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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SEXTA-FEIRA MAIOR…

 

"Sinto hoje muito, minha Princesa de mim, esta partilha, íntima e secreta, do meu diálogo interior contigo. É quase hora de tércia, aqui em Nagasaki, madruga aí esta Sexta-Feira Santa. Diz-nos a tradição evangélica que à terceira hora morreu Jesus. E propõe-nos a liturgia católica das horas o capítulo 53 do livro judeu do profeta Isaías: "Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. E nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva. Pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes; cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as culpas de todos nós. Maltratado, resignou-se e não abriu a boca. Como cordeiro levado ao matadouro,como ovelha muda ante aqueles que a tosquiam, ele não abriu a boca". Um dos primeiros livros sobre os bombardeamentos atómicos cuja publicação, no Japão, foi autorizada pelo ocupante americano intitula-se "Kono Ko o Nokoshite" («Ao Deixar Estas Crianças»). Estas eram os filhos, uma e um, que lhe dera a mulher que a terrível bomba matara. A despedida anunciada, agora já só ele a podia dizer, sabendo bem que as radiações que o tinham atingido o matariam. Ao fim de quase seis anos, em 1951... Receberia a bênção papal, a visita de Helen Keller e do imperador Hiohito, em Maio de 1949, já depois de ter publicado "Nagasaki no Kane" (Os Sinos de Nagasaki), que seria aproveitado pelo cinema. Sobre isto, como sobre a visita do imperador Showa (Hirohito), inibe-me um pudor quase religioso de dizer seja o que for. Mas deixo-te, Princesa da minha confidência, uma interrogação: oportunismo ou arrependimento? O Professor Takeshi Nagai era um respeitado médico radiologista e um cientista investigador que, já antes da explosão atómica, se expusera, por condição e dever de ofício, a raios X... Esse homem brilhante e considerado morre, vítima da força destruidora do átomo, aos 43 anos. É japonês, um dos muitos que, em Nagasaki, são cristãos católicos. Será, pelo misterioso lado bom dessa péssima ironia do destino  -  que tantos inocentes castiga  -  um dos inspiradores do profundo sentimento pacifista que crescentemente se irá apoderando da alma japonesa. De budistas e shintoístas, dos cristãos que são, quiçá,1% da população… A humilhação do Império do Sol Nascente tinha gerado, na circunstância condicionante da ocupação americana, a resignação. Mas a resignação não é um exercício de liberdade. Não é nobre. Tem propensão para a manha, para o "peut êt´e bien qu´oui,peut êt´e bien que non" dos "auvegnat"... ou o albiónico "wait and see"... A nobreza dos homens exige-lhes, não o oportunismo míope do bem-haver imediato, mas um esforço de entendimento do que somos, donde vimos, para onde vamos. A revolta  -  que tanto opomos à resignação  -  é certamente compreensível, muitas vezes legítima e até necessária. Mesmo S. Tomás de Aquino assim a entendeu. Mas pode sofrer de um excesso de propensão à violência destruidora. Daí a importância, para as nossas vidas, da harmonia, não como receita (a harmonia não se impõe), mas como procura. Como na música de Haydn, de que tanto gosto. Até nas "Sete palavras de Cristo na Cruz". Procurar a harmonia é abrir uma janela à angústia. Hoje, em Sexta-Feira Santa, recolhido na catedral de Urakami, em Nagasaki, cuja construção foi iniciada em 1895, na era Meiji, e terminada  -- qual obra das nossas catedrais medievais  - em 1925, para ser destruída pela bomba de 1945, e reconstruída em 1959, recordo essa abertura mística de Takeshi Nagai, cientista japonês: "Não terá sido Nagasaki a vítima escolhida, o cordeiro sem mancha, sacrificado numa fogueira total, num altar de sacrifício, respondendo pelos pecados de todas as nações durante a 2ª Guerra Mundial?". Ocorrem-me esses versículos do Apocalipse de S. João: "Digno é o Cordeiro sacrificado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor!..." Mas que sabemos nós, Princesa de mim, dos misteriosos desígnios de Deus? Continuaremos a inventar milagres que O domestiquem e reduzam ao temor do nosso entendimento? Ou bradaremos aos céus, com gestos feios, que Ele não existe e o seu conceito vago apenas nos atormenta? Penso, neste dia, em Nagasaki, lembrando as frustrações de esforços missionários, os silêncios e desvios sincretistas de igrejas remotas, que foram sobrevivendo na fé exilada mas fiel dos seus santos. Sinto-me em comunhão com eles, talvez mais do que com tantos outros que, pela pressão de "lobbies beatos" por cúrias romanas foram sendo canonizados... Se Deus existe, são dele, e dele só, o poder e a glória, o segredo do absurdo e da redenção... E no coração de Deus habitarão todos os povos e religiões do mundo. Dou-lhe hoje graças por acreditar que Ele se me revelou em Jesus Cristo. Na contemplação do Deus humanizado e crucificado comungo o mistério da cosmogénese (diria Teilhard) que conhecemos como sofrimento do mundo E lá me volta, e dá voltas, o nosso Bernanos e sua alegria: "Tudo é graça!". Percorri, anos mais tarde, os mesmos passos de Camilo Maria em Nagasaki.

Camilo Martins de Oliveira

Um atento contrato social

Os novos orgulhos nacionais baseados na consciência dos próprios feitos, exprimem o universalismo raquítico e poderoso de um mando.

Esta ordem entende-se possuidora de critérios que definem o bem e o mal no hoje, no amanhã, e em todos os países onde este mando chegar. Este mando educou-se para se limpar de máculas que impedissem o seu poder de se fazer respeitar.

Assim se chega também à obediência, ao monólogo que, arrogante, só se avalia para se reforçar.

Faz parte do jogo do mando ser-se cego às circunstâncias e à interpretação da validade das mesmas.

A receita campeã reside no exigir e exibir a obediência, aumentar a pressão, não permitir respirar ou questionar, e depois de desqualificar os direitos de um povo e outro e outro, a precaridade das horas faz o restante trabalho.

A pertença à Europa a partir da conquista do mando já nem faz mais sentido por parte de quem é o próprio mando. Afinal nunca houve interesse em recuperar economias, mas sim em endividá-las, pois a nova norma da estabilidade é a do austero colapso por conta do mau comportamento dos cidadãos que, ou baixam o custo miserável da mão- de- obra, ou respondem pelo desemprego e por todas as indizíveis agruras que possam ter de suportar.

Mas eis que a doença reage ao remédio que não pediu. A Europa não é alemã.

 

E a Europa reage tão só por ter conhecimento que naquela Primavera de 2013 se deve iniciar o novo contrato europeu. Aquele que se não faz contra a vontade dos cidadãos, mas antes pela sua inequívoca vontade de viver a liberdade e a qualidade de vida, no círculo da partilha dos valores desta Europa cheia de gente de bem, e que de sofrida já bastou qualquer caminho de inferno que tenha passado por uma guerra.

 

E quem diz Europa, passe a dizer nomes. A Europa não tem costas largas para votos de cerneira.

 

E quem diz Europa, diga nomes. E quem diz contrato social europeu, saiba que só as diferenças o constroem como europeu e não como nacional de um país que quer ser europeu para ser a única europa.

 

Na universidade digo aos meus alunos

«Impronunciável deveria ser, ter de mencionar expressamente, que nunca em nome da Europa algum país ditará quais os interesses nacionais das democracias europeias.»

 

E a salvação nasce do perigo. E conhecer as nossas limitações agora, poderá ser a lança pró-europeia purgada de submissão: a que se lança no grande voo dos laços de pertença à Europa no mapear dos cafés de George Steiner.

 

A civilização é o respirar da cultura e esta, lente bastante que protege os fracos de se destruírem a si próprios, ou de não reconhecerem as bestas “quase perfeitas” que se geram na escuridão, tirando proveito dos incautos, dos erros e distracções da humanidade, dos entorpecidos que, às vezes, tardiamente almejam o alerta total.

 

Mas esta civilização ainda está na sua infância, e o totalitarismo e o significado da luta eterna contra ele, fará a grande experiência de um diferente destino europeu.

 

 

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Março 2013

 

DE NAGASAKI…

 

"E cá estou, uma vez mais, em Nagasaki. Se tivesses vindo comigo, deambularíamos ambos por aí, visitando a cidade que desconheces. Mas estou só, minha Princesa de mim, e assim me vou ficando por pontos de vista que já conheço, a imaginar a Nagasaki que não conheci.
Foi com a chegada dos portugueses ao sul de Kyushu, em meados do séc. XVI, que o Japão iniciou contactos com produtos, gentes e culturas de outras áreas do globo, e é nesta circunstância que Nagasaki passou de simples aldeia de pescadores a porto, cidade e ponto de encontro do Oriente nipónico com o Ocidente europeu. Foi o "daimyo" Omura Sumitada que abriu o seu feudo aos missionários jesuítas do Padroado Português do Oriente, depois de um encontro com o padre Cosme de Torres que, então, nomeou o padre Gaspar Vilela para a aldeia de Nagasaki, onde vivia uma pequena comunidade de cristãos, governada por Nagasaki Jinzaemon, genro do "daimyo", e que se batizara com o nome de Bernardo. A protecção oferecida por Sumitada e a cristianização da população encorajam o estabelecimento dos jesuítas,que para lá vão chamando cristãos perseguidos noutras regiões. É assim que, em 1570, o padre Melchior de Figueiredo começa a estudar a baía, com vista na instalação de um porto comercial. No ano seguinte, já se urbanizava Nagasaki, feita cidade onde afluíam navios e mescadores de outras paragens. Entre eles, a nau de Tristão Vaz da Veiga, que inaugura o período das visiras anuais da Nau do Trato. Começa assim uma era de prosperidade,com algumas vicissitudes devidas à cobiça que a cidade, seu porto e comércio despertam em senhorios vizinhos. Mas durante 69 anos Nagasaki será o porto por excelência dos portugueses e a cidade dos jesuítas, por 35 anos, aliás, sede de bispado e da missão católica no Japão. Ali nascem e dali se propagam a moda e o gosto "nanban"  -  e não resisto a transcrever dois saborosos textos coevos, um do Padre Visitador, Alessandro Valignano, outro do padre João Rodrigues, o " Tçuzu" (intérprete). O primeiro refere-se a uma missão dos padres e dignitários cristãos à cidade imperial (Miyako ,hoje Kyoto): "Na manhã seguinte, os Portugueses, revestidos do seu mais fino vestuário, formaram filas e saíram. Era um espectáculo maravilhoso ver cachos de gente que se juntava,vindos de longe e de perto,para mirar a procissão antes dela chegar a Miyako. À medida que nos aproximávamos da cidade, todas as ruas por onde assava a nossa procissão estavam cheias de gente sem conta, e todos os que observavam aquele ordeiro cortejo de inabituais e exóticas pessoas que passavam em vestidos resplandecentes estavam muito admirados e falavam uns com os outros, dizendo que cada uma delas devia ser um "bodisatva" descido dos céus...". O segundo é respigado de uma carta de João Rodrigues: "Quando Hideyoshi deixou Nagoya para atender sua mãe doente em Kyoto,todos os "daimyo" que estavam em Ngoya o acompanharam a Miyako,vestidos à moda do nosso país. Os alfaiates de Nagasaki estão todos tão ocupados que não têm um momento livre,mas mesmo assim o acompanharam a Miyako. Recentemente joias de âmbar,cordões de ouro e botões tornaram-se populares entre eles. Agrada-lhes a nossa comida,especialmente ovos de galinha e carne de vaca,que os japoneses dantes detestavam. O próprio Hideyoshi começou a gostar grandemente desses alimentos. É bastante admirável como tantas coisas dos Portugueses acabaram por ter tão boa fama entre eles". Outro missionário, Francesco Pasio, escreve em 1594: "Hideyoshi gosta muito de vestuário português, e os membros da sua corte, por emulação, vestem-se muitas vezes ao estilo português. Isto é verdade mesmo para "daimyo" não cristãos. Usam rosários de madeira exótica ao peito, penduram crucifixos no ombro ou à cintura, e às vezes até traze um lenço na mão. Alguns, especialmente dispostos à gentileza, decoraram o Pai-Nosso e a Avé-Maria, e recitam-nos enquanto andam pela rua. Não o fazem por troça dos cristãos, mas simplesmente para mostrarem a sua familiaridade com a última moda, ou porque pensam que é coisa boa e eficaz para o sucesso da sua vida quotidiana. Isso leva-os a gastar grandes somas na compra de brincos ovais com representações de Nosso Senhor e de Sua Santa Mãe". Essa Nagasaki e o cristianismo foram abafados e os portugueses definitivamente expulsos,  mesmo da ilha artificial de Deshima (de fora), à qual haviam sido confinados. Só a partir desta  -  e durante dois séculos e meio  -  holandeses (e chineses) foram autorizados a assegurar um mínimo de comércio internacional. Quando, em finais do séc. XIX, após a reabertura do Japão ao estrangeiro, um padre francês celebrou, em latim, missa em Nagasaki, um grupo de japoneses que estivera recolhido ao fundo da igreja, veio perguntar-lhe se acreditava na presença de Cristo na hóstia e na Virgem Maria sua Mãe, e se obedecia ao Papa em Roma... Perante a resposta afirmativa terão exclamado: -- Então és dos nossos! Mas a cidade em que reconheciam o regresso da religião banida há séculos já era outra e acolhia projectos industriais e de construção naval, em parceria com estrangeiros, que serviriam de pretexto ao bombardeamento atómico de 1945 naquele local". Camilo Maria continua esta carta, sem mais ironia do que a do destino cruel: "esta  - diz ele  - é muitas vezes mais amarga e cáustica do que risonha. E chega a ser feia, quando castiga inocentes, com tanta injustiça que quase perdemos a fé em Deus. Pois, todavia, Jesus disse aos seus discípulos: "Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados. Não condeneis e não sereis condenados"...  E o Marquês de Sarolea contará, como leremos, a história de Takashi Nagai, o médico radiologista, e cientista japonês, católico de Nagasaki, que sofreu e morreu dos efeitos da radiação nuclear da bomba atómica. O tempo dos homens, por vezes, não parece ser o tempo de Deus.
  
Camilo Martins de Oliveira

LONDON LETTERS

The State Opening of Parliament, 2013-14


É um momento pedagógico na vida das instituições. Os três pilares do Westminster Gove abrem em conjunto um novo ano parlamentar. ‒ La votre tradition printanière. A formalidade do ato ilumina os valores constituintes da separação dos poderes e contém um mundo de lições históricas então disponibilizadas aos protagonistas políticos que as queiram e saibam compreender. A data já está escolhida: 8 May, conforme anúncio do Leader of the House of Commons, Rt. Hon Andrew Lansley. O arranque solene de mais um ciclo nos negócios no Estado pela rainha e as duas câmaras legislativas encerra uma das mais altas cerimónias do reino, a marcar a agenda programática de Whitehall e onde Elisabeth II lê as principais linhas de orientação executiva do No 10 Downing Street. – But the government is writing HRM communication! O evento acontece este ano em dias de urgência, mesmo preocupação com as divisões na Europa, quando o chanceler George Osborne equilibra cortes na despesa orçamental com um pacote de medidas de estímulo à anémica economia e admite que o Bank of England use unconventional monetary policy instruments. Ora, por causa de não convencionalidades, este é um acontecimento rodeado de especialíssimas precauções.

O poder tem os seus sinais, ritmos e ritos. Também The House of Commons, The House of Lords e The Monarch nem sempre gozaram das atuais amistosas relações institucionais e que o diga Charles I of England, Scotland and Ireland, decapitado frente a Banqueting House na sequência de revolução de 1648. Se desde aí nenhum Head of the State entra nos Commons, The Queen’s Speech ocorre anualmente face a todos os membros das Houses of Parliament, menos um, proferido do trono nos Lords, com conteúdos elaborados pelo Cabinet e após para tal o Black Rod convocar os descendentes dos rebeldes. Singular papel cabe, aliás, ao Queen's Messenger. Não sendo recusável a entrada no parlamento a estes oficiais, uma vez por ano a porta é-lhes fechada na face para logo ser reaberta, depois de assim se censurar a tentativa régia de aprisionar cinco MPs em 1642, numa dolorosa escalada que leva ao interregno republicano do Lord Protector Oliver Cromwell.

 

 

Uma nação com memória está mais apta a aprender com as lições boas e menos boas do passado. O casal real preside ao State Opening num conjunto de atos programados e em si significantes, desde a busca dos Guy Fawkes’ explosives nas caves de Westminster pelo Queen's Body Guard até à moção onde a Upper House o despede com a Humble Address e assume a plena soberania da representação nacional. Regressa Her Majesty à sua esfera de influência e segue-se um debate de dias, culminando na votação exclusiva pelos Commons sobre The Governance of Britain. Pelo meio liberta-se o MP que ficara refém no Buckingham Palace como garantia do safe return of the monarch, pois a liberdade respeita e todos envolve. Já a rainha é transportada num State coach entre o seu povo, o qual então lhe diz do calor ou do gelo suscitados pela sua ação.

 

Elisabeth II receberá o afetuoso apoio popular durante as viagens às Houses of Parliament, previsivelmente acompanhada pelo Duke of Edinburgh e decerto com a Imperial State Crown que segue adiante sob escolta da Royal Household. Só chegada à House of Lords, coloca coroa e manto para cumprir um dever sob protocolo de 1852, na abertura do novo Palace of Westminster, reedificado após o Great Fire suscitado por imprevidência humana. A política é responsabilidade. – Well, even if facts won't cooperate, there is always the pedagogy of the error.

 

St James, 19th March

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS

de 25 a 31 de março 2013

 

«As Ideias de Eça de Queirós» (1943 e Gradiva, 2000) e «A Tertúlia Ocidental» (Gradiva, 1990) são dois exemplos muito ricos da vitalidade intelectual e crítica de António José Saraiva (1917-1993). À distância de mais de quarenta anos, nota-se uma vivacidade intuitiva única e uma extraordinária capacidade de se repensar e de lançar novas pistas e novos argumentos.

 

 

UM LUGAR FUNDAMENTAL

Vinte anos passaram depois da morte de António José Saraiva (AJS). O seu lugar na história da cultura em Portugal é fundamental, e o seu percurso representa uma certa evolução crítica do pensamento português. Desde os anos quarenta aos anos noventa, o ensaísta foi refazendo o modo de ler a realidade – desde o materialismo histórico à sua contestação, perante as lições da realidade. O Centro Nacional de Cultura e a «Raiz e Utopia», a revista que fundou na primavera de 1977, foram lugares dessa inquietação. Helena Vaz da Silva diria: «Éramos um punhado, com António José Saraiva à cabeça. Queríamos restaurar a importância do pensamento autónomo, nem enfeudado ao modelo político de Leste – que então imperava ainda, no rescaldo do verão quente de 75 – nem satisfeito com o modelo economicista de mercado que se apresentava como única alternativa àquela. Nós queríamos uma terceira via – personalista “après la lettre”, ambientalista “avant la lettre”. Não prescindíamos de pensar a sociedade, mas queríamos também melhorar a vida». Sobre AJS os exemplos poderiam ser vários, mas recordo um caso especial do seu caminho crítico. Em 1943, em «As Ideias de Eça de Queirós», falava do «fradiquismo», como um sinal misterioso. Era um sintoma português de incomodidade e de desintegração. «Fradique definiu-se a si próprio como um turista. “A egoísta preocupação do meu espírito”, escreve ele a Oliveira Martins, “consiste em me acercar duma ideia ou dum facto, deslizar suavemente para dentro, percorrê-lo miudamente, explorar-lhe o inédito, gozar todas as surpresas e emoções que ele possa dar, recolher com cuidado o ensino ou a parcela de verdade que exista nos seus refolhos – e sair, passar a outro facto ou a outra ideia, com vagar e com paz, como se percorresse uma a uma as cidades dum país de arte e luxo. Assim visitei outrora a Itália, enlevado no esplendor das cores e das formas. Temporal e espiritualmente fiquei simplesmente um turista”». Ao lado de Carlos, de Ega, de Ramires ou de Jacinto, Fradique Mendes sofria de insatisfação, procurando finalidades fictícias, como um incorrigível romântico. Eça explicitava-o. Carlos e Ega não suportavam o ambiente. Jacinto estava desgarrado perante a natureza. Ramires, «como um cavaleiro da Távola Redonda, vai procurar longe a aventura». E lembremo-nos da alegria dele quando se viu eleito deputado por Vila Clara. A África será, depois, «o espaço inteiramente livre onde o romancista podia deixar crescer sem barreiras o eu de Gonçalo». E AJS interpreta corretamente (dando-nos uma chave verosímil) o fenómeno que vemos na «Ilustre Casa», que não é o colonialismo, mas a atração pelo desconhecido. Recordem-se, aliás, «As Minas de Salomão», onde Gonçalo busca motivo de inspiração.

 

O GRANDE MISTÉRIO… 

E é muito curioso ver como o grande mistério da Torre de Ramires se começa a desvendar. Estando-se perante a obra mais incompreendida de Eça, porque a história pátria veio a introduzir fatores perturbadores na compreensão de um romance simbolista inovador, de facto o que há é um enigma geracional, que tem a ver com a decadência e a recusa do fatalismo da irrelevância. Mas há uma contradição severa. «Fradique detesta no burguês, a par da origem viloa, o apego ao dinheiro e a ideia de que o dinheiro é a única força». Daí a crítica ao nivelamento democrático, «“como o bom Tarquínio” que cortava as cabeças das papoulas mais altas». Este o paradoxo de Queiroz, que caricatura em Fradique a resistência da sociedade, encontrando um motivo quase fútil de claustrofobia. É que, bem ao contrário de Fradique (e dos seus companheiros de ambiente romanesco), a geração coimbrã de Antero e dos seus acreditava numa outra relação entre a liberdade e a igualdade, diferente da romântica. AJS, porém, considerava, nos meados de quarenta, o fradiquismo como «uma desistência de agir sobre o meio e as condições sociais». Eça deparar-se-ia com a dificuldade de combater a mediocridade, a plutocracia, a destruição dos valores não mensuráveis em dinheiro. Com que meios? E talvez essa incapacidade teria gerado o tal fradiquismo? Ou este não seria outra coisa senão a demonstração de que era preciso superar a indiferença, voltando à justiça e à igualdade? O paradoxo era iniludível. «Toda a ideologia estava para aquém. Essa ideologia consistia na evolução, que conduzira a um ponto diferente do que ele esperava, e na igualdade como norma e fim dessa evolução – que afinal conduzira à desigualdade». Eça ter-se-ia desinteressado. E o próprio «esforçado Oliveira Martins» acabaria a cultivar a «flor da arte» ou outras flores. E então AJS fala de uma evasão…

 

UM CRÍTICO INESGOTÁVEL

Os anos passaram. AJS continuou a estudar e a pensar, como inesgotável crítico, mesmo de si. E considerará no extraordinário ensaio de ideias e intuições que é «A Tertúlia Ocidental» (1990), que havia no texto de quarenta «uma súmula de clichés então reinantes sobre o escritor». «De facto o lento desenvolvimento da mentalidade portuguesa tornava ainda atual em 1945 a caricatura que Eça fez da nossa sociedade em “As Farpas”, «O Crime do Padre Amaro» e «O Primo Basílio», obras que continuavam vivas graças à extraordinária arte do escritor». Tratava-se, contudo, de uma análise parcelar – partilhada mesmo por autores insuspeitos de serem próximos de António José. O certo é que, para o ensaísta, importaria dar uma especial atenção à afirmação escrita por Eça no prefácio à obra «Azulejos» de Bernardo Pindela, que muito surpreenderia Oliveira Martins: «A arte é tudo, e tudo o mais é nada». Aqui estava o busílis. O perigo da ilusão perturbava quem ainda cria na ação e na política. Mas o certo é que Eça tinha escrito a Luís de Magalhães a alertá-lo: «Não se deixe levar pelas teorias abomináveis do amigo Oliveira Martins sobre a sinceridade da emoção». Não poderia esquecer-se a fórmula essencial «sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia» de «A Relíquia». O «manto da fantasia» era o domínio da arte, que Eça cultivava e que dominava o pensamento de Carlos Fradique e da sua Correspondência. No fundo, o paradoxo tinha como polos não apenas a ação e a indiferença, mas também entre a vontade e a arte. E AJS concluía: «Hoje as ideias de Eça de Queiroz (que não são exatamente as que lhe atribuímos em 1945) aparecem-nos principalmente como temas de arte, tal como na “Correspondência de Fradique Mendes” são pretextos para cartas». Neste percurso intelectual, vê-se bem a qualidade do pensador: persistente na exigência crítica, interrogador constante, arguto analista de ideias e de factos, perscrutador de paradoxos, entendedor da complexidade e permanentemente disponível para dar os passos necessários para vante e para trás. E não se pense que há menor coerência. Se bem virmos as coisas, à distância de mais de quarenta anos, há idêntica preocupação com o valor da interpretação do fenómeno criador.   


Guilherme d'Oliveira Martins

ENTRE SIMONE WEIL E O FADO

 

«Minha Princesa de mim:
Passar-se-ão anos, se Deus quiser  -  e já se passaram tantos!  -  sem que nem eu chegue a perceber porque sempre te chamo “minha Princesa de mim” ... Não fui eu que te fiz princesa, nem te fiz de mim. Princesa de... eras e és, de mim ficaste, por um encontro inesperado. Sem te ter procurado como Stanley a Livingstone, foi no dia em que me vi no teu olhar magoado que, no íntimo de mim, te disse: “Princess of mine, I presume...” Talvez, em teu segredo, me cantasses já, como Dalila a Sansão na ópera do meu homónimo Saint-Saens: Ah, réponds moi, réponds à ma tendresse... Talvez já não se use, mas dura muito e é bom esse encontro de ternuras que se fidelizam. Aqui, em Paris, além das reuniões que me obrigam a passar o dia no Château de la Muette, sabes bem o que faço: um salto às livrarias do "Quartier", um jantarinho no "Le Muniche" (onde conheci a Romy Schneider...) e o regresso pacato ao nosso Georges V, onde me recolho lendo banda desenhada e outros filósofos. Comprei e leio hoje, editadas pela Plon, as "Leçons de Philosophie" de Simone Weil. Sinto muito o nosso abraço ao ler este pensamento recolhido de "La Connaissance Surnaturelle" : “A fé é acreditar que Deus é amor e nada mais. Esta expressão ainda não diz tudo. A fé é crer que a realidade é amor e nada mais...”. Direi eu, na esteira de Simone, que a fé é profética: como primeira virtude teologal, motiva a esperança, e a esperança empurra-nos para o amor. Gosto muito dessa expressão "a realidade é amor e nada mais". Afinal, tudo muda e parece, parece sempre. Mas só o amor permanece. Como a verdade. E a verdade que podemos atingir não é o que julgamos compreender e afirmamos. É o que soubermos comungar com o ser íntimo e permanente de tudo, para que tudo seja, com o pouco que somos, um pouco mais belo.Outro apontamento da Simone Weil, para uma das suas lições: “La Beauté, sentimento do belo, sentimento sensível à parte carnal da alma e mesmo ao corpo, essa necessidade que é constrangimento e também obediência a Deus”. É interessante comparar, nas lições de Weil, essa ideia do amor como existente fora da duração, pois que o seu tempo é a eternidade, com a servidão do tempo. Recordo este passo de "Attente de Dieu": "Os amantes, os amigos, têm dois desejos. Um, o de se amarem tanto que entrem um no outro e sejam só um. Outro, o de se amarem tanto que, tendo entre eles metade do globo terrestre, a sua união não seja por isso diminuida. Tudo o que o homem deseja em vão cá na terra é perfeito e real em Deus". O encontro e a separação (e não será a morte a mais radical?) são, assim, inseparáveis na amizade. A comunhão é eterna. Nos seus apontamentos para uma lição sobre o tempo, Simone Weil escreve: "O tempo é a preocupação mais profunda e mais trágica dos seres humanos; pode mesmo dizer-se que é a única trágica. Todas as tragédias que possamos imaginar vêm dar a uma única tragédia: o escoamento do tempo". Mas considera que "o homem tem uma tendência invisível para a eternidade"... "Tudo o que é belo tem um carácter de eternidade. Os sentimentos puros para com os seres humanos: amor, amizade, afeto... Esses sentimentos não só se consideram como eternos, mas consideram eterno o seu objeto. Portanto,não há nada em nós que não proteste contra o curso do tempo e, todavia, tudo em nós está submetido ao tempo". Agora penso eu: que força nos faz durar na precaridade, nos mantém vivos e atentos através do processo degenerativo da nossa biologia, até ao nosso esgotamento? Será que o tempo, no qual Pascal pressentia a origem do sentimento do nada ser da existência, é já parte da eternidade? Vivendo esta vida no tempo que conhecemos, será que, afinal, existimos antes e depois dele e habitamos as cavernas de Platão?". Deixo aqui esta carta de Camilo Maria, que ia agora entrar por Sto. Agostinho. Para lembrar uma glosa que fiz a cada uma das seis estrofes de um célebre fado do Alfredo Marceneiro. Dá outro fado e é do tempo em que com fados também me entretinha (para fugir ao tempo?): Amor é água que corre,/ tudo passa, tudo morre,/ só este amor vai viver!/ Ó minha pombinha mansa,/ nosso amor é uma criança/ que ensinamos a crescer! // Amor é sonho e é encanto/que mesmo lavado em pranto/ sempre a si mesmo recorre.../ Forte, fiel, crente e brando,/ persistente mesmo quando/ tudo passa, tudo morre! // Amor é triste lamento/se,levado pelo vento,/ao longe se vai perder.../Mas não falto à minha jura:/é minha a tua ventura/e este amor vai viver! // Tudo é vário neste mundo,/mesmo o amor mais profundo/ se tenta a entrar na dança/e a deixar-se morrer.../ Mas amar-te é meu querer,/ ó minha pombinha mansa! // Foi bem efémero o desejo/de tantos amores que vejo/em danças de contradança.../Mas se  amar é desejar,/deixa-nos lá continuar:/o nosso amor é criança! // Hei-de esquecer o teu amor?/ E o teu corpo encantador,/ que a minha alma sempre quer?/ Dou-te a mão, fico contigo:/ o nosso abraço é o amigo/ que ensinámos a crescer!”. Até fadistando se filosofa. Não é necessário ir à Sorbonne. Basta um saltinho à Travessa dos Palpites. Há coisas que se entendem em todas as línguas.

Camilo Martins de Oliveira

FRANCISCO

 

“Fratelli e sorelli, buona sera.”

 

Um Papa que diz boa noite à cidade e ao mundo é um Papa que se dirige ao desassossego dos que já não sonham ou já não querem sonhar.

 

O Papa Francisco bem sabe que

 

Todos os seres são iguais, pela sua origem,
seus direitos naturais e divinos e seu objectivo final.

                                                São Francisco de Assis.

 

Fez-se um silêncio na Praça de S. Pedro, um silêncio tão mudo depois desta saudação de « Boa noite!» que só o reconheceria nos momentos em que o mundo pára e se recentra no que é importante.

 

Vi no Papa Francisco o deus que ri e joga, o deus apaixonado pela pura alegria de existir como li no livro “O Riso de Deus” de Alçada Baptista, e de imediato senti uma inequívoca vontade de agradecer-Lhe os desejos de boa noite, de noite serena e repousada, de agradecer-Lhe a luz no olhar e no sorriso, pois que por esta sabedoria tão envolvente de assim se mostrar, se luta contra as sombras que povoam o mundo dos homens e as suas aflições, nestes dias em que me faço também ao caminho.

 

Francisco!, o perfume ficou.

 

Que o pólen do teu voo saiba sempre que todas as torres que ardem são faróis.

 

E bem sei que estás em casa!

 

 

TERESA VIEIRA

LONDON LETTERS

The extraordinary Mr Ignatius Sancho, 1729-80

 

A história ainda hoje contém algo do domínio do fantástico. Observando o estado da democracia no mundo em 2013, a forma como a civilização trata as ditas minorias desfavorecidas ou mesmo os rostos nas Houses of Parliament a poucas semanas de mais um Queen’s speech a inaugurar nova sessão da legislatura, compreende-se o quanto aquele feito isolado possui de extraordinário. Mr Ignatius Sancho simplesmente exerce o seu voto livre. ‒ L’ami de Monsieur Laurence Sterne. Na qualidade de proprietário, no caso: dono de uma loja em Charles Street que vende “the best Trinidado' tobacco”, o antigo mordomo do Duke of Montagu opta pelo partido Whigh de The Right Honourable Mr Charles James Fox. – Hum. He chooses the arch-rival of Mr William Pitt the Younger! Com tal gesto inscreve o nome na peculiar história dos direitos humanos enquanto demonstra o que de excecional possui the rule of law.

 

 

Mr Sancho é o primeiro negro a votar na democracia de Westminster. Invoca a lei quando os fumos da guerra americana assombram o império e London anda surpresa com ousada circulação de um jornal ao fim-de-semana, o Sunday Monitor, na linha da British Gazette. Ele é também o primeiro autor não-branco a ser editado na ilha e pertence-lhe o rosto que está num dos mais reproduzidos quadros do Royal Albert Memorial Museum: Portrait of an African, já estampado no Royal Mail e em 1782 complementado por uma biografia escrita por Mr Joseph Jekyll. Os amigos de The Telegraph tratam-no agora como a “famous immigrant to the UK,” eventually porque nasce num barco negreiro no Atlântico entre os resgatados para o muito trabalho que havia a fazer no reino de George III e ter crescido entre os black domestics da aristocracia hanoveriana. Batizado em homenagem a Don Quijote, a vida deste escravo é feliz. Entra ao serviço dos Montagu, acede a educação que lhe possibilita escrever tanto música como poesia, encanta a família de Greenwich e a duquesa doa-lhe razoável quantia quando colocada face a convicto dilema sobre se prefere um escravo morto ou um homem livre.

 

A relação entre política e sensibilidade é controversa, tal qual, no mínimo, quanto com o senso. O discurso abolicionista proferido por William Wilberforce na House of Commons em 1789 logo é acusado de sentimentalismo e de cedência ao gosto plebeu. O realismo da época percebia o quão valiosa era a mercadoria na economia e os impostos sobre tal comércio para o Treasury. E o incontornável facto é que, após os dúbios condicionalismos de 1807, The Slavery Abolition Act apenas é aprovado em 1833. Aliás, mesmo quando determina que a escravatura está proibida no British Empire, o parlamento exceciona os territórios na posse da East India Company, bem como as ilhas de Ceylon e de Saint Helena, cuja singularidade dura até 1843. Vinte anos antes, em 1823, a Anti-Slavery Society fora fundada para promover a abolição legal do tráfico humano. Entre os membros incluem-se perplexos como Joseph Sturge, Thomas Clarkson, Henry Brougham, Mary Lloyd, Elizabeth Pease ou Anne Knight.

 

Em dias de conclave papal em que Roma convoca a reflexão sobre a condição da família humana, e não só dos direitos de sufrágio, o mais interessante do episódio eleitoral georgeano é que o shopkeeper de Westminster informa um seu amigo do voto, em carta privada, com o mesmo tom com que anota uma qualquer trivialidade de Mrs Sancho ou diz do teatro nos seus tempos livres. Ignatius S derruba séculos de preconceitos contra todos a quem se nega a dignidade humana. Dele, a apresentação que endereça ao autor de The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman: “It would be an insult on your humanity (or perhaps look like it) to apologize for the liberty I am taking.—I am one of those people whom the vulgar and illiberal call ‘Negurs’." Ah, um detalhe que ressalta de The Letters of Ignatius Sancho. O extraordinary negro pertencia à raça dos intelectuais.

 

St James, 12th March

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS


de 18 a 24 de março 2013

 

Stefan Zweig (1881-1942) escreveu no exílio, em 1942, «O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu» (Assírio e Alvim, tradução portuguesa de Gabriela Fragoso, 2005), livro fundamental para a compreensão do século XX. Aí diz-nos amargamente: «no período anterior à guerra conheci a forma e o grau mais elevados de liberdade individual e, depois, o mais baixo nível desde há centenas de anos. Fui festejado e proscrito, livre e subjugado, rico e pobre. Todos os lívidos corcéis do apocalipse tomaram de assalto a minha vida(…). Fui à força testemunha indefesa, impotente, do inimaginável retrocesso da humanidade a uma barbárie que há muito pensava esquecida, com o seu dogma consciente e pragmático de anti-humanismo»…

 

 

DEMÓNIOS ADORMECIDOS
Há dias Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo, afirmou que «os demónios da Europa estão apenas adormecidos». A longa história das guerras civis europeias, a lembrança do último século, sangrento e trágico, os riscos de conflitualidade desregulada estão bem presentes e não podem ser esquecidos. E a verdade é que há falta dessa memória nas novas gerações, que pode ter efeitos tremendos. E que riscos são esses que espreitam, perante o acastelar de nuvens negras no horizonte? São a fragmentação, os egoísmos, o tribalismo, o imediatismo, as desigualdades, a harmonização e a desregulação. Tudo isso constitui séria ameaça ao nosso futuro, a que acresce a incapacidade de encontrar valores e interesses comuns, capazes de gerar uma solidariedade de facto eficiente e preventiva. Em meados deste século (lembrava ainda Juncker) a Europa apenas terá 7 por cento da população mundial e hoje mais de 80 por cento do crescimento económico refere-se aos outros continentes que não o europeu. De facto, só a união política, a partir de uma lógica de igualdade e não de exclusão de alguns, poderá contrariar a tendência para a irrelevância europeia. E a verdade é que essa irrelevância europeia porá em causa a paz no mundo.

 

EM QUE PENSAMOS SOBRE A EUROPA?
Mas de que estamos a falar quando falamos da Europa e do mundo? Estamos a falar de uma história que, há cem anos, em 1913, se anunciava como insuscetível de gerar uma guerra duradoura e sangrenta. Uns afirmavam que as ligações das casas reinantes impediria uma conflagração destruidora, outros acreditavam que o internacionalismo proletário determinaria que os soldados, levados para a guerra pelos impérios se abraçassem, tornando impossível uma carnificina. Ninguém parecia querer ver os perigos. E o certo é que o sonho da «belle époque» terminaria na mais mortífera das tragédias. Mesmo quando a guerra se iniciou em 1914, ainda muitos comentadores insistiam em que seria tudo muito rápido e que dentro de poucas semanas os militares regressariam a suas casas sãos e salvos. O que ocorreu foi o contrário. Quatro anos decorreram com as tropas enterradas nas trincheiras, e houve milhares de mortos na guerra tradicional e na guerra química (para não falar da epidemia da pneumónica que se seguiu). E, depois do armistício de 11 de novembro de 1918, prevaleceu a humilhação dos vencidos – que gerou o ressentimento e a sede de vingança. Em 1919, houve uma espécie de interrupção através de uma paz podre, que depressa reacendeu a tragédia, numa dimensão acrescida, vinte anos passados. Foi uma nova guerra dos trinta anos, que findaria em 1945 com a bomba atómica. E, como lembrou há dias o Prof. António Barbosa de Melo, em Coimbra, Jacques Maritain, num texto profético de 1939, disse que só uma união de esforços na Europa teria evitado o desastre, desde que houvesse recusa de humilhações e submissões. O certo é que não podemos ignorar a história política – e esta aponta para a necessidade de uma lógica federalista séria (não confundível com um super-Estado), exigindo partilha de responsabilidades, subsidiariedade e respeito intransigente pela diversidade das culturas.

 

PAZ, DESENVOLVIMENTO E DIVERSIDADE
Jacques Delors tem, por isso, insistido em três objetivos fundamentais da União Europeia, hoje: a criação de um espaço de segurança e de paz, a salvaguarda do desenvolvimento sustentável e a preservação da diversidade cultural. E não tenhamos dúvidas: estas são preocupações de sobrevivência. Eis por que razão a União Europeia não pode contentar-se em ser uma construção artificial – como o foi a antiga Jugoslávia, que implodiu quando desapareceu a liderança que a susteve. Não esqueçamos que a Confederação Helvética pôde manter-se porque preservou mecanismos que conciliam a coesão e a diversidade. E quando, no discurso de Zurique, Winston Churchill falou de uma espécie de Estados Unidos da Europa, teve a premonitória noção (não compreendida por muitos ainda hoje) de que os egoísmos nacionais teriam de dar lugar a uma solidariedade essencial, com salvaguarda das diferenças. O Congresso da Haia (1948) afirmou-o com clarividência. Estava bem presente a lembrança da tragédia da guerra. Essa memória torna-se agora longínqua, quando regressa o caminho perigoso da fragmentação. Impõe-se compreender que há instâncias de mediação que têm de ser preservadas – como defendeu Denis de Rougemont. Da defesa e segurança ao meio ambiente; da resposta à crise financeira à coesão económica e social – impõe-se defender os interesses vitais comuns. Robert Schuman, Jean Monnet, Alcide De Gasperi, Konrad Adenauer, P. H. Spaak pensaram e construíram as bases de uma nova legitimidade, assente nas solidariedades de facto. E Jean Monnet nunca disse que se fosse para recomeçar pegaria na cultura. Não que a cultura não seja fundamental, mas porque aí estamos no domínio por excelência das diferenças e das complementaridades – não das convergências funcionais. Afinal, o que tem mais valor é o que não tem preço, e as diferentes identidades têm de ser preservadas, como elementos de respeito, de consideração e de abertura.

 

QUE CONDIÇÔES PARA A PAZ?
E, falando de Paz, temos de referir as soberanias limitadas a que alude a Carta das Nações Unidas, bem como a partilha de soberanias do método comunitário europeu, com a soberania originária dos Estados membros e a soberania derivada da União Europeia – e sobretudo da dupla legitimidade europeia, dos Estados e dos cidadãos. Daí a necessidade de um Senado europeu, onde todos os Estados estejam representados igualmente, do mesmo modo que a subsidiariedade tem de dar mais importância aos parlamentos nacionais e à sua representação cidadã. O «patriotismo constitucional» europeu, de que fala Habermas, corresponde, assim, à exigência da liberdade e da igualdade, da igualdade e da diferença. Os cidadãos europeus têm de participar e de se sentir representados. Há, assim, uma legitimidade e uma legitimação que têm de ser preservadas na Europa. A queda do muro de Berlim mudou o panorama mundial em 1989, Maastricht abriu caminho à moeda única, mas a estabilidade de preços prevaleceu sobre o pleno emprego, a reedição do «fim da história» foi uma ilusão momentânea, a Convenção para o Futuro da Europa e o Tratado de Lisboa ficaram aquém do desejável, apesar dos avanços formais, mas a crise financeira constituiu-se elemento decisivo para avançar ou cair. Barack Obama parece compreender o essencial ao propor uma parceria euro-atlântica, como outrora Kennedy e Monnet, até porque o sistema mundial de polaridades e perigos difusos aconselha à prevenção. Tudo está em metamorfose, na expressão de Edgar Morin, e a enfermidade financeira é altamente transmissível através de uma mutação genética com consequências na instabilidade política e na legitimidade democrática. A verdade é que não podemos esquecer Stefan Zweig e as suas memórias. Nada do que julgamos adquirido o é: democracia, liberdade, segurança, Europa… «Quando tento encontrar uma fórmula prática que descreva a época na qual cresci (diz Zweig), a época que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, penso ter encontrado a mais precisa se disser: foi o período áureo da segurança. Tudo na nossa democracia austríaca quase milenar parecia construído para durar sempre, sendo o próprio Estado o garante supremo dessa estabilidade». E, no entanto, tudo caiu, de um dia para o outro, como um baralho de cartas, perante a indiferença quase geral…

Guilherme d'Oliveira Martins

EVELYN WAUGH VEM À BAILA…


" Minha Princesa de mim:
Escrevi uma longa carta ao nosso Camilo, falando-lhe de morte, dor e serenidade. Sabes o que sinto e sei como o sentes comigo. Mas também acabei por dissertar um pouco sobre as idades da morte.Tenho vindo a ler os "Essais sur l´histoire de la mort en Occident" do Philippe Ariès, publicados em volume este ano (1975). Penso que fiz aí um esforço de objetivação, necessário ao equilíbrio emocional que nem sempre consigo controlar. Aliás, escrevi ao Camilo neste 50º aniversário da morte do G..., por receio de me comover ou, melhor, de nos comovermos muito, se contigo o abordasse. Sinto todavia que anda em mim um remorso vagabundo, um escrúpulo de lhe ter escrito sobre situações e sentimentos que nos atingem até aos limites da nossa compreensão das coisas: Portugal está em plena revolução, o Camilo está em Bruxelas, bem sei, mas deve sentir-se afetado, para além de tudo o que possa compreender e até explicar, pelo que também é, no imediato, incompreensível e incerto. Mantem-se calado, mas referiu-me, em carta recente, como lhe doeu o coração, com "saudade" da Pátria, ao escutar, na catedral de Saint Michel e Sainte Gudule, umas "lamentações" de Jeremias adaptadas e postas em música, em 1663(?), por Matthias Weckmann, em Hamburgo, depois da peste lhe ter levado a mulher: "Wie liegt die Stadt so wüste, die voll Volkes war..." A cidade solitária e abandonada lembra uma viúva: grande entre as nações, soberana entre os estados, está reduzida à servidão. É bem verdade que não se força a realização de um sonho. E que a grandeza das nações é como a que os homens se pretendem: chega sempre o dia em que tudo isso se reduz a pó. Talvez porque, afinal, já o era: "Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris..." O sonho do Estado Novo foi o do Portugal restaurado nas suas raízes históricas e na sua vocação universal e imperial. Tanto quanto sei,o sonho do "Quinto Império" não foi estranho a visionários como o jesuíta António Vieira ou o modernista Fernando Pessoa. Hoje, a "Revolução dos Cravos" pretende anunciar uma era nova de liberdade, abundância e paz... Uma nova Jerusalém, construída sobre o abandono de uma ordem política económica e social, com os seus valores, e de um império, com os seus recursos e oportunidades. Como será? Até que ponto o bom senso prevalecerá sobre a euforia, e o esforço sobre a irresponsabilidade? O projeto grandioso  -  e, acredito, com intenção patriótica  -  do Estado Novo falhou por ter parado no tempo, não ter percebido que a melhoria das condições de vida de um povo, ou o crescimento do produto de uma economia, não são calmantes de aspirações e desejos, antes são incentivos a novas ambições. Desconfiado, provinciano íntegro chocado com a "luxúria" da burguesia citadina da República Portuguesa, num período em que se fizeram grandes fortunas (na indústria,no comércio e na finança) e se acentuou a exploração de um proletariado urbano crescente  -   e uma mão de obra forçada, nas colónias  -  o professor de Coimbra, determinado, entendeu que o seu projeto de Estado Corporativo, inspirado pela procura da harmonia social preconizada pela «Rerum Novarum», passaria pela moralização e disciplinação da burguesia liberal enriquecida, e pela "domesticação" das massas operárias e dos movimentos e partidos que, a seu ver, ameaçariam a ordem e bom funcionamento do Estado e abririam a porta à entrada do totalitarismo comunista. A imposição autoritária da disciplina política e social, bem como da economia financeira do Estado, permitiu três décadas de crescimento económico, limitando todavia o exercício de certas liberdades cívicas e também da iniciativa económica (a que não foi estranho o regime do condicionamento industrial). Mas a expansão de uma pequena e média burguesia, e a melhoria das suas condições de vida e do seu estatuto social, transformaram a sociedade portuguesa e criaram uma tensão crescente entre as aspirações a um tipo de vida  -  que o cotejo (pela experiência dos emigrantes e pela televisão) com o de outros povos europeus tornava cada vez mais apetecível  -  e a ideologia e cultura do conservadorismo ambiente. A guerra nos domínios africanos foi o catalizador da derrocada: quer porque pedia sacrifícios financeiros e humanos a populações aspirantes ao bem-estar e bem-gozar a vida, quer porque o êxito de uma nova classe de africanistas (entre os quais se contavam universitários,grandes empresários e quadros mais qualificados) criava algum ressentimento entre a gente da "metópole" que pensava ser sacrificada para os proteger. O projecto grandioso de um Portugal multirracial e pluricontinental tornava-se inviável pela incapacidade do Estado em mobilizar o povo para uma acção comum e a longo prazo, sobretudo num ambiente internacional demissionário e hostil. Prevaleceu a vontade de conforto e a esperança de que a possível integração numa Europa abastada e liberal seria o destino prometido aos portugueses... Neste momento, todavia, o oportunismo da esquerda radical tenta atirar o país para a loucura de um socialismo utópico. Acredito mais no poder de oposição a esta nefasta pretensão que a pequena e média burguesia portuguesa  -  desde o norte e centro rural e conservador até ao operariado ligado ao PS  - possam mover, do que numa mobilização política da CE para "salvar" Portugal. A solidariedade europeia como acção ética e práctica está por provar na universalidade. O núcleo de nações que a formou é interesseiro, com políticos que vão ao mercado dos votos. Mais tarde, se felizmente se concretizar essa aspiração europeia de Portugal, veremos se os novos benefícios adquiridos não irão provocar novos desejos de rendimentos e consumo, tal como vem sucedendo nas nossas sociedades afluentes, materialistas e míopes. Lembro-me de te ter ouvido dizer naquele jantar cheio de cabeças pós-modernistas: ´Não cuidem da moral e depois queixem-se!´  Eu talvez seja conservador, mas tu és reacionária. Por vezes, com graça e com razão. Por isso também penso em ti, sempre, sempre, com muita ternura...". Esta carta de Camilo Maria à sua Princesa serve aqui para realçar a atenção lúcida com que o Marquês de Sarolea acompanhou o PREC,desligando-se da consideração de efemérides para se concentrar na compreensão de factores dos processos sociais e políticos que ao longo do tempo são, afinal, identificáveis pela sua permanência no coração dos homens. Pelo gosto dessa visão elevada (filosófica) dos acontecimentos, mentalidades e comportamentos ao longo da história, traduzirei outros trechos da carta que ele me escreveu dissertando sobre os "Essais" do Ariès acima referidos. Para descortinarmos sinais dos tempos na diferença das ideias da morte e seu acolhimento na "Chanson de Roland" ou no "Tristão e Isolda" e no que Evelyn Waugh ironizou no seu "The Loved One"...

Camilo Martins de Oliveira

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