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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 25 de fevereiro a 3 de março 2013

 

Na passagem dos cinquenta anos da morte de Aquilino Ribeiro (1885-1963) merece evocação uma das suas obras mais influentes e atuais. «A Casa Grande de Romarigães»(1957) é um livro de maturidade e de referência. O grande cultor da língua portuguesa manifesta-se em toda a sua riqueza, indo ao encontro das raízes da identidade e da língua.

 


Óleo de Maluda.

 

CASO SIGNIFICATIVO…
«A Casa Grande de Romarigães» é na literatura portuguesa e europeia um dos casos mais significativos de reflexão, defesa e salvaguarda do património histórico e cultural como realidade viva. Está ao lado, com uma identidade irrepetível, das sagas britânicas ou nórdicas. Como um dos grandes autores da literatura portuguesa do século XX, com um vocabulário riquíssimo, que é, ele mesmo, depositário de uma simbiose fecunda entre a língua erudita e popular, Aquilino Ribeiro é em «A Casa Grande» um escritor na maturidade – que nos oferece uma obra-prima, que vai ao encontro do que é a conceção moderna de «património cultural», confluência do tempo, entre o passado, o presente e o futuro. Não há património sem a criatividade das pessoas, sem pedras mortas e pedras vivas, sem a alma perene das casas e das referências materiais, as marcas e as coisas, em diálogo com a natureza. Foi com emoção que, há cerca de um ano, a convite do meu amigo Mário Cláudio, revisitei esse fantástico universo rural do Alto Minho, e senti os fantasmas de Romarigães a tocarem-me no ombro, com hospitalidade e boa cara… Emocionadamente, revisitei Paredes de Coura, e lembrei, por insistência do escritor de «Camilo Broca», as referências das minhas próprias raízes antigas. Como é extraordinário recordar o velho couto de Fraião e olhar as cumeeiras da Serra de Agra, o monte Calvário e os penhascos de Rubiães. E como são acolhedores a «gente de velha cepa» e o «sangue retinto suevo». O velho solar dos Menezes e Montenegros, a memória de um amigo do meu tio Joaquim Pedro, o Conselheiro Miguel Dantas, avô da mulher de Aquilino, D. Jerónima, e sogro de Bernardino Machado. E com que entusiasmo genuíno, de grande artista, Mário Cláudio me recordou com amizade essa encruzilhada de referências. E não podemos esquecer as magníficas trutas, belas e saborosas, cujos viveiros foram criados pelo remoto D. Telmo: «cultivava-os para que aquela água fosse mais um poceirão cristalino, inane e deserto, uma rã coaxava, soberana e reinante. Para que se tornasse um mundo vivo, colorido e na escala de seu fausto senhorial. Havia deleite maior que contemplar as trutas do deflúvio matutino, com a água do córrego a cair do batedoiro dos seixos, oxigenada da frescura do orvalho e do azul do céu?!». Mas na manhã fria, quando nos aprestávamos a deixar Paredes, vimos, em imaginação e lembrança literária, multiplicarem-se «as rolas nas corutas dos pinheiros», e as lebres corriam «nas circunvoluções dos outeiros debaixo do céu lavado». E ali, ao lado, na quinta onde dormimos, com o testemunho do Manuel Villaverde Cabral, depois do frugal dejejum, víamos «os contornos do regadio», com «a vinha de espaldeira e enforcado». Ler «A Casa Grande» é fazer uma imersão total na terra acolhedora e rica, do verde escuro minhoto de que fala o conde de Ficalho, para diferenciar a terra pátria. E Romarigães? Eis a «facúndia tropical», a «efabulação pícara» (de que fala António Valdemar) e a «inspiração luxuriosa, tipo indiático dos templos consagrados a deusas que tinham infinitos braços para abraçar voluptuosamente o mundo e infinitas tetas para darem de mar o leite da paz e conformidades. Dominava todo este espaço uma fertilidade extraordinária. Ao pé da casa, o fidalgo galego renovou o espigueiro, lauto e garboso, verdadeiro templo de Ceres».

 

A BELA RUÍNA DO AMPARO
Hilário Barrelas, entusiasmado com Romarigães, não esconde as fraquezas, mas deixa-se animar pelas memórias. Ler interminavelmente o romance, a saga, é um prazer extraordinário. «Fica em Romarigães, na bela ruína do Amparo. Tinha caído o telhado na linda capela, os caseiros queimaram as portas, a talha do altar e do coro, e deixaram desaparecer imagens e painéis. No solar uma das paredes da construção filipina esbarrigara e acabou por dar em terra. Pelos telhados entrava água como por cestos rotos e as tábuas do soalho, se lhes punham um pé em cima, rangiam e estalavam, escancarando-se em precipícios traiçoeiros para as lojas. Para cúmulo, o Estado tomara conta do salão principal para aula de primeiras letras, o salão onde D. Telmo de Montenegro, o verdadeiro, o espanhol, o quixotesco, dera festas de truz às duas fidalguias de Minho e Galiza. Não restavam alizar direito nem uma janela intacta. Os móveis que eram de estilo carregara-os um ferro velho para o Porto por tuta e meia. De gorra com um caseiro ladro e tramposo, os netos do Conselheiro haviam alienado águas que pertenciam às quintas e procederam a derrubadas consecutivas na mata, em cujas brenhas se caçara o javali, sempre que tinham necessidade de dinheiro para as suas pândegas, encalvecendo-a miseravelmente. De modo que o homem dos espaços abstratos, o sonhador, o Hilário Barrelas das “midnettes” da Rue Gay Lussac, só encontrou verdadeiramente incólume o olhar de Nossa Senhora do Amparo. Mas tanto bastou, ajudado duma mirada angustiosa do Cristo setecentista, que assistira na fumareda da casa dos caseiros a suas rixas e bodeganas, para se declarar rendido».

 

HOMENAGEAR UM ESCRITOR É TORNÁ-LO VIVO
A melhor homenagem a Aquilino é lê-lo, sempre, e lembrá-lo. Português difícil? Talvez. Mas genuíno e saboroso. Como dissemos, aqui encontramos o melhor da defesa do património e da identidade. E em «A Casa Grande de Romarigães» tudo se soma, num resultado positivo: o património material, as tradições e os costumes, bem como o trabalho aturado e moroso da língua-mátria. As pedras encontram-se com o linguajar. As plantas, os vinhedos, o milho nos espigueiros, as aves, as trutas, as lebres – tudo se funde numa descrição magnífica do que temos para ver. Romarigães é o símbolo da memória viva. E o certo é que a ruína depressa pôde tornar-se lugar de imaginação, acordando a história viva… Como quis Aquilino.


Guilherme d'Oliveira Martins