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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

de 11 a 17 de fevereiro de 2013

António Lobo Antunes acaba de subscrever o manifesto «A Europa ou o Caos», apresentado por um conjunto de prestigiados intelectuais europeus que apela à consciência dos governantes e dos cidadãos europeus no sentido de se empenharem ativamente na construção europeia como uma questão de sobrevivência.

Churchill no Congresso do Movimento Europeu de Haia, 1948.

UM MANIFESTO QUE APELA À AUDÁCIA
Com palavras duras e certeiras, o documento constitui um oportuníssimo alerta, em nome da paz, da democracia e da cultura. Assinam o manifesto, além de António Lobo Antunes: Vassilis Alexakis, Hans Cristoph Buch, Juan Luis Cebrián, Umberto Eco, György Konrad, Julia Kristeva, Bernard-Henri Lévy, Claudio Magris, Salman Rushdie, Fernando Savater e Peter Schneider. O título do documento é bem demonstrativo do momento dramático que atravessamos - «Europa ou o Caos» - e os autores têm no seu currículo bastante empenhamento cívico ativo para merecer a nossa máxima atenção. Quando os subscritores do texto afirmam que «a Europa não está em crise, está a morrer» lançam um apelo forte no sentido de regressarmos à ideia de Europa como «sonho e como projeto», segundo o espírito defendido por Edmund Husserl nas vésperas da catástrofe de 1939: a Europa como vontade e representação, como sonho e construção, que soube transformar-se numa ideia nova e que pôde construir a paz sobre os escombros deixados pela Segunda Grande Guerra, favorecendo a prosperidade e a democracia. Ora, essa Europa está a desfazer-se perante os nossos olhos, pelo que se torna indispensável encontrar respostas de cooperação e de vontade, que permitam evitar a tragédia. Estamos, pois, como já se disse, perante uma questão de sobrevivência. São a paz, o desenvolvimento, a democracia e a diversidade cultural que estão em causa. Naturalmente que há vozes cínicas a dizer que a fragmentação é inexorável, como a injustiça ou como a pobreza, contudo, temos de fazer tudo para evitar que a catástrofe regresse e devaste o velho continente e o mundo. O problema é cultural, político, económico e social. É cultural, porque tem a ver com a capacidade criadora, com a racionalidade e com o respeito mútuo. É político, porque obriga ao diálogo e à compreensão entre poderes e vontades diferentes, que procuram encontrar valores e interesses comuns. É económico porque exige o entendimento do valor e da gratuitidade, do que tem preço e do que não tem, pondo a capacidade de produzir riqueza ao serviço das pessoas e no lugar das aparências e da especulação. É social, uma vez que a confiança e a coesão têm de ter consequências no respeito pela eminente dignidade de todas as pessoas, sendo a liberdade igual e a igualdade livre faces da mesma moeda.


PROCURAR O QUE É COMUM
Naturalmente que há as divergências e a complexidade (que Edgar Morin enfatiza), no entanto importa integrar racionalmente a capacidade de regular os conflitos, as diferenças e as contradições, procurando entender os interesses e os valores comuns, em nome da igual consideração e respeito por todos (de que nos fala Ronald Dworkin). Não se trata, assim, de propor soluções utópicas ou idílicas, nem pacifismos que apenas abrem caminho à conflitualidade desregrada e conciliam com a especulação financeira, que agrava as injustiças e as desigualdades. Robert Schuman, um dos pais fundadores do projeto europeu, insistiu especialmente na procura gradual de pontes capazes de favorecer e de fortalecer o contacto entre diferentes realidades políticas e sociais, através da simultânea salvaguarda das diferenças e das complementaridades. E quando agora o Primeiro-Ministro britânico acena com o fantasma do eventual fim do Estado-nação e com o perigo do super-Estado europeu parece querer afastar-se do compromisso comum de construir o modelo de paz que Winston Churchill definiu no célebre discurso de Zurique. Se dúvidas houvesse, bastaria ver as preocupações agora explicitadas pelo Presidente Barack Obama. E não esqueçamos que foi a pensar na democracia e na Europa que Churchill recusou o demissionismo de Munique, em 1938. Compreendemos que as circunstâncias de hoje, setenta anos depois do fim da Guerra, num momento em que a memória tem de estar presente para recusar o ressentimento, sejam diferentes, mas o certo é que obrigam à recusa da fragmentação e do nacionalismo. A União Europeia não é um Estado, é uma realidade múltipla assente em Estados livres e soberanos. O federalismo não pode, assim, confundir-se com centralismo e tem de basear-se na participação dos cidadãos a todos os níveis. 


RECUSAR A INDIFERENÇA
A indiferença, apesar de tudo, parece prevalecer. O manifesto recorda, aliás, como estamos longe do tempo em que pensadores e artistas de há duzentos anos se mobilizaram em nome da defesa da liberdade dos povos helénicos (em contraste com o encolher de ombros de agora) – Chateaubriand, Byron, Berlioz, Delacroix, Pushkin e Victor Hugo. Ora, o ideal da Europa de defesa de uma convergência de povos e Estados livres e soberanos obriga a que a soberania e a liberdade sejam defendidas não na lógica protecionista e fragmentária, mas como solidariedade e cooperação. E se Atenas é atingida, também o é Roma, sendo símbolo da distinção entre lei e direito, entre o ser humano e o cidadão. No fundo, estamos perante as bases mais sagradas da democracia. A lógica da especulação financeira parece ocupar o espaço da dignidade pessoal, da liberdade, da igualdade e do respeito mutuo, pedras ancilares do humanismo. E regressam os perigos dos populismos, dos chauvinismos, das ideologias de exclusão e ódio. Onde está, afinal, perguntam os autores, «a pequena internacional de espíritos livres que lutavam, há vinte anos, por essa alma europeia, simbolizada por Sarajevo, debaixo das bombas e vítima de uma desapiedada limpeza étnica?». O certo é que não basta a moeda única, é preciso que o Euro se ligue às economias e a fiscalidades convergentes, onde haja justiça distributiva. Sem União política, sem políticas partilhadas, sem regras comuns quanto à responsabilidade pelas contas, sem governo económico, tudo não passará de uma frágil quimera. «Sem unidade política (diz o manifesto), a moeda dura uns quantos decénios e depois, aproveitando uma guerra ou uma crise, dissolve-se». Daí porem o dilema: «União política ou barbárie», acrescentando: «federalismo ou explosão, regressão social, precariedade, desemprego disparado, miséria». No fundo, não estamos num momento de panos quentes e de ambiguidades: «ou a Europa dá um passo mais e decisivo, no sentido da integração política, ou sai da História, some-se no caos». Dentro desta preocupação, ao falar do «crepúsculo europeu», Eduardo Lourenço fala de uma «metamorfose sem precedentes», temendo que a Europa se dissolva «diante dos nossos olhos impotentes ou já anestesiados em qualquer próximo futuro que será tudo menos herança ou sublimação do nosso mítico património» (Público, 15.1.13). E Ulrich Beck insiste na necessidade de a Alemanha dizer se quer ou não uma Europa europeia e democrática. Estes são os pontos fundamentais, a que não podemos fugir. É a nossa própria vida que esta em xeque.


Guilherme d'Oliveira Martins

Jean Racine

 

Na vara de uma questão, Jean Racine, o grande dramaturgo francês, e no prefácio a Berenice: « faire quelque chose à partir de rien » ou criar no espectador «cette tristesse majestueuse qui fait tout le plaisir de la tragédie».

 

Tito, em nome do amor que o unia a Berenice, não podia pôr em perigo a sua missão à frente dos destinos de Roma. A tragédia nasce do afrontamento de imperativos inconciliáveis. As duas personagens enfrentam os seus destinos, mas Tito e Berenice aceitam a separação sem refúgio na morte. Ela volta para a Palestina e quão facilmente o amor acredita em tudo o que deseja, como escreveria Racine.

 

Aqui deixo esta taça rasa de palavras da tragédia “Berenice” ao equilíbrio da vara do Acto III, Cena I: Tito, Antíoco, Arsácio

 

Tito

Príncipe, ireis partir? Mas que razões instantes

vos apressam a ida, ou fuga direi antes?

Pois me íeis ocultar o vosso adeus até?

(…) Pensais que só de longe um ror de amigos fito

como gente a ignorar, de quem não necessito?

Indo a fugir vós mesmo a minha vista pois,

mais que nunca, Senhor, preciso ora me sois.

 

 
Teresa Vieira

 

  • Um pássaro pela mão de Vasco Graça Moura no belíssimo prólogo do tradutor na edição 2005 da Bertrand Editora
  • Racine, em 1677 abandona o teatro e foi nomeado historiógrafo de Luís XIV e, viria a pedido de Mme. de Maintenon, a escrever duas tragédias bíblicas. E ainda que permanecendo mordaz, bem reconhece o quanto a dor que se cala é de todas a mais funesta ou

        Um pouco bêbada de ar, pergunto? Ou uma verdadeira verdade assustada? Eu não sei. 

        É muita escuridão diurna aquela que cala o que só a água arqueia.

        Dieux cruels ! De mês pleurs vous ne vous rirez plus. 

 

LONDON LETTERS

Brexit or Not Brexit 2017

A longa, elaborada e muito esperada oração do Prime Minister teve o seu quê de shakespeariano. Contém justas referências a este nosso inverno do descontentamento, como em Richard The III. ‒ Si la magie est tout, est un art! Mas sobretudo recorda dilemáticas linhas do bardo em The tragedy of Hamlet, prince of Denmark. Assim, em versão 2013 blue Tory, atualize-se um outro mui famoso solilóquio: Ficar ou não ficar (na European Union, bem entendido): esta é a questão (a referendar, claro) / Se mais nobre é em mente suportar (o défice democrático) / Dardos e flechas de ultrajante destino (a crise na eurozone) / Ou tomar armas contra um mar de problemas (a falta de competitividade) / E firme, dar-lhes fim (libertar o United Kindom das amarras ao diretório continental).* Isto sintetiza a poética da intervenção destes dias de Mr David Cameron, em London, sobre a necessidade de renegociar a relação britânica com a união europeia em termos mais abertos. – Or: Am not I your Rosalind?! Ora, o líder conservador simplesmente acaba de ampliar as probabilidades de reeleição em 2015 ao verbalizar a eventual Brexit em 2017.

Já muito foi escrito sobre a visão europeia do Premier na sua réplica a The 1988 Bruges Speech, de Mrs Margaret Thatcher, realizado nas vésperas do Maastricht Treaty e do avanço comunitário para o mercado único como antecâmara da união monetária que cria o euro sem a libra esterlina. Num ponto convergem as reações internas e externas à estratégia vaga do 10 Downing Street quanto a um novo trato com Brussels: neste lance de exímio poker player pode Mr Cameron ter aberto a Pandora box num clube de 27 países que denota sérias dificuldades em garantir hoje a coesão social em torno da European citizenship. No mais, sempre os britânicos ecoam saudades da liberdade da 1960 Stockolm Convention: há meio século, também em january, seis países instituíram a European Free Trade Association, reunindo a Austria, Denmark, Great Britain, Norway, Portugal, Sweden e Switzerland numa sofisticada zona franca como via alternativa ao federalismo latente dos founding fathers continentais.

A integração do United Kingdom na atual European Union nunca foi tema pacífico cá pelas ilhas, ciclicamente causando tempestades políticas à esquerda e à direita. Nos primórdios do projeto europeu, aquando da constituição da European Coal and Steel Community, Mr Clement Attlee explica a objeção básica na House of Commons: "We on this side are not prepared to accept the principle that the most vital economic forces of this country should be handed over to an authority that is utterly undemocratic and is responsible to no one." O PM trabalhista é secundado por Sir Winston Churchill no seu regresso ao poder. Na linha da Foreign Office mind que formata a política externa, tanto o Labour como os Conservatives desgostam do elemento supranacionalista e por isso recusam o Treaty of Rome. Em 1961, face aos new historical winds e ao final da imperial road, Mr Harold Macmillan inverte o rumo e o UK adere finalmente à European Economic Community em january de 1972.

A construção europeia é hoje uma entidade política diferente da visionada pelos pais fundadores. A geração de Attlee, Churchill, Monnet e Adenauer visa solução comum para a guerra e a tirania, respeitando o interesse nacional de cada um dos países envolvidos; já os atuais líderes enfrentam uma crise global que persiste em exaurir a elementar confiança dos povos na tradição ocidental. – As so, the question of Master Will would be certainly other: Shall this fellow live!?

 

St James, 29th January

 

Very sincerely yours,

 

V.

 

 


* No original de 1599~1601: “To be, or not to be: that is the question: / Whether’tis nobler in the mind to suffer / The slings and arrows of outrageous fortune, / Or to take arms against a sea of troubles / And by opposing end them.”

– William Shakespeare, The tragedie of Hamlet, prince of Denmarke. Act III, Scene 1.

A VIDA DOS LIVROS

de 4 a 10 de fevereiro de 2013

 

Assinalamos os cinquenta anos da criação de revista «O Tempo e o Modo», tão ligada ao Centro Nacional de Cultura, marco fundamental na renovação do debate de ideias, bem como do pensamento e da ação no início dos anos sessenta, graças ao impulso, à premonição e à generosidade de António Alçada Batista (1927-2008) e da equipa que constituiu na Livraria Moraes, num momento decisivo de mudança no destino português, aberto em 1958 pela candidatura presidencial de Humberto Delgado, pelo célebre memorando do Bispo do Porto dirigido a Salazar e por tudo o que se seguiu.

 

 

UMA REVISTA DIFERENTE
Não podemos compreender o que se passou até 1974, e depois, sem conhecer o que a geração dos jovens que lançaram e sustentaram a revista foi capaz de pensar e de agir. Basta lermos o sumário na capa do primeiro número e folhearmos a revista, para percebermos que há sinais proféticos desconcertantes (perante a “desordem estabelecida”) e o anúncio de um caminho cosmopolita, aberto, europeu, assente na democracia. António Alçada Batista no primeiro texto que assinou usa, aliás, um eufemismo, que hoje quase nos faz sorrir: “se numa sociedade não estiver institucionalizado o modo normal, efetivo e legítimo de formulação e execução da vontade do todo, nomeadamente da sua forma de representação, toda a expressão pública é uma simples forma de opinião e não uma representação da vontade comum”. Em vez da referência às instituições democráticas, para iludir os censores, recorria à misteriosa expressão “instituições que pressupõem uma certa dialética”. Os fundadores da nova revista pertenciam a uma geração não-conformista vinda dos movimentos católicos, desde o I Congresso da JUC (Juventude Universitária Católica) até ao jornal «Encontro» e ao Congresso proibido da JOC (Juventude Operária Católica), que rompera com o regime. Em 1945, não tivéramos a democracia esperada, apesar da vitória dos aliados. Ao longo dos anos cinquenta manifestaram-se evidentes contradições, na governação e nas oposições. As gerações conservadoras que vinham de antes da guerra mantinham os velhos temas e uma lógica de protecionismo, mas havia quem acreditasse na exigência de romper fronteiras e de abrir o caminho para a Europa e para novas instituições. António Alçada Batista iniciara o que designaria como a “aventura da Moraes”. Uma editora da Rua da Assunção fora posta à venda, Alçada aplicaria nela o dinheiro que tinha. Havia que aproveitar a oportunidade. O clima parecia propício. Havia ideias e existia supostamente público para os livros que tinham de ser publicados, havia jovens voluntariosos e havia os efeitos da candidatura de Delgado e da atitude do Bispo do Porto… “É preciso ter presente – diz António Alçada – que, nesse tempo, a Igreja, o Exército, o funcionalismo público e a burguesia de província (estruturalmente ligada à Igreja), constituíam as forças sociais de apoio da situação saída da Revolução de 28 de maio de 1926”. Havia a “poderosa força da inércia” e a “frágil força da mudança” e um grupo de jovens propunha-se pelas ideias romper os vários conformismos, agitar as águas – com uma “revista de pensamento e ação”. Pedro Tamen, um desses jovens, formularia o programa, com palavras significativas: “A ação começa na consciência. A consciência, pela ação, insere-se no tempo. Assim, a consciência atenta e virtuosa procurará o modo de influir no tempo. Por isso, se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo.” A preparação do novo projeto começa nas coleções. Além de «O Tempo e o Modo», que publicara Maritain, Mounier e o Padre Manuel Antunes, temos ainda o “Círculo do Humanismo Cristão”. G.K. Chesterton, Jean Lacroix e François Perroux são traduzidos. José Escada concebe a linha gráfica. Um pequeno grupo lança as bases da revista – Alçada, Bénard, Tamen, Bragança, Vaz da Silva e Murteira. António Alçada seria proprietário e diretor; João Bénard da Costa, chefe de redação e Pedro Tamen, editor. Em 29 de janeiro de 1963, dia dos anos de António, nascia formalmente “O Tempo e o Modo” – revista, usando a fórmula de Pedro Tamen.

 

MAS COMO? 
Seria uma revista só de católicos? Se assim fosse, seria uma traição a Mounier, que se demarcara em 1932, ao criar «Esprit», de Maritain – propondo um lugar de abertura e diálogo com não católicos. Era preciso abrir espaços. E assim aconteceu. Havia outros católicos de um setor mais técnico (como Adérito Sedas Nunes ou Alfredo de Sousa), havia os jovens estudantes da greve de 1962 (como Manuel de Lucena, Jorge Sampaio, Jorge Santos e José Medeiros Ferreira, decisivos nos recentes acontecimentos) e havia os agnósticos, como Mário Soares e Salgado Zenha. Abrir ou não abrir? – eis a questão. Foi feita uma votação. João Bénard recorda: “um de nós sugeriu que se rezasse uma Avé-Maria para que o Espírito Santo nos iluminasse”. Resultado: cinco votos a favor da abertura, dois contra. A abertura estava decidida! Perante a deliberação, António Alçada propõe o convite a Mário Soares e a Francisco Salgado Zenha. E entraram Francisco Lino Neto (originário de uma família com tradições no Centro Católico, que talvez o primeiro católico a questionar a política colonial do regime), Orlando de Carvalho, de Coimbra, Mário Brochado Coelho, do Porto. E, para surpresa de muitos, também surgiu o jovem Mário Sottomayor Cardia. Pouco depois entrariam Vasco Pulido Valente, João Cravinho, Francisco Ferreira Gomes e Vítor Wengorovius. O primeiro número era o espelho da abertura desejada: “Notas sobre a Perturbação de certas Sociedades Contemporâneas” de António Alçada Batista; “Em torno da Universidade” de Jorge Sampaio e Jorge Santos; “Oliveira Martins e a Questão do Regime” de Mário Soares; e ainda “O Concílio Vaticano II”, de M.M. (que escondia a verdadeira identidade do Padre António Jorge Martins). Na redação, a secção que mais críticas suscita é a de “Artes e Letras”. Manuel Poppe fala de “O Manto” de Agustina Bessa-Luís, António Ramos Rosa debruça-se sobre um texto de M.S. Lourenço (“O Doge”), Ruy Belo fala de Herberto Hélder… Mas onde estavam os autores críticos do regime? Por que razão era dada tanta importância a Agustina? Alberto Vaz da Silva, responsável pela secção, ouve crítica muito duras… Aliás, falando de críticas, recorde-se uma pequena frase de Alçada no terceiro número, que causaria um autêntico vendaval. Dizia ele que ao “arbítrio de Batista” se tinha sucedido “o extremismo de Fidel”. Tanto bastou para que houvesse fortes reparos. Mas no quinto número tudo seria ainda pior, por causa de uma referência de Alçada ao “conformismo da esquerda bem pensante”, de que eram exemplo as práticas da “Seara Nova”… Soares e Zenha procuram pôr água na fervura, mas uma nova guerra abriu-se. Sottomayor Cardia intervém. A sua aparente candura, não fazia adivinhar a violenta reação que se sucedeu. Na reunião seguinte da revista, Cardia, falando sempre baixo, afirmou que o texto de Alçada apenas demonstrava um “sinistro conluio” entre a democracia cristã e a social-democracia, servindo “O Tempo e o Modo” de capa oportuna e oportunista para esse terrível entendimento. Anunciou então que se demitia e que exigia a publicação de uma carta a esclarecer tudo. Mário Soares tentou promover um “comité” que acalmasse o “rapaz”. A diligência pareceu produzir efeitos positivos. Aparentemente, Sottomayor Cardia foi serenado e não exigiu a publicação da carta. No entanto, poucos dias depois, a “Seara” publicava a dita carta, com o devido destaque, e foros de escândalo, antecedida de palavras de esclarecimento e de um elogio de Rogério Fernandes, então diretor da revista da Rua Luciano Cordeiro. Esta dissidência causou perturbação na vida da redação de “O Tempo e o Modo”. Jorge Sampaio, Manuel de Lucena e João Cravinho inquietam-se. Uma polémica com a “Seara” seria altamente inconveniente. Mário Soares toma a pena e redige um editorial muito hábil, recusando que houvesse um ataque divisionista ou malévolo. “O Tempo e o Modo” não atacou nem atacará a “Seara Nova” – “revista por cujo passado tem o maior respeito e cujo presente aprecia”. No número 6, surgiu novo tema quente, Vergílio Ferreira e Alexandre Pinheiro Torres envolveram-se numa polémica sobre o neorrealismo. A revista, que não fugia a questões incómodas, fez o seu primeiro número especial sobre o tema. “A Arte deve ter por fim a verdade prática?” O tema era difícil. E houve que ir buscar quem fosse pelo não (o que era afirmação considerada suspeitíssima), sem apresentar sombra de pecado. Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, António Pedro, José-Augusto França começaram então a colaborar na revista e novos horizontes se abriam. Mas as vozes do sim foram também ouvidas. Lá estiveram Óscar Lopes (cunhado de Jorge de Sena), José Fernandes Fafe, Mário Dionísio, Batista Bastos e Luís Francisco Rebelo. Foi, porém, um número civilizado e dialogante, que não deixou calmos os críticos e os desconfiados. João Bénard da Costa confessa que então percebeu “comme les républicains peuvent être réactionnaires en matière d’art ».

 

UMA BREVE SÍNTESE
Vasco Pulido Valente sintetiza, de modo exemplar: «‘O Tempo e o Modo’ não foi uma má revista. Longe disso». A verdade é que “o regime e o PC, ou os seus companheiros de caminho, dominavam e fiscalizavam a opinião pública e a produção académica, ensaística e cultural que se publicava. ‘O Tempo e o Modo’ recebeu e promoveu muitas vítimas deste arranjo», desde Vergílio Ferreira a Eduardo Lourenço, de Agustina Bessa-Luís a Sophia de Mello Breyner, passando por António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro. «Tratámos Jorge de Sena como ninguém o tratou em vida e José Régio como ninguém o tratou depois”. Afinal, usando uma expressão cara a João Bénard, a revista foi «o piano de uma geração que rejeitava simultaneamente a ditadura, o velho republicanismo jacobino e o PC». E Vasco Pulido Valente, ativíssimo membro da redação, recorda ainda que “a censura e o PC, pelo menos, achavam-nos à altura merecedores da sua execração”. Apesar de mil tentativas para suavizar os efeitos devastadores do lápis azul, a censura “demolia” todos os meses “dois terços de cada número, uma proporção altamente anormal, mesmo para as circunstâncias e os hábitos estabelecidos”… Tudo isto foi possível graças à generosidade de António Alçada Batista, que tinha um espírito aberto, que favorecia a liberdade, e que perdeu na revista uma fortuna, bem como de João Bénard da Costa que «conservou, contra ventos e marés, um fervor pela revista e uma convicção da sua importância que o sustentaram a ele e a nós em crises quase diárias e desesperos permanentes»… E este mesmo reconhece “a satisfação de ter contribuído para erguer uma revista culturalmente marcante e onde se multiplicaram das melhores e menos estúpidas coisas que nesse período se escreveram na imprensa portuguesa”. Aqui diz-se tudo. Os das gerações mais novas reconhecem-no sem sombra de dúvidas. Para além das situações e dos debates, dos arrufos e das zangas, os animadores da revista tiveram, como poucos, a lúcida compreensão de que o futuro seria radicalmente diferente e que todos se deveriam preparar para ele… 


Guilherme d'Oliveira Martins

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