OS 120 ANOS DE ALMADA: A DIMENSÃO DO ESPETÁCULO E A TRANSCENDENCIA DRAMATÚRGICA
Comemoramos os 120 anos do nascimento de Almada Negreiros, e a mais nítida e primordial referência, para além da memória de tantos anos de convívio, amizade e colaboração criativa com o Centro Nacional de Cultura, será precisamente a dimensão de “espetáculo”, no melhor sentido do termo, da sua imensa obra global, na pintura, na literatura, no teatro, na intervenção cívica e filosófica: e precisamente, numa convergência óbvia de género, a dramaturgia que a compõe e sintetiza.
Almada escreveu, dirigiu e fez representar uma larga dezena de textos vocacionados para o teatro: alguns deles inéditos. Mas toda a sua obra, repita-se, comporta um registo de espetáculo, na medida em que se lhe aplicam noções que teorizou e que surgem diretamente ligadas ao espetáculo teatral em si - mas não só.
Veja-se, por exemplo, o que escreveu acerca da sua própria peça “Pierrot e Arlequim”(1924):
“Nenhuma arte tem de falar para todos a não ser o teatro. Grandes e pequenos, instruídos e analfabetos, sábios e ignorantes, no teatro todos são Um e, por conseguinte, só o que interessa o Único pode ser agradável a todos”.
Ora, pensamos um pouco no conjunto da imensa produção artística de Almada e desde logo encontramos este sentido de unidade. E encontramo-lo na convergência da obra geral. Desde logo um exemplo que, desde 1958, é diariamente contemplado por gerações de portugueses que o vêem, mesmo que não reparem.
No pórtico da Faculdade de Letras de Lisboa, Gil Vicente é evocado pela similitude de duas personagens que nos surgem iguais. E são eles o Todo o Mundo e o Ninguém, cujo extraordinário diálogo parece apontar para o contraste entre as respetivas posições existenciais. Mas para Almada, eles são idênticos, têm a mesma postura cénica, são personagens paralelas, sobrepostas: e na verdade, em termos da humanidade, não é “todo o mundo” igual a “ninguém” na raiz profunda dessa mesma humanidade?
É que, “no teatro (como na vida) todos são Um”…
E não é outro o princípio filosófico e dramatúrgico da peça principal de Almada, o “Deseja-se Mulher” (1928) que o Centro Nacional de Cultura encenou, sob a direcção de Fernando Amado e com a colaboração ativa, permanente e nem sempre cómoda do próprio Almada… pois não é o lema desta peça, o “1+1=1”, o que Almada criou e sistematicamente utilizou, expressa ou implicitamente, na vastíssima criação artística - seja no teatro, na literatura, nas artes plásticas?
Voltaremos a referir o significado da dramaturgia e da obra de Almada, através da análise das peças conhecidas e da investigação que se prepara relativamente a textos inéditos.
Mas não é demais lembrar que o Centro Nacional de Cultura esteve ligado à revelação e à concretização, em cena, tantas e tantas vezes, do teatro de Almada: e é em cena que o teatro deve estar - daí que, tornamos a dizer e não é demais dizê-lo, “no teatro todos são Um” .
Duarte Ivo Cruz