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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NO IMPERIAL EM TOKYO…

 

"Estou em Tokyo, apenas de passagem para o aeroporto onde embarcarei a caminho de Londres. Por Anchorage, no Alaska, pela rota polar que rodeia o interdito espaço aéreo soviético. De Londres até Paris e ao Périgord, logo verei. Por enquanto, interrompo com pena esta estadia no Japão, pelas razões de família que já conhecerás. E esta carta já levará selo francês: ir-te-ei escrevendo... Alojo-me aqui no Imperial, não tanto pela proximidade do comércio e animação de Ginza, nem do palácio imperial e daquela parada exterior em que Hirohito passava tropas em revista. Mas sensível à memória do antigo Imperial Hotel que o Frank Lloyd Wright desenhou e aqui se constuiu... Ainda lhe visitei os vestígios  -  que respiram ares do seu génio  -  na Meijimura, lá para as bandas de Nagoya. Outro tempo, outro ambiente, uma lembrança... e aqueles tijolos compactos,como os da estação central de Tokyo, que tanto me dizem da nossa antiga Flandres, a que hoje chamam Belgica (como nos tempos dos nossos Duques de Borgonha) e Países Baixos... O Imperial do "Franck" (à americana) tinha a solidez do barro e a sobriedade clara dos espaços da nossa memória. Sentirias, minha Princesa de mim, o que (abstratamente?) penso. Fui jantar  "Chez Pierre", ali mesmo defronte do cemitério de Aoyama. Gosto do lugar, da comida e do "chef": Pierre Prigent, bretão e padeiro de formação. Veio para o Japão em 1970, para o pavilhão francês na Exposição Universal de Osaka, e por cá ficou. Creio que se aperfeiçoou em pastelaria com o "grande" André Lecomte e assim se famliarizou com os segredos culinários da gastronomia francesa. Tal como o seu mestre  -  e  um colega, o André Pachon, este vindo de Carcassonne  -  casou-se com uma japonesa e lançou-se por conta própria no negócio de restauração francesa no Império do Sol Nascente. Diferenciando,todavia,a sua proposta: procurou oferecer gastronomia de qualidade, mas caracteristicamente familiar, amiga. Nas minhas estadias em Tokyo, só ali me sinto bem, acompanhado, quando almoço ou janto sozinho. O Pierre "pertence" a uma família da Bretanha (o apelido é raro e torna-os pertinentes) com olimpíadas próprias: de quatro em quatro anos, reúnem-se, algures em França, muitos dos cinco mil portadores do apelido comum, para uma missa (em catedral histórica) e um arraial. É bonito e explica muita coisa. Inclusive esta de um jovem padeiro bretão que atravessa meio mundo, constitui família com uma japonesa, tem os filhos mestiços, bilingues e participantes em verdades antigas de ambos os lados, felizes e lindos, como só a comunhão dos seres humanos pode ser. No seu restaurante, que decorou com madeiras de móveis e portas de carvalho, herdadas de pais e avós da Bretanha  -  e de cerâmicas tão autênticamente castiças que falam ao universo  - o Pierre está atento a tudo, sempre de bata branca, com os seus "discípulos" japoneses a esmerarem-se em cozinhados e no serviço à francesa, com a verdade enternecedora do brio japonês. Há universos assim, em que as fronteiras não são, nem nunca poderão ser, as de quaisquer preconceitos. Mas, se surgirem, serão apenas as da diferença entre o querer ou não querer bem-fazer... Perguntou-me hoje se, na mudança do toldo que lhe protege a varanda do restaurante, deveria mudar ou acrescentar algo ao banal "Chez Pierre". Disse-lhe que o único acrescento verdadeiro e plausível seria, já que estamos em frente de um cemitério,com tão promissoras iguarias : "Aux Clés du Paradis..." Poucas vezes terei dito, na vida, coisa tão acertada. O cemitério de Aoyama é um parque frondoso, com alamedas longas de cerejeiras do Japão, das tais que genialmente florescem na Primavera, mas nunca dão fruto... (no caso de um cemitério, até geneticamente se compreenderá). O fruto delas é a flor. E é a alegria das centenas de festejantes das "sakura" (cerejeiras em flor), os "castiços" que ali, anualmente, estendem, sob as árvores, os seus tapetes, e dispõem e saboreiam petiscos sazonais e festivos,"saké" e cerveja. Tal celebração realiza-se pela flor da primavera, pela alegria da vida e por esse segredo que nos habita e se chama esperança. Não necessariamente num cemitério, o mais das vezes, até, noutros lugares. Mas aqui, neste local que é sacramento de repouso eterno, a esperança e a alegria da festa ganham, para o ocidental escatológico que sou, um sentido novo.
Vê tu bem, Princesa de mim, como os outros, por misterioso modo, nos ensinam, tantas vezes, as "nossas" verdades...". Conheci, quase duas décadas depois de Camilo Maria, o inolvidável Pierre Prigent e o seu "Chez". Mais de uma década depois da minha partida do Japão, ainda nos escrevemos todos os anos, e vou sabendo dos casamentos e vocações da prole Prigent nipo-francesa, da filha que prestou serviço na Índia com Teresa de Calcutá e depois se casou e vive católica na muçulmana Malásia, com mais" prigentinhos" que o avô vai acarinhando. Não os verei, mas vejo-os todos os dias. Parafraseando Pascal: o coração tem olhos que a vista desconhece.
  
Camilo Martins de Oliveira