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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

EÇA DE QUEIROZ EM HAVANA

 

Há meia dúzia de anos, num final de Abril como este, participei numa visita cultural a Havana, organizada pela então embaixatriz e conselheira cultural da embaixada de Cuba em Lisboa. Quando fomos tomar uma bebida no café La Columnata Egipciana, na calle Mercaderes, em pleno centro histórico da cidade, café onde Eça costumava abancar  e que é ali recordado com um grande retrato seu em uma das paredes do estabelecimento, li aos meus companheiros de viagem o texto seguinte:

José Maria d’Eça de Queiroz foi nomeado cônsul de lª classe de Portugal nas Antilhas Espanholas em 16 de Março de 1872. Parte de Lisboa no dia 9 de Novembro e, chegado a Havana, aqui toma posse do seu cargo no dia 20 de Dezembro. Tinha então 27 anos. Quinze meses depois, em 20 de Março de 1874, é transferido para o consulado em Newcastle, na Inglaterra. No meio do exercício das suas funções em Havana, em 1873, pediu licença para se ausentar, tendo passado cerca de cinco meses e meio nos Estados Unidos e no Canadá. Porquê?

Homem do norte de Portugal, pouco habituado ao calor, desde jovem com uma saúde débil, que manteve até à sua morte com 55 anos, o clima local não lhe era propício. Já em 1869, ao regressar a Portugal de uma viagem de dois meses pelo Egipto e pela Palestina, voltara com a saúde muito abalada. Alguns dos melhores gastroenterologistas portugueses do nosso tempo, baseados nas referências escritas de Eça, além de familiares e amigos, admitem que o seu mal crónica fosse uma amebíase, então uma enfermidade endémica no Egipto, na Palestina e também em Cuba.

Tal como aconteceria em Inglaterra (Newcastle e depois Bristol) e em França (Paris, onde faleceu em 1900), também em Cuba Eça de Queiroz pouco ou nada se integrou na sociedade local. Era pessoa muito reservada e, então ainda solteiro, vivia num hotel e as suas conversas limitavam-se aos hóspedes, em geral americanos, que por lá apareciam. De resto, as suas ocupações profissionais pouca folga lhe davam. Talvez por isso, no seu período cubano, além de algumas, poucas, cartas a amigos, limitou-se a escrever o conto “Singularidades de uma rapariga loira”, oferecido como brinde aos assinantes do Diário de Notícias, de Lisboa.

Porquê uma actividade consular tão intensa em Havana? Porque então chegavam a Cuba, em sucessivos desembarques, milhares de chineses, recrutados por engajadores e embarcados em Macau, território administrado por Portugal, paras trabalhar no cultivo da cana-de-açúcar, numa situação muito próxima da escravatura  e em condições infra-humanas. Vinham por contratos de oito anos mas, uma vez estes terminados, não tinham condições para regressar à China. Era, além de escravatura, uma escravatura sem fim à vista.

Através de relatórios enviados a Lisboa, Eça ia dando conta desta situação e das diligências que praticava junto das autoridades coloniais espanholas no sentido de aliviar as péssimas condições de vida impostas aos “coolies”. Algo terá conseguido porque, mais tarde, os chineses deram-lhe de presente uma bengala com castão de oiro porque, como ele próprio escreveu, lhes pôde garantir por algum tempo “mais pão e menos chicote”.

 

Certamente reflexo dos seus relatórios para Lisboa, as autoridades portuguesas viriam a, justamente quando Eça deixava Cuba, decretar a proibição de Macau ser o ponto de partida dos emigrantes chineses para as Antilhas, situação que tivera início em 1851 após a abolição da escravatura em 1845 e que era devida à falta de braços na então colónia espanhola.

Eça de Queiroz foi também testemunha da guerra de independência das Antilhas contra o domínio espanhol que decorreu entre 1868 e 1878, germe do que viria a ser mais tarde o conflito armado entre os Estados Unidos e Espanha, que levou à independência das Antilhas em 1898. Nas suas observações, porventura superficiais, Eça considerava que aquela insurreição não tinha  em Cuba importância local, respaldo popular, nem força bastante; não obstante, julgava tratar-se de um movimento imparável, porque a sua força estava em Madrid, nos cubanos lá residentes e nos abolicionistas espanhóis; estava em Nova Iorque, na emigração cubana; estava na opinião pública dos Estados Unidos e estava na influência de certos jornais norte-americanos que iam propalando a ideia de uma intervenção do seu país. Mas, curiosamente, observava Eça, estava também nos cubanos ricos que, embora aparentemente dedicados a  Espanha, apoiavam secretamente os revoltosos.

Apesar da sua curta permanência em Havana, a influência de Eça de Queiroz nos escritores cubanos do início do século XX foi grande. Ángel Lázaro, na revista Carteles, de Havana, escreveu que “Eça de Queiroz foi um escritor que influiu muito beneficamente na literatura e no jornalismo cubanos da nossa época”. Ídolo da geração que em 1917 e 1918 trabalhava na revista Cuba Contemporánea, Eça era muito lido em Cuba, a tal ponto que nenhum prosador  estrangeiro tenha sido tão admirado e seguido pelos seus homens de letras, fascinados pela sua ironia e pala sua arte de escrever. Enfim, Eça era aqui, em Cuba, tão familiar que a numerosa colónia galega de Havana lhe chamava “o nosso Eça”. E, nos dias de hoje, para os cubanos cultos, Eça de Queiroz continua a ser uma referência e um exemplo como grande mestre do realismo que foi.

 

Mário Quartin Graça 

A VIDA DOS LIVROS

de 29 de abril a 5 de maio 2013


Um dos edifícios emblemáticos do Conselho da UE em Bruxelas invoca o humanista belga Justus Lipsius (1547-1606), muito conhecido e influente no Portugal do seu tempo. Recordamo-lo através da obra de Martim de Albuquerque, «Um Percurso da Construção Ideológica do Estado – a recepção lipsiana em Portugal: estoicismo e prudência política» (Quetzal, 2002).

Os Quatro Filósofos, de P.P. Rubens, 1615 (da esquerda para a direita: o autor e seu irmão, Justo Lípsio e Jan Wowerius – como o busto de Séneca).

ENTRE AUTORIDADE E A OBEDIÊNCIA

Como afirma Martim de Albuquerque, o pensamento de Justo Lípsio balança entre dois polos: a autoridade e a obediência, «como condições de eficácia e estabilidade do poder e a proteção dos governados». A liberdade política resultaria dessa complementaridade e desse entendimento. Muitas vezes, a relativa ambiguidade das ideias do mestre de Louvaina decorre dessa relação complexa. «A construção lipsiana assentou (…) sobre uma ambivalência ideológica, que desenvolveu e explorou a partir da sua cultura antiga, absolutamente ímpar». Tácito e Séneca são dois autores cruciais para o pensamento de Lípsio – em relação ao primeiro no tocante ao conceito de poder e ao seu exercício, e para o segundo quanto à obediência e à defesa dos súbditos. É a partir de Tácito que analisa o conceito de prudência, através do qual pretende ligar a moral e a política, a ética e a utilidade, os valores e a eficácia. Lípsio fica, deste modo, a meio caminho entre a prudência como virtude moral e a prudência como razão de Estado. Assim, «a prudência reconduz-se a uma eleição de meios para agir virtuosamente; é a arte de viver que sabe distinguir o que convém e é útil. Ordena as coisas presentes, prevê as futuras, recorda as passadas». Percebe-se que, assim, a história ocupe um lugar-charneira – articulando o uso, a experiência e a memória das coisas. Se a experiência pode ser mais segura, a memória torna-se indispensável e até preferível, por mais ampla e compreensiva. Impõe-se, porém, para J. Lípsio compreender a tensão entre a virtude e a conveniência. O sentido político obrigaria a fazer concessões ao disfarce: «como o vinho não perde a natureza quando temperado com a água, também a prudência não deixa de o ser se nela existirem algumas gotas de dissimulação ou disfarce». Uma pequena quantidade para um bom fim seria tolerável. Como Plutarco disse em «Lisandro»: onde se não chega a pele do leão é preciso colmatar com a da raposa. Maquiavel vem necessariamente à baila, estando em causa a difícil relação entre a ética e o realismo. E Dante, no inferno, recorre à metáfora da raposa e do leão, para representar o dolo e a nobreza.

 

DA IMPERFEIÇÃO HUMANA

Justo Lípsio considerava a imperfeição humana e é esse entendimento que o leva a caldear a ética e o interesse. A Tácito vai buscar a prudência, de Séneca retira a constância (tema da sua célebre reflexão publicada em 1584), como perseverança baseada na paciência. O Estado necessita da obediência dos súbditos, o que obriga a prepará-los para uma vida reta e justa. E aí encontramos o estoico: «o estoicismo no puro sentido do estoicismo antigo, do estoicismo senequiano (pergunta Martim de Albuquerque), ou no da compatibilização dos seus ensinamentos com a religião cristã? A pergunta fica no ar, pois se houve quem qualificasse Lípsio como cristão estoico (caso de Quevedo) não faltou quem – tal o juízo de Torrentius – o considerasse mais estoico do que cristão». Lípsio apresenta-nos o modelo de um homem racional, senhor de si, responsável. Politicamente, a personalidade de J. Lípsio é a um tempo ambígua e preocupada com o equilíbrio e a justiça. Daí a sua oscilação entre a Reforma e a Contra-Reforma. Angustia-o a fragmentação religiosa e sente as repercussões negativas da ameaça à estabilidade social. Deseja que a religião seja «vinculum et firmamentum reipublicae». Por isso mesmo, é visto com desconfiança do lado católico e do lado protestante, mas hoje é apontado como um exemplo da diversidade, da dúvida e da Europa como encruzilhada em construção permanente. Disse, por isso, que as «Políticas («Politicorum Libri», 1589) eram feitas com frases soltas de outros autores, juntas ou encaixadas, segundo certa ordem de pensamento, um fio condutor. Afinal, tudo era seu e nada era. Michel de Montaigne viu nessa obra uma tessitura urdida com arte, com sentenças, aforismos, florilégios, citações e espelhos de príncipes… Contudo, nestas reflexões do que se trata é da génese do Estado moderno, com a sua complexidade, como mediador e microcosmos capaz de se fechar e abrir.

 

INTERROGAÇÕES & PERPLEXIDADES

A vida ativa de Justo Lípsio coincide em parte com a união pessoal entre Portugal e Espanha e com um período especialmente agitado da história europeia, que culminou na Guerra dos Trinta Anos. O autor elenca um conjunto muito significativo de autores portugueses que atestam a receção do pensamento de Lípsio em Portugal – desde D. Lopo Soares, bispo de Portalegre até Soares de Silva, passando por Nuno de Mendoça, futuro conde do Vale de Reis, Luís Mendes de Vasconcelos, Frei Serafim de Freitas, João Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia, António de Sousa de Macedo e D. Francisco Manuel de Melo. A leitura desses testemunhos é muito elucidativa, sentindo-se que apesar de todas as barreiras, havia uma circulação de ideias, que correspondia ao inevitável doce comércio em que a economia e a cultura portuguesa se inseriam. Em Nuno de Mendoça, notamos a amizade do próprio pensador belga, que o considerava moeda do melhor cunho, e um apreciável grupo português de discípulos. Lípsio foi compreensivelmente, desde cedo, objeto de atividade censória, apesar das suas diligências e prudências… Os meios em que J. Lípsio se move e os problemas com que se defronta obrigam a que os seus textos se tornem suspeitos… Frei Serafim de Freitas, no seu «De Justo Imperio Lusitanorum Asiatico» invoca Justo Lípsio, ora positivamente, quanto à prioridade das navegações portuguesas, ora negativamente pela alusão mítica da Atlântida na Antiguidade… D. Francisco Manuel de Melo põe num dos apólogos dialogais, o «Hospital das Letras», Lípsio em conversa com os companheiros: Quevedo, Bocalino e consigo mesmo, colocando-o a dizer: «é bem verdade que a história se quer vestida e revestida de juízos, sentenças, secretos, malícias e discrições, porque enfim uma história nua, sobre desonesta, é desaproveitada». Velasco de Gouveia invoca os argumentos do autor sobre a legitimidade. António de Sousa de Macedo cita o pensador belga sobre o papel das religiões na sociedade. Mas deste repositório fica, sem dúvidas, o Estado moderno a dar os primeiros passos e a sofrer a contradição entre a autoridade e a obediência… Eis a questão.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

ONDE SE FALA DE PIERRE DE BRANTÔME

 

"Regressado à Europa, lá fui às exéquias da tia Ana Adelaide Eugénia, que teimou em esconder os seus últimos anos no Périgord, onde também decidiu que aí deveria ser dado à terra o seu corpo mortal. Casta, penso eu, terá morrido. Mas ficará por elucidar a razão do tão forte desejo de terminar seus dias naquele casarão às portas de Saint Crépin, bem vizinho de Brantôme que deu nome ao autor de tantos discursos sobre as damas, incluindo os "Discours sur l´amour des dames vieilles et come aucunes l´ayment autant que les jeunes"... Passei pelo túmulo de Pierre de Bourdeilles, Sieur de Brantôme, que pouco terá combatido em armas, mas muito deixou escrito, um tal como o seu coevo e quase vizinho Michel de Montaigne. Traduzo-te, Princesa tão augusta do meu coração, umas linhas do epitáfio que lhe deixou uma sobrinha: "Fez a sua primeira aprendizagem das armas sob esse grande Capitão Francisco de Lorena, Duque de Guyze (…).e em nada degenerou da virtude dos seus antepassados, mas se achou em muitas guerras e combates arriscados tanto em França como em países estrangeiros: mesmo o Rei de Portugal Dom Sebastião, honrando o seu valor (…) o fez cavaleiro da sua Ordem chamada o Hábito de Christo...". Foi este Brantôme um notável contador de memórias, ao ponto de me ser difícil, lendo-as, duvidar da sua veracidade. Fidalgo da câmara dos reis Carlos IX e Henrique III de França, foi quando o último dos Valois lhe negou provimento no cargo régio que ocupava, no Périgord, depois da morte de seu irmão mais velho, para o atribuir ao seu sobrinho filho deste, que Pierre de Bourdeilles atira ao Sena a simbólica chave de ouro de camareiro do rei, e se retira para as suas terras, onde passará trinta anos a escrever. Os vários livros que constituem o seu "Recueil des Dames", vão desde crónicas da vida e obras de rainhas de França, Navarra e Espanha, até memórias e contos exemplares de senhoras de todas as idades, viúvas, casadas e solteiras, a maioria das quais se moveram no tempo e na atmosfera erótica e frívola da corte dos Valois. Brantôme é um observador amoral e impenitente, condescendente consigo e com todas elas. Essa nossa juventude hodierna  -  que tanto se gaba e compraz na "sua" revolução sexual dos anos 60  -  não faz ideia de que, nessa viragem do século XVI para o XVII, um fidalgo francês escrevia, com agrado geral e larga aceitação, sobre: "les dames qui font l´amour et leurs maris cocus"; "le sujet qui compte plus en amour, ou le toucher, ou la vue, ou la parole; la beauté de la belle jambe et la vertu qu´elle a; les femmes mariées, les veuves et les filles, à savoir desquelles les unes sont plus chaudes à l´amour que les autres"; "qu´il ne faut jamais parler mal des dames et la conséquence qui en vient"; " que les belles et honnêtes dames aiment les vaillants hommes, et les braves hommes aiment les dames courageuses"... Saboreie-se o conto do que lhe disse, na corte de Espanha, uma senhora idosa, "muito honesta e bela", sobre o amor carnal na terceira idade: "Quanto à picada da carne, não deve pensar-se que só pela morte dela nos curamos, mesmo que pareça que à idade ela repugne. Até porque toda a mulher bela se ama extremamente, e amando-se não o faz por ela mas para outrem; e em nada se parece com Narciso que, por tolo que era, amado de si e de si mesmo enamorado, aborrecia todos os demais amores".  E o nosso Brantôme comenta o dito, num parágrafo que serviria de guião a um ousado filme do nosso tempo: "A mulher bela não é de modo algum assim (narcísica) .Tal como ouvi contar, de uma belíssima Dama que, amando-se e agradando-se muito, muitas vezes só e consigo, no seu leito se punha toda nua, e em todas as posturas se contemplava, se admirava e mirava lascivamente, maldizendo-se por se ter votado a um só que não era digno de corpo tão belo, entendendo que seu marido em nada era igual a ela, e que finalmente se acendeu tanto com tais contemplações e visões, que disse adeus à sua castidade e ao seu voto matrimonial, e fez amor e servidor novo. " Vivia-se numa época em que, pelo contrário, o Grão Duque de Florença, ao casar-se com Cristina de Lorena, manifestou o seu espanto por tê-la achado virgem! Mas se Pierre de Bourdeilles condescendia com os apetites naturais da carne feminina, também contraditoriamente sentia com veneradora devoção os exemplos opostos. Sintomático é este passo em que nos fala da infanta Dona Maria de Portugal que, diz-me o Alberto, o grande Camões tanto admirou e, talvez, desesperadamente tivesse amado ("Num tão alto lugar,de tanto preço,/ este meu pensamento posto vejo,/ que desfalece nele inda o desejo,/ vendo quanto por mim o desmereço."): "Vi a Infanta de Portugal... ...morreu menina e virgem aos sessenta anos de idade ou mais. Não por falta de grandeza,porque era grande em tudo; nem por falta de bens... ...nem por falta de dons da natureza,porque a vi em Lisboa,com quarenta e cinco anos de idade, uma muito bela e agradável menina, de boa graça e belo aspecto, doce agradável, e que bem merecia um marido a ela igual em tudo. Cortez mesmo para connosco, Franceses. Posso dizê-lo por ter falado com ela muitas vezes e em privado. O falecido Senhor grande Prior de Lorena... ...quando esteve, por uns dias, em Lisboa, visitou-a e viu-a todos os dias. Ela recebeu-o muito cortêsmente e teve gosto na sua companhia e deu-lhe muitos belos presentes... ...que ele amava por amor da Dama, da qual se tinha enamorado. E creio que ela não o amava menos, e de boa vontade teria por ele rompido o seu nó virginal; mas só pelo casamento,entenda-se,porque era uma muito sage e virtuosa Princesa". Assim o Senhor de Brantôme  -  que sempre se inclinaria para o gabanço das proezas do "seu" Francisco de Lorena  -  aqui o deu por derrotado pela virtude de uma Senhora... Tal como eu, Camilo Maria, venero a tua e talvez lhe obedeça.". E assim acaba esta carta em duas partes, pela qual o Marquês de Sarolea, antes do Périgord, me levou ao "Chez Pierre" e ao cemitério de Aoyma ali defronte. A onde, anos mais tarde, tantas vezes fui acolhido, mais do que como cliente, como amigo. Para deleite do meu paladar irreverente e rebuscado, o Pierre Prigent cozinhava bochechas de atum, pés de porco e molejo de vitela. Em Tokyo! Retribuía-lhe conforme podia, levando lá guitarristas e fadistas de passagem para jantares de epopeia, que mantinham o restaurante  - cheio de japoneses conviventes e deliciados com o nosso lusitano exotismo  -  aberto até de madrugada!

Camilo Martins de Oliveira

UM BRILHO VERDE

É condição

Uma outra realidade!

Uma sementeira que progrida para a luz

Para uma luz cada vez mais límpida e depurada e exímia

Como a teima que emerge para a vida

Como vontade antiga

Impedindo

Que nunca mais as palavras agora delgadas

Sejam pronunciadas por mudez de rogos múltiplos

E essa realidade, esse tronco novo

Protegido pelo calor da nova casa que o acolhe

Recuperará cada solo raso de alma

Cada sinal de bosque

Cada noite boreal

Cada cisne real ameaçado

Cada auréola cor de terra mesmo que não à mão de um alcance

E exausto o nosso mundo

Mas crente no deus cujas armas são flores de alento

Cúmplices de cada um

Retomará

Mesmo agora

A satisfação que faz subir a seiva como uma planta por onde

A felicidade

 

Mesmo agora

Mesmo agora

 

 

TERESA VIEIRA

25 Abril – 2013

Sec.XXI

OS 120 ANOS DE ALMADA: A DIMENSÃO DO ESPETÁCULO E A TRANSCENDENCIA DRAMATÚRGICA

 

Comemoramos os 120 anos do nascimento de Almada Negreiros, e a mais nítida e primordial referência, para além da memória de tantos anos de convívio, amizade e colaboração criativa com o Centro Nacional de Cultura, será precisamente a dimensão de “espetáculo”, no melhor sentido do termo, da sua imensa obra global, na pintura, na literatura, no teatro, na intervenção cívica e filosófica: e precisamente, numa convergência óbvia de género, a dramaturgia que a compõe e sintetiza.

 

Almada escreveu, dirigiu e fez representar uma larga dezena de textos vocacionados para o teatro: alguns deles inéditos. Mas toda a sua obra, repita-se, comporta um registo de espetáculo, na medida em que se lhe aplicam noções que teorizou e que surgem diretamente ligadas ao espetáculo teatral em si - mas não só.

 

Veja-se, por exemplo, o que escreveu acerca da sua própria peça “Pierrot e Arlequim”(1924):

 

“Nenhuma arte tem de falar para todos a não ser o teatro. Grandes e pequenos, instruídos e analfabetos, sábios e ignorantes, no teatro todos são Um e, por conseguinte, só o que interessa o Único pode ser agradável a todos”.

 

Ora, pensamos um pouco no conjunto da imensa produção artística de Almada e desde logo encontramos este sentido de unidade. E encontramo-lo na convergência da obra geral. Desde logo um exemplo que, desde 1958, é diariamente contemplado por gerações de portugueses que o vêem, mesmo que não reparem.

 

No pórtico da Faculdade de Letras de Lisboa, Gil Vicente é evocado pela similitude de duas personagens que nos surgem iguais. E são eles o Todo o Mundo e o Ninguém, cujo extraordinário diálogo parece apontar para o contraste entre as respetivas posições existenciais. Mas para Almada, eles são idênticos, têm a mesma postura cénica, são personagens paralelas, sobrepostas: e na verdade, em termos da humanidade, não é “todo o mundo” igual a “ninguém” na raiz profunda dessa mesma humanidade?  

 

É que, “no teatro (como na vida) todos são Um”…

 

E não é outro o princípio filosófico e dramatúrgico da peça principal de Almada, o “Deseja-se Mulher” (1928) que o Centro Nacional de Cultura encenou, sob a direcção de Fernando Amado e com a colaboração ativa, permanente e nem sempre cómoda do próprio Almada… pois não é o lema desta peça, o “1+1=1”, o que Almada criou e sistematicamente utilizou, expressa ou implicitamente, na vastíssima criação artística - seja no teatro, na literatura, nas artes plásticas?

 

Voltaremos a referir o significado da dramaturgia e da obra de Almada, através da análise das peças conhecidas e da investigação que se prepara relativamente a textos inéditos.

 

Mas não é demais lembrar que o Centro Nacional de Cultura esteve ligado à revelação e à concretização, em cena, tantas e tantas vezes, do teatro de Almada: e é em cena que o teatro deve estar - daí que, tornamos a dizer e não é demais dizê-lo, “no teatro todos são Um” .

 


Duarte Ivo Cruz

LONDON LETTERS

William Shakespeare, 1564-1616

 

A coincidência do dia é distintiva. Master William Shakespeare of New Place parte no mesmo dia em que chegara ao mundo: 23rd April. A ida e a vinda têm lugar em Stratford-Upon-Avon, em Warwickshire, nas West Midlands, embora larga parcela da existência seja vivida em London. Se sobre o nascimento escreve que o choro inicial teve razão de ser, porque chegado a “imenso cenário de dementes”, já à partida deixa três folhas legais com o testamento. ‒ Un document le plus intéressant. Os National Archives revisitaram agora o famoso documento assinado por Wllm Shackspeare em vésperas da passagem à eternidade. – Where there is a will, there is a way! Aqui entrega a alma “into the hands of god my Creator” e destina o melhor dos bens em “lawful English Money” às filhas, Susanna Hall e Judith, e a “second-best bed” à esposa, Anie Hathaway. E nisto haverá o seu quê de filosófico, por certo.


Surrounded by geniuses, let us talk about a genuinely one
. Escrever sobre Master William S tem sempre algo de ousado. O homem é o bardo da pátria, aquele cujas personagens evidenciam traços com os quais lemos a diária envolvente ‒ o cético Príncipe Hamlet, o espirituoso Lord Falstaff, o malévolo Iago ou o nobre Brutus... Apaixonado observador, ele é um radical espelho da natureza. Daí o interesse que o lado prosaico da sua vida ainda suscita, aquém dos escritos. Os arquivos nacionais comemoram este ano a vida do autor com a divulgação, transcrição e atualização do testamentum datado do “Annoque Domini 1616”, redigido um mês antes do falecimento e depositado no Prerrogative Court, aonde “ours pleasant Willy” simplesmente se consagra aos seus.

 

 

A entrada no olimpo patriótico é um morosíssimo processo. Após a morte, o escritor e ator da Lord Chamberlain’s Men Company desaparece de cena durante quase um século. Muitos continuam a lê-lo, com John Milton ou John Dryden a admirá-lo, apesar de François-Marie Arouet, aka Voltaire por anagrama do nome de um admirador da “English parliamentary sovereignty”, comparar Hamlet ao trabalho de um selvagem embriagado. Já von Goethe estabelece a aura de génio literário e Samuel Coleridge ou Karl Schlegel revivificam a imaginação shakespeareana enquanto ecoam o seu mágico encanto, senso e humor. No nosso tempo, alheio à school of ressentment, que a há, Mr Harold Bloom considera que com as obras de Master Will entramos num microcosmos tão característico quanto assistíssemos à invention of the Human. Nem menos ou diferente, em elogio sem paralelo, dada a influência moral alcançado pelo autor. Aliás, conjunto e exceção dizem do grau de admiração na bardolatry.

 

 

O UK despediu-se da Baroness Margaret Thatcher em funeral procession com altas honras militares e The Union Flag, HRM The Queen e o Duke Philip of Edinburgh presentes na cerimónia de St Paul’s Cathedral, distinção só antes recebida em 1965 por Sir Winston Churchill. A saudação à symbolic Person celebra a sua vida e trabalho, dedicação e singular dignidade, começando o decurso de santificação em Westminster que só o tempo selará. Em November 12, 1940, na House of Commons, face a plenário dividido e em circunstâncias muitíssimo especiais, afirma WSC: “The only guide to man is his conscience; the only shield to his memory is the rectitude and sincerity of his actions. It is very imprudent to walk through life without this shield, because we are so often mocked by the failure of our hopes and the upsetting of our calculations; but with this shield, however the fates may play, we march always in the ranks of honor”. – The history goes.

 

St James, 23rd April

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS

de 22 a 28 de abril 2013

 

 

O início da edição da "Obra Completa" do Padre António Vieira (1608-1697), sob a direção de José Eduardo Franco e de Pedro Calafate (Círculo de Leitores), é um acontecimento da maior importância e ficará como um dos marcos fundamentais na vida da cultura de língua portuguesa. "Cartas Diplomáticas" e "A Chave dos Profetas" (I e II) iniciam a chegada junto do público desta obra magna, apoiado pelo Centro Nacional de Cultura, entre muitas instituições de Portugal e do Brasil.

 
Desenho de Baptistão, Estado de S. Paulo.

 


VIEIRA EM TEMPO DE CRISE

A obra de Vieira é rica de temas e de propostas. Como conselheiro de D. João IV, encontramos alvitres audaciosos e oportunos, que surpreendem pela inteligência e pela agudeza da argumentação. O tema dos cristãos-novos singulariza-se pela centralidade e pela coragem. Oiçamos o pregador, falando a D. João: «O reino de Portugal, senhor, não melhorando do estado em que de presente o vemos, tem muito duvidosa a sua conservação, porque, ou a consideremos fundada no poder próprio, ou no alheio, um e outro estão prometendo pouca firmeza». A proposta é de julho de 1643, dando conta das fragilidades de Portugal, saído da restauração da independência. O «miserável estado» do reino exigia medidas urgentes, designadamente receber mercadores (grande parte dos quais de origem judaica) que andavam por diversas partes da Europa. Decorria a guerra dos trinta anos (1618-1648), fundando-se a «conservação de Portugal» num poder próprio, as conquistas, e num poder alheio, «a diversão que fazem a Castela as armas de França», contudo se imediatamente essa situação permitia alguma segurança, a verdade é que «por muitas e mui eficazes razões se deve considerar pouco durável». Se era verdade que as «armas francesas» estavam vitoriosas, poderiam vir a dar lugar às castelhanas. Importaria, assim, prevenir uma eventual alteração no sentido dos ventos dominantes. Sendo certo que a história confirmaria essa tendência, a verdade é que, como inteligente estratega, o Padre António Vieira alertava o rei para a necessidade de se preparar e prevenir. «A nação francesa, naturalmente, é inconstante, inquieta, amiga de novidades, e fácil de corromper-se por dinheiro». Além de que a guerra não poderia durar muito, pelos custos que envolvia, pelos tributos a que obrigava aos povos e pelo cansaço que suscitava. A paz estaria perto, mas Castela, mesmo que perdesse, ficaria com as mãos livres para limitar as pretensões portuguesas. Demais a mais uma França vitoriosa poderia sempre, também ela, forçar o seu domínio.

 

AS CONDICIONANTES ECONÓMICAS

Deveria perguntar-se: «se o dinheiro de três anos não foi bastante para fazer as prevenções necessárias para a guerra; que tesouros tem Portugal para se socorrer e armar de repente quando seja acometido, se todas as rendas e tributos, sendo os maiores que pode lucrar o reino apenas bastam para sustentar as guarnições das nossas fronteiras com meia paga aos soldados?». Vieira oferece-nos uma premonitória análise económica: «porque as confiscações e cunho da moeda foram acidentes, que se não podem repetir; as rendas e as comendas estão empenhadas para muitos dias e anos; os juros, as tenças e os salários não se pagam com um levantamento da moeda, que desce o preço às mercadorias, e faz que os estrangeiros tragam prata em vez de drogas, com que quebram muito os direitos das alfândegas; as terras das fronteiras, infestadas do inimigo deixam de se cultivar por muitas léguas; as lavouras e as artes, levando-lhes os oficiais e lavradores para a guerra, se diminuem; o que tudo se vai consumindo e atenuando as forças do reino com passos tão largos, que em poucos anos não poderão os homens manter as vidas, quanto mais pagar os tributos, e sustentar as despesas da guerra». E as conquistas? «De três anos a esta parte tem vossa majestade (lembra Vieira) mandado à Índia uma nau de guerra, e nove galeões, e em retorno de todo este cabedal, temos visto três caravelas, servindo-nos aquela conquista, pela gente, navios e dinheiro, que nos leva, de muito estorvo, e maior gasto que proveito». A posição da Índia claudicava e havia ameaças como em Pernambuco, Angola, Maranhão e S. Tomé. Só o Brasil sustentava o comércio e as alfândegas. Tudo somado, a posição portuguesa resultava incerta e frágil. A conservação do reino era, assim, «muito duvidosa e arriscada». E a importância que nos era atribuída pela Europa vinha sendo reduzida. Não se via em Lisboa algum embaixador de um príncipe da Europa, o que demonstrava o menosprezo a que o nosso poder era votado. Importaria, pois, recorrer aos mercadores portugueses, «homens de grandíssimos cabedais», espalhados pela Europa. Haveria que atraí-los, com que «o reino se fará poderosíssimo, e crescerão os direitos das alfândegas de maneira que eles bastem a sustentar os gastos da guerra, sem tributos nem opressão dos povos, com que cessarão clamores e descontentamentos».

 

MOBILIZAR OS CRISTÃOS NOVOS

Haveria, pois, que mobilizar os cristãos-novos e os seus recursos, até para que os cristãos-velhos se não deixassem iludir pelo poder de Castela. E importaria levantar companhias como as dos holandeses para explorar o comércio, porque por falta deste «se reduziu a grandeza e opulência de Portugal ao miserável estado em que vossa majestade o achou, e a restauração do comércio é o caminho mais pronto de a restituir ao antigo». E seria necessário ir ao encontro de onde estavam os recursos indispensáveis à recuperação do reino. Por outro lado, «é também conforme à sentença comum de todos os teólogos, os quais assentam que para defesa e conservação dos reinos podem os príncipes confederar-se, e chamar e unir a si qualquer género de infiéis». E, invocando diversos exemplos dos reinos cristãos, lembra Vieira que o próprio Papa consente nos seus domínios sinagogas públicas de judeus, que professam a lei de Moisés, não havendo razões para não admitir entre nós «homens cristãos batizados, de que só pode haver suspeita que o não serão verdadeiros». Com argumentos do seu tempo, lembra ainda que a Europa está cheia de heresias e que tal não impede a criação de riqueza por esses súbditos. «…E o judaísmo não passa de homens da mesma nação: pois se a necessidade da guerra nos obriga a admitir entre nós heresias mais contagiosas, porque não admitiremos os que são menos arriscados?». Afinal, se temos connosco os que não têm os recurso indispensáveis, não podemos dificultar os que «hão de ser de tão grande proveito e conveniência». Os danos do seu afastamento são evidentes e definitivamente Vieira deixa-nos o juízo lógico inabalável: «se o dinheiro dos homens da nação está sustentando as armas dos hereges, para que semeiem e estendam as seitas de Lutero e Calvino pelo mundo não é maior serviço de Deus e da Igreja que sirva este mesmo dinheiro às armas de rei mais católico, para propagar e dilatar pelo mundo a lei e a fé de Cristo?». E eis a invocação profética: «porque dizem que ao rei encoberto virão ajudar os filhos de Jacob, e que por meio deste socorro tornarão ao conhecimento da verdade de Cristo, a quem reconhecerão e adorarão por Deus». Se D. Manuel e de algum modo D. João III favoreceram os «homens de nação», e D. Sebastião revogou esse entendimento, o certo é que «nem o favor com que os trataram os dois primeiros lhes retardou o curso das suas felicidades, nem o rigor com que procedeu contra eles o terceiro bastou a melhorar os sucessos da sua e nossa fortuna»… Afinal o que a crise exigia era uma resposta justa.


Guilherme d'Oliveira Martins

NO IMPERIAL EM TOKYO…

 

"Estou em Tokyo, apenas de passagem para o aeroporto onde embarcarei a caminho de Londres. Por Anchorage, no Alaska, pela rota polar que rodeia o interdito espaço aéreo soviético. De Londres até Paris e ao Périgord, logo verei. Por enquanto, interrompo com pena esta estadia no Japão, pelas razões de família que já conhecerás. E esta carta já levará selo francês: ir-te-ei escrevendo... Alojo-me aqui no Imperial, não tanto pela proximidade do comércio e animação de Ginza, nem do palácio imperial e daquela parada exterior em que Hirohito passava tropas em revista. Mas sensível à memória do antigo Imperial Hotel que o Frank Lloyd Wright desenhou e aqui se constuiu... Ainda lhe visitei os vestígios  -  que respiram ares do seu génio  -  na Meijimura, lá para as bandas de Nagoya. Outro tempo, outro ambiente, uma lembrança... e aqueles tijolos compactos,como os da estação central de Tokyo, que tanto me dizem da nossa antiga Flandres, a que hoje chamam Belgica (como nos tempos dos nossos Duques de Borgonha) e Países Baixos... O Imperial do "Franck" (à americana) tinha a solidez do barro e a sobriedade clara dos espaços da nossa memória. Sentirias, minha Princesa de mim, o que (abstratamente?) penso. Fui jantar  "Chez Pierre", ali mesmo defronte do cemitério de Aoyama. Gosto do lugar, da comida e do "chef": Pierre Prigent, bretão e padeiro de formação. Veio para o Japão em 1970, para o pavilhão francês na Exposição Universal de Osaka, e por cá ficou. Creio que se aperfeiçoou em pastelaria com o "grande" André Lecomte e assim se famliarizou com os segredos culinários da gastronomia francesa. Tal como o seu mestre  -  e  um colega, o André Pachon, este vindo de Carcassonne  -  casou-se com uma japonesa e lançou-se por conta própria no negócio de restauração francesa no Império do Sol Nascente. Diferenciando,todavia,a sua proposta: procurou oferecer gastronomia de qualidade, mas caracteristicamente familiar, amiga. Nas minhas estadias em Tokyo, só ali me sinto bem, acompanhado, quando almoço ou janto sozinho. O Pierre "pertence" a uma família da Bretanha (o apelido é raro e torna-os pertinentes) com olimpíadas próprias: de quatro em quatro anos, reúnem-se, algures em França, muitos dos cinco mil portadores do apelido comum, para uma missa (em catedral histórica) e um arraial. É bonito e explica muita coisa. Inclusive esta de um jovem padeiro bretão que atravessa meio mundo, constitui família com uma japonesa, tem os filhos mestiços, bilingues e participantes em verdades antigas de ambos os lados, felizes e lindos, como só a comunhão dos seres humanos pode ser. No seu restaurante, que decorou com madeiras de móveis e portas de carvalho, herdadas de pais e avós da Bretanha  -  e de cerâmicas tão autênticamente castiças que falam ao universo  - o Pierre está atento a tudo, sempre de bata branca, com os seus "discípulos" japoneses a esmerarem-se em cozinhados e no serviço à francesa, com a verdade enternecedora do brio japonês. Há universos assim, em que as fronteiras não são, nem nunca poderão ser, as de quaisquer preconceitos. Mas, se surgirem, serão apenas as da diferença entre o querer ou não querer bem-fazer... Perguntou-me hoje se, na mudança do toldo que lhe protege a varanda do restaurante, deveria mudar ou acrescentar algo ao banal "Chez Pierre". Disse-lhe que o único acrescento verdadeiro e plausível seria, já que estamos em frente de um cemitério,com tão promissoras iguarias : "Aux Clés du Paradis..." Poucas vezes terei dito, na vida, coisa tão acertada. O cemitério de Aoyama é um parque frondoso, com alamedas longas de cerejeiras do Japão, das tais que genialmente florescem na Primavera, mas nunca dão fruto... (no caso de um cemitério, até geneticamente se compreenderá). O fruto delas é a flor. E é a alegria das centenas de festejantes das "sakura" (cerejeiras em flor), os "castiços" que ali, anualmente, estendem, sob as árvores, os seus tapetes, e dispõem e saboreiam petiscos sazonais e festivos,"saké" e cerveja. Tal celebração realiza-se pela flor da primavera, pela alegria da vida e por esse segredo que nos habita e se chama esperança. Não necessariamente num cemitério, o mais das vezes, até, noutros lugares. Mas aqui, neste local que é sacramento de repouso eterno, a esperança e a alegria da festa ganham, para o ocidental escatológico que sou, um sentido novo.
Vê tu bem, Princesa de mim, como os outros, por misterioso modo, nos ensinam, tantas vezes, as "nossas" verdades...". Conheci, quase duas décadas depois de Camilo Maria, o inolvidável Pierre Prigent e o seu "Chez". Mais de uma década depois da minha partida do Japão, ainda nos escrevemos todos os anos, e vou sabendo dos casamentos e vocações da prole Prigent nipo-francesa, da filha que prestou serviço na Índia com Teresa de Calcutá e depois se casou e vive católica na muçulmana Malásia, com mais" prigentinhos" que o avô vai acarinhando. Não os verei, mas vejo-os todos os dias. Parafraseando Pascal: o coração tem olhos que a vista desconhece.
  
Camilo Martins de Oliveira

Encontro na rua de nenhures

 

toco o rasto do
 

caminho que nunca percorri


Troco-me por ti


Abro o livro dos anos,


passo o rol


A entrada é saída


Só um dia, já morto, disseram a Colombo


que a Índia dele não era verdadeira

                   

Ouvindo Schubert grito: Rai’s me partam!

e não é que não partem    dizem: Espera!

 

no ar de haraquíri?

Respondes tu que esperas


aqui me tens tardio

          

Aqui na toca


onde mais nada está


que ar e fogo


sinto já


terra na boca.


ó minha mulher sonhada,/


(…)Não sou base nem sustento.


Apenas breve regalo.

                                                            

Devolve-me esse pássaro/


e poisa nesse ramo


que o meu olhar alcança.

calado num peito que agradece

 

tudo me é coração  


meu amor meu amor

 


Escolhi esta fotografia do meu grande amigo Pedro Tamen pois é assim que julgo que o vi aquando da escolha de terras para construirmos, cada um, a sua casa, na amada Arrábida.
 

Escolhi todas estas esplêndidas palavras que acima exponho, retiradas do seu último livro de poesia “Rua de Nenhures”, já que assim me entendi mais perto da pedra ou dos joelhos por ela marcados, digo, por uma nesga que a escrita do Pedro me há-de permitir.
 

Escolhi este modo para penetrar na extremamente apurada escrita do Pedro e, por papoilas – não por crer nas tréguas do tempo - assegurar o dizer do quanto a perene vida é rainha, e que se esse fosse o pior mal, nenhum afiado bronze a sua casa voltaria em busca de notícias

para doer.

 


TERESA VIEIRA

30 de Abril – sec.XXI

  • A chancela da D. Quixote está de parabéns uma vez mais e neste 2013.

EFEITO DE UM SAKÉ QUENTE…

 

Camilo Maria esteve no Japão, em duas estadias relativamente longas, mais de dez anos antes de mim. Apanhou um Japão esforçado, a tentar redimir-se do que simultâneamente sentia como o erro e a culpa da guerra que, ao gosto napoleónico (?), as elites militares da era Showa tinham insistido em chamar "pan-asiática". E, mais ainda, um povo que,  por educação e tradição, valorizava a comunhão com a sua natureza e os seus antepassados. E, por esse sentimento profundo de pertença e dívida (que é motivo de dádiva), conseguia encher a consciência de brio, isto é, da vontade de bem fazer  -  ou fazer bem  -  o que nos é confiado. Reside, neste fundo solidário da alma, a receita secreta, única, de tantos êxitos do Japão. E, no apagamento possível (?) dessa consciência do dever solidário (que é dádiva), na eventualidade de se trocar a comunhão com o nosso sentido de nós e  dos outros (que é a responsabilidade), de se "substituir o valor pelo preço", talvez se venha a desenhar a perda dos frutos, pois não há frutos sem árvore. O Japão da era Meiji (1867-1912) é uma força nova no concerto das nações, sai de dois séculos e meio de relações cortadas com o mundo para um deslumbramento na emulação das potências ocidentais... E consegue, logo em 1905, ser a primeira potência asiática a vencer, em guerra, uma potência europeia (o Império Russo). "Moderniza-se", mas rasga a alma. Entre os que insistem na necessidade de ser tão "desenvolvidos" e fortes como os "maiores" (ocidentais) e proceder em tudo como eles (inclusive em pretenções colonizadoras de outros povos), e os que defendem a preservação da alma e do modo nipónico, está o drama de muitos intelectuais e populares que,intuindo a duração e a demora, procuram um equilíbrio naquele momento impossível. A "modernização" comanda a industrialização e urbanização de territórios e pessoas, o enquadramento social e ético tradicional vai perder-se...  Finalmente, goradas as expectativas "liberais" da era Taisho (1912-1923), chegará a hora fatídica em que forças reunidas num "complexo militaro-industrial" (que os EUA voltariam a reconhecer, no seu próprio caso, depois da tal guerra), poderão desencadear a barbárie que sabemos. Como Camilo Maria observou, numa das suas cartas à Princesa de..., é comovente e perturbante essa contradição (conflito?) da alma japonesa, entre o "giri" e o "ninjo"… A novela de "O médico e o monstro", de Stevenson, é pós-iluminista e romântica, coloca tudo no âmbito dos sentimentos pessoais, como se a consciência fosse um universo individualista. A consciência japonesa, como aqui falamos dela, está inicialmente dividida, não entre o mal e o bem  - como nós moralmente os separamos  -  mas entre mim e a minha circunstância (terá o grande Ortega sonhado com isto? Ele me perdoe!). Por convenção tradicional, isto é, por uma sistematização da educação que, na oscilação das épocas e dos regimes  -  e imponentemente desde o século XVII  -  sempre procurou normalizar as gentes, as classes e comportamentos delas, o "giri" foi condicionante. Camilo Maria definiu-o  - e bem  - como sendo "a obrigação de se comportar, para com os seus círculos familiares e sociais, de acordo com as normas de reciprocidade, fidelidade e obediência, seja qual for o sacrifício exigido"... Para mim, é admirável, mais do que a obrigação do "giri", o milagre da sobrevivência do "ninjo" que tão bem se expressa nas obras dos artífices e artesãos japoneses. Volto a Camilo Maria: "A arte, o "design" japonês, minha Princesa de mim, distinguem-se por uma intuição da assimetria. Na natureza, tudo é como é, e a arte não tem de a violentar. O olhar do artista contempla, não embeleza. Tenta perceber, no gesto com que desenha ou molda, a essência mutante e permanente das coisas. O Verbo que criou o mundo não é lógico. O logos é inicial, criador e sempre amante. A arte é um caminho de conversão. A obra de arte é o fruto da transformação do amador na cousa amada. Nós, os ocidentais, não resistimos à tentação edénica da pressa em explicar tudo. Por isso reduzimos tudo à nossa imagem e semelhança.  Tenho visitado museus e exposições... Mas nada me dá o gosto, sentido na alma, tão livre e enorme, como o de olhar para uma peça rudimentar de cerâmica, bambu ou pano, na tenda de um artesão de Kyoto. Esses homens e mulheres acolhem-me sem pressa nem objetivo, apenas com um sorriso tão discreto que só pode estar na alma, e comigo contemplam o misterioso encontro de mãos humanas com a natureza. E é no reconhecimento desse encontro que reside a alegria e o valor sem preço daquela obra. Só um silêncio comungado pode celebrar esse entendimento íntimo. Assim também te sinto no silêncio infinitamente secreto do coração, quando à noite rezo e dou graças a Deus por sentir tão bem tantas coisas que não sei explicar. Aconchego-me-te neste mistério". Numa folha solta, talvez perdida de um maço de apontamentos sobre o gosto japonês, encontrei este manuscrito do Marquês de Sarolea,onde se fala de um célebre restaurante tradicional de Kyoto, o Waranji-ya, onde também já tive o prazer de um delicado jantar: "Se me pusesse agora a escrever sobre estética japonesa,parece-me que anteporia às minhas considerações um trecho do "Iniei Raisan" (o elogio da sombra) do Junichiro Tanizaki. Ocorreu-me há pouco, enquanto saboreava, em cerâmica do século XVIII, o meu jantar no Waranji-ya. Reza assim: "Quando substituiram a lâmpada eléctrica em forma de lanterna por uma candeia ainda mais escura, e pude então observar as travessas e as tijelas à luz vacilante da chama,descobri, nos reflexos das lacas,profundos e espessos como os de um lago,um encanto novo e todo diferente. E soube que se os nossos antepassados tinham descoberto esse unto que tem por nome "laca" e se tinham deixado enfeitiçar pelas cores e o lustro dos utensílios dele revestidos,isso não fora fruto do acaso..." Inspirado, pedi também que, na minha sala, substituíssem a lanterna elétrica pela candeia antiga. E ganhei uma experiência estética nova, até na contemplação da gravura ao gosto chinês,do vaso de barro e do arranjo de flores dispostos no "toko no ma". E lembrei-me do Georges de la Tour, do Menino que alumia, com uma vela segura por sua mão, o S. José carpineiro que prepara o madeiro da crucifixão... Será, quiçá, efeito do "saké" quente que me ajuda a abrir memórias e, por vezes, as confunde. Sorrio, pensando nessa verdade que Bernanos tão bem disse em "La Joie": Tudo é graça!"
  
Camilo Martins de Oliveira

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