sem as escolas teológicas do século XX, marcadas pela descoberta das fontes da vida cristã e da teologia e por uma nova atitude diante do presente e do futuro. Os principais autores dessas escolas foram responsáveis pela antecipação dos caminhos que o Concílio trilhou. Lembremo-nos da escola dominicana Le Saulchoir (Chenu, Congar e Schillebeeckx) ou das escolas jesuítas de Lyon-Fourvière (Lubac, Teilhard) e de Innsbruck (Rahner). Apesar de muitas incompreensões, o certo é que uma sólida fundamentação teológica de grandes pensadores levou a que o Concílio correspondesse a uma conjuntura excecionalmente positiva para abrir caminhos novos, no sentido do que, com muita felicidade, João XXIII designou como um novo Pentecostes, «um movimento evangélico dinâmico e uma conversa aberta entre os bispos de todo o mundo sobre como renovar o catolicismo como estilo de vida inevitável e vital». E recordamo-nos da intervenção aberta e modernizadora de bispos portugueses como D. António Ferreira Gomes e D. Sebastião Soares de Resende. Temas cruciais foram: a volta às fontes, os sinais dos tempos e o desenvolvimento. Para o Padre Chenu: «retornar a S. Tomás significava reencontrar o estado de invenção com que o espírito volta, justamente como à fonte sempre fecunda, a pôr os problemas para além das conclusões adquiridas uma vez por todas». E assim «voltar às fontes» corresponderia ao «desejo de redescoberta de elementos ignorados ou pouco explorados das fontes da fé e da tradição que pudessem iluminar o presente». Por outro lado, os «sinais dos tempos» fariam com que a teologia se aproximasse das «mediações a partir das quais (se poderia) pensar a própria fé e sua compreensão nos diferentes contextos». A volta às fontes daria, assim, maior consciência das mudanças ocorridas ao longo da história do cristianismo. A tradição seria mais ampla e maleável do que a lógica retrospetiva. E a atenção aos sinais dos tempos abriria «os teólogos e a Igreja a uma maior solidariedade com o presente dando-lhes igualmente instrumentos que os capacitassem a melhor compreender os diferentes contextos nos quais a fé cristã era anunciada e crida, adquirido assim maior sentido existencial e maior relevância social».

 

COM OS OLHOS POSTOS NO FUTURO
Longe de um retorno ao passado, a «volta às fontes» seria uma busca de Verdade, enquanto os «sinais dos tempos» não seriam apenas atenção ao presente e ao novo, mas adaptação às necessidades humanas de cada época. No dizer de O’Malley, o longo século XIX chegava ao fim, o que obrigava a encarar frontalmente o tema do desenvolvimento, que implicaria uma ideia de progresso não cumulativo e uma rotura, como aconteceu com a «Declaração sobre a Liberdade Religiosa». Como disse o Papa na abertura do Concílio: «é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo». E assim a tradição torna-se um interlocutor aberto, com que dialogamos para dar «as razões da esperança cristã em seus distintos contextos» sociais e históricos. E a fé afirma-se como «um apelo ao seguimento de Cristo e isso repercute na vida dos cristãos, chamados a um testemunho que se traduz em caridade ativa e inventiva». E, deste modo, o «aggiornamento» torna-se categoria teológica, agindo sobre a leitura da Palavra, da Experiência e da Prática – como regra de amor e de compreensão do «Outro por excelência, que se oferece como dádiva de esperança e de graça».

 

RIQUEZA OFERECIDA, POR RECEBER.
Neste sentido José Eduardo Borges de Pinho fala-nos de uma «hermenêutica criativa como desafio a uma profunda renovação pastoral», a partir do Concílio. A questão fundamental é de saber como faremos hoje um «autêntico e frutuoso acolhimento» desse acontecimento, que se mantém jovem apesar dos cinquenta anos de celebração. Impõe-se uma «tomada de consciência da amplitude e profundidade de alguns desafios que se apresentam e da urgência em definir prioridades na busca de caminhos que interpelem a consciência dos crentes e ajudem a configurar de forma renovada a vida das comunidades cristãs». E o certo é que à «riqueza oferecida» ainda corresponde algo de não devidamente recebido. Impõe-se, assim, dar resposta à consciência cultural dos nossos contemporâneos. Por exemplo, a realidade familiar hoje alterou-se significativamente, mesmo para os cristãos, o que obriga a encontrar novas respostas de acolhimento e de comunhão. É indispensável procurar uma nova disponibilidade para «processos de aprendizagem, de criatividade e de reforma». Há medos que paralisam e inércias que desmoralizam, que devem ser considerados, de modo a abrir caminhos à «ação do Espírito» e aos sinais de Deus. A «pastoralidade» do Concílio não se confunde com relativização doutrinal, antes obriga à consideração do essencial da fé. «Isto exige dar prioridade absoluta e optar com todas as consequências por caminhos que conduzam a um laicado adulto, assente numa atitude crente pessoalmente assumida, disponível para e capaz de novas configurações da existência crente em termos de consciência pessoal, de liberdade responsável, de compromisso (individualmente assumido, mas comunitariamente suportado) ao serviço do mundo». E o certo é que o laicado adulto aponta para uma «colegialidade efetiva» e para a partilha de responsabilidades – dando consequência a uma renovação interior e a uma existência cristã coerente. Neste sentido, Michel de Creteau, não se tendo pronunciado profusamente sobre o Concílio prefere pensar o acontecimento não como tal, mas a partir dele, como revolução do credível que o Concílio reconhece, interpreta e inaugura – procurando «encontrar Deus em todas as coisas». Daí José Manuel Pereira de Almeida fazer uma pergunta que é um autêntico desafio: será a Igreja hoje ainda «eticamente habitável»? A resposta tem muito que se lhe diga, porque depende de nós mesmos. Afinal, ética provém de dois étimos gregos êthos e éthos, que significam, respetivamente, lugar seguro e interioridade, de um lado, e hábito ou forma de agir, de outro. Estamos, assim, a falar de habitabilidade e de hospitalidade. E temos de lembrar que o Concílio provocou uma alteração de paradigma na teologia moral: apresentando a consciência como «instância última da responsabilidade moral da pessoa» (como salienta Vítor Coutinho). E deste modo a liberdade responsável torna-se crucial, como recusa da indiferença e da mera relatividade. No fundo, ser crente cristão é «compreender a existência como ser a partir do outro e ser para o outro» (na expressão de João Manuel Duque), o que faz toda a diferença e apela ao respeito, à dignidade e à difícil diferença.


Guilherme d'Oliveira Martins

RECORDANDO MOZART

 

 

A Maçonaria, como muitas outras instituições, também tem os seus mitos fundadores: neste caso, teria sido fundada por Hiram, o arquiteto do templo de Salomão, em Jerusalém. Ou, ainda, ascende à criação do mundo pelo próprio Grande Arquiteto, momento fixado, num calendário maçónico, em 4 mil anos antes de Cristo... Mais prosaicamente, as ordens que hoje incluímos na designação genérica de Maçonaria, resultam da transformação, na Inglaterra do princípio do século XVIII, de corporações de pedreiros, que até aí existiam para defesa de um ofício e da classe que o exercia, em centros de reflexão filosófica orientada pela procura do aperfeiçoamento dos indivíduos e das sociedades, em conformidade com valores próprios do Iluminismo: autonomia das pessoas e do pensamento, racionalismo, solidariedade e universalismo. A iniciação na nova ordem não obrigava à renúncia da fé religiosa de cada um, nem à contestação da tradição eclesial ou da legitimidade do poder político, desde que fosse aceite o preceito de que aqueles não eram nem podiam ser isentos de crítica racional... A esse sentido junta-se uma oportunidade de promoção social que  - num ambiente político e convencional diferente, em que as próprias instituições eclesiásticas se deviam sujeitar ao poder do príncipe "iluminado"  -  servia também as ambições dos músicos (Haydn e Mozart, p. exemplo), por vezes cansados do tratamento que lhes impunham os seus senhores temporais, fossem estes príncipes da Igreja (como Colloredo) ou seculares (como os Esterhazy). A adesão à Maçonaria, tal como a submissão ao novo poder imperial, traduzem sobretudo o desejo, e a cautela, de se manterem na crista da onda, mais livres como homens e como artistas, e poderem privar com uma elite de patrocinadores que já não corresponde ao padrão do senhor feudal que os tratava como lacaios... Mas não duvidemos da sinceridade e do entusiasmo de Mozart quanto aos ideais de racionalidade, liberdade e fraternidade com que a Maçonaria lhe acena: testemunham-no vários passos da sua correspondência familiar. E, ainda, os hinos ou cânticos escritos para várias solenidades ou efemérides maçónicas. Há um sentimento de emancipação que se contrapõe ao "jugo" do arcebispo Colloredo de Salzburg e à lembrança das vezes em que este terá humilhado e magoado o genial compositor que tinha ao seu serviço. É evidente que o reconhecimento da primazia da razão implica o da liberdade da consciência e, colateralmente, o da igualdade entre os homens e a afirmação da fraternidade como valor universal. Num tempo em que o absolutismo monárquico se afirmava e as igrejas cristãs, na esteira das lutas da Reforma e Contra-Reforma eram ferozmente apologéticas e afirmavam a sua autoridade sobre as consciências, tal reclamação da autonomia intrínseca aos seres racionais era, para muitos, fascinante. Aliás, já a própria evolução das corporações "operárias" para círculos mais especulativos contou com a presença influente de membros do clero,da nobreza e da alta burguesia que se pretendiam ou desejavam "esclarecidos". As designações das lojas maçónicas, como veremos acompanhando Mozart, são proclamações dos ideais acima apontados. Mozart, como Haydn e Leopoldo Mozart, iniciam-se na Maçonaria da Viena do imperador José II, quando esses ideais se manifestam com mais força na capital do império austríaco, em ascensão e expansão rápidas, mas finalmente breve. Se aquando da iniciação destes músicos praticamente no último dos 5 anos do apogeu das lojas vienenses, estas eram oito, em breve não seriam mais de duas,na sequência da determinação "Freimaurerpatent" de José II,com data de 11 de Dezembro de 1785. O "despotismo iluminado", pressentindo a crise de que a Revolução Francesa seria a referência máxima, impunha a sua ordem. Com o encerramento de lojas como sua causa e efeito, as deserções aumentam: o próprio Ignaz von Born, Grão-Mestre da loja "Zur wahrer Eintracht" ( da verdadeira concórdia), em que Haydn fora iniciado a 11 de Fevereiro de 1785 (Mozart,nessa altura já com o grau de mestre na loja "Die Woltätigkeit"   -   o benfazer  -  assistiu à cerimónia) abandonará a ordem em 21 de Agosto de 1786. A sociedade dos livre-pensadores e bem-pensantes vienenses que,ao abrigo do suposto liberalismo secular e crítico do imperador,se reunia e reconhecia nas lojas maçónicas, resignou-se. Os éditos imperiais visavam as lojas "deístas", mais fiéis à tradição britânica "newtoniana", como a "Zur wahren Eintracht", que muitos suspeitavam, ou mesmo acusavam, de materialismo e ateísmo, pelo que os respetivos membros não seriam nem verdadeiros católicos nem austríacos de verdade… A loja de Mozart,"Zur Wohltätigkeit", apesar da desconfiança dos seus relativamente ao que consideravam a hegemonia e autoritarismo da Igreja Romana sobre o pensamento e as consciências, apoiou as reformas de José II, vincando bem a sua fidelidade aos princípios e valores de um catolicismo "iluminado". O próprio Mozart compôs, em Janeiro de 1786, dois hinos maçónicos ("Ihr unsre neue Leiter" e "Zerfliesset heut"), em celebração do encerramento da "Zur Wohltätigkeit" e da abertura da "Zur neugekrönte Hoffnung", resultante da fusão, conforme à determinação imperial, da loja em que fora iniciado com a "Zur gekrönte Hoffnung". A primeira é um apelo, no momento do encerramento, à colaboração de todos na continuidade da construção do edifício maçónico: "Vós que sois os nossos novos mestres/sede agradecidos também pela vossa fidelidade/guiai-nos constantemente pela senda da virtude/para que cada um se alegre com a cadeia/que o une a seres melhores/e lhe adoça o cálice da vida..." A segunda é claramente um aplauso às reformas josefinas: " Entregai-vos hoje,caros irmãos,/a arroubos de contentamento e cânticos de alegria/ porque a benevolência de José/ de novo nos coroou,a nós cujo peito/ arde de uma tripla chama,/ e coroou a nossa esperança..." Ambos estes cânticos foram escritos para solista (tenor),coro masculino e órgão, em jeito de cantata. Curiosamente,a música sacra composta por Mozart para celebrações litúrgicas católicas é bastante mais rica do que a maçónica: 19 missas (incluindo a de Requiem), vésperas,litanias ,motetes e outras peças,além de muitas sonatas de igreja para órgão. Também as suas cartas testemunham,em vários passos a sua fé religiosa e crença firme na imortalidade da alma: " Dizes que não devo esquecer-me de que tenho uma alma imortal  ---  escreve ele, em 1781,ao pai  ---  e eu,não só me lembro disso como nisso firmemente acredito. Se assim não fosse,que diferença haveria entre os homens e os animais?". Homem do seu tempo, Wolfgang Amadeus não só não deixou de interrogar a sua fé,como deixou que esta interrogasse o tempo e o modo do mundo em que viveu... E neste a Maçonaria inspirava-se também do que alguém apelidou de "religio duplex", encontrando-lhe a presumível fonte na coexistência, no antigo Egipto, de uma religião exotérica (para todos) e outra esotérica (só para alguns iniciados). "A Flauta Mágica", pelo seu enredo e desfecho, como pelo recurso à evocação de divindades egípcias, é disso exemplo. Mas confrontado com a "reforma" josefina  -  que visou coartar o secretismo e a influência conspiratória que vocacionam organizações de "iniciados"  -  Mozart não hesitou em apoiá-la, por inspiração da sua fé católica.

 

Camilo Martins de Oliveira

Ítalo Calvino:

 

hoje permanecemos na sensibilidade das «Norton Lectures», agora com «Exactitude» e «Visibility».

Para algumas antigas culturas, como a egípcia, a pluma servia de peso no prato da balança onde se pesavam as almas. Exactidão total!

Por Dante, um dia o seu poema disse: «Poi piovve dentro a l’alta fantasia» (Chove dentro da minha fantasia). Deus! quanta visibilidade lhe deste! Digo.

 

Para Calvino o conceito de exactidão na literatura implicava três realidades: um projecto de obra, a evocação de imagens nítidas e incisivas, e uma linguagem precisa no léxico capaz de traduzir as nuances, quer do pensamento quer da imaginação.

 

Munido desta exactidão que repudia que a linguagem se use excessivamente de maneira aproximativa, a literatura que respondesse mais a esta exigência, seria então a Terra Prometida em que a linguagem se tornaria no que realmente deveria ser.

 

Confesso que no geral, sinto profunda alergia à utilização da palavra nos dias de hoje. Chega-me o uso de uma palavra desprovida de veia cognitiva, de constante nivelamento por baixo do próprio genérico, ganhando deste modo ocupação de uma terra, na qual o crepitar das palavras com as circunstâncias a que se referem, deixou de ser centelha.

 

Residirá esta doença de quem utiliza a palavra na invasão da burocracia, na política, na similitude de uma cultura mediana? Não sei, ou não será essa a minha proposta de saída.

 

Chego-me a Ítalo, e também a mim o que me interessa, reside no descobrir das possibilidades de salvação. Sim, por aí tento quanto posso, que a literatura faça guerra à vulgar utilização da linguagem como cirrose, que se multiplica na comunicação instalada até nos mass-media.

A exactidão é o oposto da fantasmagoria.

 

A «Exactitude» é um dos nomes da batalha contra a inconsistência que está no mundo. As nações não podem estar confusas, e no entanto é numa forma de vida de cabeça para baixo que lhe impõem o estar inexactas e submissas. Como poderão, então, entender que o poeta do vago, só pode ser o poeta da precisão, como nos diz Calvino, já que só este poeta tem a capacidade de captar o subtil com olhos e mãos. Só ele tem a exactidão da necessidade de  libertar as nações.

 

A minha paixão pelo aprender da matemática, surgiu-me, quando um dia me espreitou um número primo, não pela equação de terceiro grau que lhe dava guarida, mas antes por um múltiplo dele próprio, pelo qual o olhava no rigor abstracto de uma ideia matemática.

 

Mais tarde no livro de Musil “ O homem sem qualidades” detectei os pólos que unem o homem paradoxal e clarifico-o em Calvino, nesta sua terceira “Lição americana” quando cita Roland Barthes, verdadeiro demónio da exactidão e unindo-o a Valéry, poeta do rigor impassível da mente, dele extrai

 

«J’ai, dit-il,…pas grand’chose. J’ai …un dixième de seconde qui se montre.»

 

Depois, depois a exactidão de Leonard da Vinci à procura da expressão mais rica e subtil e precisa, que abra guerra à utilização da linguagem nodosa, e que só no seio da «poetry», da qual falámos no último texto de Calvino, esclarece a promessa da salvação da linguagem-vida pela «Exactitude» enquanto dever da literatura.

 

E « Visibility» ?

 

«Poi piovve dentro a l’alta fantasia» (Chove dentro da minha fantasia). Deus !, quanta visibilidade lhe deste! Digo de novo!

 

E em Sta Croce toco na estátua de Dante: o  que te moveu? Sim, claro, a meta-linguagem da Visibilidade! E quão fielmente reproduziste a filosofia do teu tempo através da tua estrondosa imaginação!

 

E elucida Ítalo Calvino

 

Quando comecei a escrever histórias fantásticas (…) na origem havia uma imagem visual. Por exemplo, uma destas imagens foi um homem cortado em duas metades que continuavam a viver independentemente uma da outra; (…) a do rapaz que trepava a uma árvore e depois saltava de uma para outra sem nunca mais pôr os pés no chão; outra ainda, uma armadura vazia que se mexe e que fala como se tivesse alguém lá dentro.(…) Restava à imaginação visual seguir atrás da escrita.

 

Referi no primeiro texto a Calvino, que fora minha, por várias vezes, a ventura de captar a atenção dos meus alunos à trilogia deste escritor cujas histórias, nas suas palavras acima citadas, resumiu como nasceram.

 

Resta-me a felicidade de poder ter sabido que, em Ítalo Calvino reside o poder conhecer quantos grãos de areia representam o espectáculo de uma duna do deserto.

 

E afinal assim se explica

 

«Visibility»!

 

Teresa Vieira

LONDON LETTERS

The Tigress, the Eagle and Monsieur D, 1982~2013

 

Só mesmo uma mente à John Le Carré para lidar com tais eventos. Quando os National Archives descerram secret documents da Premiership de uma das protagonistas políticas na queda da Union of Soviet Socialist Republics, simbolizada no derrube do Berlin Wall e na ideia de que “there is no such thing as society,” eis que surge novíssimo tipo de dissidência no outrora conhecido capitalist West.

 

Monsieur Gérard Dépardieu requere passaporte russo, busca refúgio em Moscow e evade-se de uma taxa fiscal de 75% sobre as grandes fortunas na France do Président François Hollande. – Mais non! Pas cette épouvantable affaire! Já no UK surgem os 1982 Thatcher Files, em conjunto densamente pautado no spymaster scene-setting da Cold War. – Should I ring the Agency? Das tribulações na visita a Whitehall de Mr Ronald Reagan ao abalo em Downing Street com a invasão militar argentina nas Falklands Islands até à cismática restauração de valores austeritários nos Home Affairs, a instituição do Surrey proporciona singular viagem à intrépida corte de The Rt Hon Margaret Thatcher.

 

Talvez a persuasão ideológica contenha algo da ironia. Se a evasão tributária abre trilho a novelas como ‘The Actor Who Goes into the Cold’ ou ‘Our Man in The Putin’s Kremlin,’ o superior estádio da desobediência civil gaulesa remete para a gold question de Mr Henry D Thoreau: "Que é este governo... que a cada instante perde algo da sua integridade?" Ora, igual pergunta escoltava as ondas de choque do fenómeno Thatcher até uma abrupta re-legitimação patriótica no ano de 1982. O governo vive aí o mais baixo ponto de popularidade, com o desemprego e a emigração em níveis só observados durante a Great Depression: uma em cada oito pessoas não possui trabalho, com a escalada a ultrapassar os três milhões em January e a pobreza a engolir 12,2 milhões de britânicos. Três meses depois eclode a vitoriosa Falklands War nos mares do Sul e as T-policies são subtilmente rebatizadas at home de a conservative revolution.

 

Os 1980s são duros tempos de rutura. Entre os 6,000 documentos de diversa categorização sigilosa abertos ao público avultam dois dossiês deste período: 1) a Falklands War, com destaque para as decisões de Mrs Thatcher no gabinete de crise e a correspondência trocada com o Vatican; 2) a visita de Mr Reagan, em cujo Adress to The British Parliament apela à mobilização global para o downfall of Communism. Cotejando declarações de Sir Winston Churchill contra a tirania nazi, o US President profetiza na Royal Gallery do Palace of Westminster que “[t]he march of freedom and democracy… will leave Marxism-Leninism on the ash-heap of history."

 

O UK muda com a filha de Mr Alfred Roberts, de Grantham. Sob a bandeira da “free enterprise” desenrola-se a agenda de privatizações e a desregulamentação de amplos sectores de atividade. Mas é a memória do desmantelamento do Welfare State que ecoa na leitura dos Thatcher Files. Da análise ressalta tanto a incisiveness da Lady Prime Minister como o chaos behind the scenery. E aqui só a sagacidade do Dr Who ajudará na explicação: ‒ First things first, but not necessarily in that order.

 

St James, 8th January,

 

Very sincerely yours,

 

V.

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