Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Recebi esta tarde, de um grupo de senhoras japonesas cujo clube cultural me convidara a falar sobre "Olhares trocados: como Japão e Europa se entrevêem na arte", um "kakemono" com a caligrafia de "ichi go ichi é", máxima que exprime o espírito da cerimóia do chá e posso analiticamente traduzir por: "um encontro é um tesouro que não se repete"... Sensibilizou-me a intenção e o gesto; comove-me o pensamento. Das vezes que,namorados, nos encontrámos e demos a mão, e os olhos de cada um foram a luz dos olhos do outro, não saberei distinguir uma só, nem posso dizer que foram todas iguais, ou alguma diferente. Pela simples razão de que todas foram e são únicas. A contemplação do amor é descobrir sempre o mesmo como pela primeira vez,com a mesma novidade da emoção. Assim também é o olhar do japonês para a natureza ou o objecto ou obra de arte, mesmo artesanal. Para nós, a verdade das coisas é aquela que se descobre, que "se traz ao de cima", que se manifesta. E esta atitude vala tanto para o naturalista que reproduz,como para o impressionista, o cubista ou o abstraccionista: em todas essas escolas ou correntes se afirma uma visão própria, ou se pretende transmitir realidades tal como nos apoderámos delas. Para o japonês, o que se procura, o que conta e determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. O olhar, ou o escutar - assistir a um concerto no Japão é perceber como o silêncio é participante - torna-se assim, mais do que um exercício dos sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar da alma que traz o objecto de arte - que é visível mas cheio de invisível - para o convívio quotidiano. Se compararmos o recheio e decoração dos palácios e casas grandes onde nascemos - e a sua acumulação de objectos exibicionistas de abundância material - com o despojamento dos interiores coevos das residências e retiros da nobreza japonesa, logo nos aperceberemos dessa diferença essencial. Nas salas japonesas, a prova de bom gosto não amontoa. Afasta e singulariza cada objecto de estimação - um "kakemono" pendurado (seja uma caligrafia, um "sumi é"), uma pintura, ou um arranjo de flores, ou uma peça de cerâmica ou de metal - de modo a poder ser contemplado e convidar ao diálogo invisível... Este sentimento da decência e da superioridade espiritual do que é simples, está patente na arquitectura e arrumo interior dos santuários, templos e mosteiros, como nas casas e pavilhões de repouso da nobreza, tenham estes a grandeza de Katsura ou sejam mais pequenos,como o Gingakuji e o Kinkakuji. E apraz-me pensar que tal contenção material terá moderado a arrogância e os excessos decorativos de construções afirmativas do poder político e militar e suas linhagens,como nesses magníficos monumentos do "barroco" Tokugawa que são o Nijo jo,aqui em Kyoto,e os túmulos dos "shogun" dessa família, em Nikko, a noroeste de Tokyo. Lembrei-me de ti, por interposta referência, durante a minha charla desta tarde. Sabes bem que não precso de cábulas para que me sorrias à janela do coração.. Mas ocorreu-me,vinda de fora dos tópicos que tinha alinhado, a memória de Mondrian (o Piet Mondrian, nosso conterrâneo, compatriota de teus pais pelo passaporte, já que somos família de muitas fronteiras). Recordas-te da exposição que, juntos, visitámos em Paris, e de eu te ter dito que aqueles Mondrian me evocavam a geometria das plantas da arquitectura japonesa,ou ainda o desenho de portas e janelas - e dos quebra-luz das lanternas portáteis - as madeiras que dividem o espaço e seguram a translucidez do papel de arroz? Na altura em que falava, "vi" primeiro a divisão do interior da minha caixa de "ô bentô", donde fui petiscando o almoço de ontem, no "shinkansen" que me trouxe de Tokyo, onde tinha aterrado. Os compartimentos dessa "merendeira" são lineares e desiguais,contendo cada um a sua dose de alimentos diferentes,pela substância e pelo paladar. O seu consumo não obedece a qualquer ordem pré-estabelecida, vamos comendo, daqui e dali, conforme "conversamos" com eles. Na sua apresentação, há todavia a proposta de oferta, em quantidades que são, para nós, amostras, de produtos conformes à estação da natureza. E a intenção de nos conformar a ela, tornando-os mais apetecíveis pelo prazer cromático que, à vista, cada petisco em seu arrumo nos dá. Em toda a sua "sofisticação" (diríamos nós), o "bentô" é comida popular, quase sempre almoço do funcionário, do empregado, do trabalhador comum. Mas tem, para lá da saúde dietética e da economia, uma dimensão espiritual, na medida do seu usufruto estético e da sua referência à mãe-natureza (nós diríamos Criação...). Mondrian,que tanto se preocupou com a relação da arte à vida, perceberia o que quero dizer. O mesmíssimo princípio estético se aplica ao "kaiseki ryiori" com que fui gratificado ao jantar num "ryotei", restaurante fino e caríssimo. Aqui, não só a variedade dos quatorze serviços obedece também à sazonabilidade dos produtos,mas,nas mesinhas baixas dispostas à nossa frente,as louças e lacas em que se nos oferecem as iguarias apresentam formas e desenhos alusivos à estação do ano... É já mais copiosa a refeição,mas "quem pode" não é obrigado a comer tudo... Vai-se bebendo "saké", acompanhando os pratos de "sashimi", "tempura" e os outros, cozidos, avinagrados ou mais adocicados, grelhados, etc... Mas,no fim da refeição,com a "miso shiru" (sopa de soja fermentada) e os "pickles", vem a malga de arroz. Esta,em princípio é para ser totalmente ingerida. Todos a comem, como quem cumpre. Tal como na nossa tradição cristã, não se deita fora o pão dos pobres." Quando, décadas mais tarde, na senda de Camilo Maria, me calhou andar pelo Japão, encontrei muito do mesmo. E também a coexistência de tudo isso com um Japão electrónico e "pop". E pensei muito nessa coexistência, que não se anuncia só nas caixas do "bentô". Está no cerne de uma visão do mundo, com a aceitação de si e do seu contraditório, ou simplesmente da diferença,como se explica até pela convivência do shintoísmo com o budismo desde o século VII. Talvez também se possa dizer que, para o japonês, um momento de distração desse princípio de bondade universal, ou seja, a afirmação "erga omnes" da diferença pretendida, pode conduzir à barbárie. Sentimos, penso eu, de quando em vez, ou dessa vez quando estamos às avessas com a circunstância,um desejo fúnebre de embirrar com o mundo. Daí, mal nenhum ao mundo virá, pois tão pouco podemos que nem para aguentar a birra - ou o burro amarrado - temos força... A menos que a gente se dê conta de que a birra, afinal, nossa não é, mas cegueira, sim, da circunstância. Como quando, esta noite, me assusto ao imaginar, depois de tanto comentário mais televisivo do que silenciosamente sábio, que estamos todos a ser arrastados para um barranco de cegos...
O peso e a importância que os mass media desempenham nas sociedades actuais, levou-me a reler “A Sociedade Transparente”, livro de Vattimo, publicado entre nós pela Relógio D’Água em 1992.
Parece-me importante ter consciência que, nomeadamente, o destino das experiências estéticas pode estar em causa pela excessiva fábula da reprodução e conhecimento dos acontecimentos em tempos reais. Nunca o ser será pensado como fundamento, se for dado a conhecer apenas como acontecimento, desautorizado pelo destino dos tempos que só tendem a revelar uma direcção.
Como afirmava Heidegger, o ser não é, mas acontece, ainda que, tal como interpreto, o carácter de ornamento do não-ser e do não-mundo geram um caos, e, neste caos habita a esperança de emancipação de cada um, como se a liberdade e o desejo de diferente futuro, não fossem mais do que viver sob o tal caos organizado de direcção única que nos propõem e vão impondo.
Na verdade, a estética das ideias ou a sua experiência, são processos que permitem reconhecer essencialidades, ao contrário da inautenticidade, verdadeiro agente contaminador do extermínio do pensar.
Confesso que encontro cada vez menos uma atitude interessada quando nos referimos à experiência estética, na qual reside também o mito, aquele que está inelutavelmente ligado ao próprio juízo estético e que tanto constitui vanguarda no grau de saborear uma leitura, um filme, uma música, um olhar.
Acresce que também somos invadidos pelo sentimento de que o mundo inteiro é um palco, o que até perturba a experiência estética de Kant subordinada à contemplação.
Desconheço até que ponto se está seguro que somos nós que entramos no mundo do sentir estético e não ele que se nos proporciona.
Com Habermas, a ideia geral de uma esfera pública, coloca esta, numa estreita ligação ao mecanismo da informação e da comunicação social, definidos por sistemas de recolhas e transmissões de informação na construção do mundo como imagem.
Vattimo, neste seu livro, apela ao cuidado para que se não permita que os mass media sejam um dos instrumentos que modelam a nossa consciência, já que a sociedade não deve assentar a sua chance final, desligitimada da estabilidade estrutural que constitui a sua própria capacidade critica.
O homem não é um turista no jardim da história. O homem é parte da complexa «sociedade transparente» e a profecia de Nietzsche é uma campainha: o mundo verdadeiro transforma-se em fábula.
Pede-se apenas uma energia translúcida, real, ancorada nos encontros dos quais o homem tem sede, uma sede por toda a vida.
Remetemos esta análise para diversas citações de extrema relevância. Personalidades distintas, obras e pensamento diversificado, os autores das citações coincidem na identificação de uma presença iniciática e de uma influência clara de Almada Negreiros na dramaturgia e no pensamento teórico de Fernando Amado. Aliás, é bem conhecida a amizade que os uniu e a colaboração que mantiveram, em especial na produção teatral.
Assim, em 1963, António Dias de Magalhães remete para Almada a influência futurista na primeira peça de Fernando Amado: “A sua atividade de escritor começou pelos 17 anos. O encontro do movimento do Orfeu, particularmente de Almada Negreiros, inspirou-lhe uma peça futurista, O Homem Metal ”. (In Enciclopédia Verbo, vol. I).
E Luis Francisco Rebello confirma: “tendo acompanhado, ainda muito novo, o movimento do Orpheu, e sob a influência mais direta de Almada Negreiros, F. Amado inicia aos 17 anos a sua obra teatral com uma peça futurista, - O Homem Meta l - que não chegaria a ser publicada nem representada” (in “Dicionário do Teatro Português” s. d.), A análise é retomada ao longo da vasta obra historiográfica de Rebello e designadamente em “Três Espelhos - Uma Visão Panorâmica do Teatro Português do Liberalismo ã Ditadura 1820-1926” (ed. INCM 2010)
Eu próprio, em 1972, aludo à peça, remetendo para António Dias de Magalhães: “a primeira peça escrita por Fernando Amado teria sido O Homem Metal, de expressa influencia futurista, recebida através de Almada Negreiros e do movimento do Orpheu, o que nos permite situar a respetiva data antes dos anos 20”, (in “Fernando Amado Homem de Teatro” ed. Cadernos Gil Vicente 1972). E em 2002 referi novamente a peça perdida, realçando a plausível influência do “futurismo” de Almada: “O teatro de Fernando Amado, ao menos na sua dimensão mais inovadora, está ligado à lição, ao modelo à amizade pessoal e cumplicidade artística de Almada” (in “História do Teatro Português” ed. Verbo 2001).
Finalmente: Augusto Sobral cita a peça precisamente em função do seu plausível cariz iniciático e modernista, frisando entretanto o contraste com a restante dramaturgia do autor: “ Claro que Fernando Amado não é um futurista apesar da sua tentativa de escrita de uma peça desaparecida - O Homem Metal - cujo título tem uma ressonância evidente, da admiração pelos homens do Orfeu e da amizade que conservou ao longo da vida com Almada Negreiros, de quem tinha uma escassa diferença de sete anos” (in “Fernando Amado - Peças de Teatro” INCM 2002).
O que seria “O Homem Metal”? E onde e como se manifestou, nessa peça iniciática, a influência de Almada Negreiros?
Perguntas sem resposta. Mas a análise, que iremos fazendo, da dramaturgia de ambos os autores e as referências recíprocas, testemunho de uma amizade e de uma colaboração criadora que duraria até à morte (Amado morre em 1968, Almada sobreviveu dois anos) permitem-nos imaginar o sopro de modernidade desta peça perdida.
E acrescente-se que o teatro de Fernando Amado, mesmo em peças de menor ambição renovadora, foi e é sempre de uma exemplar modernidade.
E o mesmo, obviamente se diga e dirá do teatro de Almada Negreiros…
Liverpool, London e Derry-Londonderry acolhem por estas semanas as celebrações do 70.º aniversário da batalha do Atlântico. Uma suave visão estratégica sobre o seapower na World War II indica-o como variável crítica no desfecho do duelo civilizacional ocorrido no globo entre 1939 e 45. É até a vitória no oceano multidimensional a ditar a primazia das democracias face à ameaça do totalitarismo. ‒ Rappelez-vous Monsieur Churchill en référençant un traité 1373 entre le Portugal et la Grande-Bretagne! Esta é a mais longa e difusa campanha militar de toda a guerra, onde pontua a Operation Alacrity curto-circuitando a neutralidade do governo de Lisbon. – Well, the Allies protect their convoys in the black hole of the Azores Gap! As operações envolvem algo como mil comboios marítimos, alvo para ataques dos famosos U-boats lançados por Herr Adolph Hitler sob the wolf pack tactic: descoberto um barco com a Jack flag, uma rádio-mensagem divulga a localização e inicia-se a sua caça. Afundam cerca de 5,000 navios. Mais de 30 mil britânicos perdem a vida entre o pessoal da marinha mercante, cujas escoltas destroem 757 submarinos alemães.
"The Battle of the Atlantic was the only thing that ever frightened me". Com esta declaração condensa Mr Winston Churchill a sensibilidade da guerrilha naval em torno das ilhas. O então First Lord of Admiralty, e próximo Prime Minister, concebe o convoy system para proteger as rotas comerciais logo no início das hostilidades, no Outono de 1939. O passo é premonitório do pesadelo que se segue. Com a queda de Paris na Primavera, apenas os britânicos impedem o pleno controlo nazi da Western Europe. Fracassado o blitz e a invasão terrestre, Herr Hitler reedita o bloqueio continental napoleónico. A sobrevivência da Great Britain depende agora, em boa medida, dos abastecimentos externos de tropas, armas, alimentos e medicamentos, para dizer o essencial que vem do Canada e dos USA. Os recontros no Atlântico são mortíferos.
A luta entre os U-boats dominantes na Bay of Biscay e os Corvettes ou os Frigates sedeados em Liverpool acaba, porém, definida por obscuros criptoanalistas reunidos na Station X de Bletchley Park, no Buckinghamshire. Num telegrama enviado ao US President Franklin Roosevelt em June 1945, o Premier assinala que “it has been a long and relentless struggle; a struggle demanding not only the utmost courage, daring and endurance, but also the highest scientific and technical skill”. Assim reconhece Downing Street o magnífico trabalho de cientistas como Mr Alan Turing, para descodificar a Enigma machine e rastrear as comunicações dos lobos solitários nazis.
O regresso nestes dias do terror às ruas de London prova a importância dos limites democráticos. Uma tragédia em South East London revelou dois heróis acidentais: um, o soldado Lee Rigby, 25, morto a golpes sem defesa ou razão, em nome de um Deus insondado por quem o assalta; outra, Ingrid Loyau-Kennett, 47, a passar de autocarro no local, tomando-o como um acidente a carecer de auxílio e cujo olhar confronta um dos homicidas. O diálogo então travado pela senhora ilumina quanto baste: o assassino ensanguentado e armado diz-lhe querer ali iniciar uma guerra. No mês dos 50 anos de Eichmann in Jerusalem: A report on the banality of evil, livro de Hannah Arendt sobre os monstros gerados pelos extremismos, da suástica ou crescente, saúde-se a humanidade em Woolwich. ‒ Humm! Murder is not banal! Likewise bureaucratic cruelty.
Se estivesse entre nós, António Quadros (1923-1993) faria noventa anos no próximo dia 14 de Julho. Em boa hora, a Fundação que tem o seu nome, organizou na Universidade Católica um importante seminário dedicado à sua obra e ao legado que nos deixou. E se desejamos manter presente a sua memória, devemos regressar à sua escrita e à sua reflexão – lembrando-nos, por todos, de «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas. Velho amigo do Centro Nacional de Cultura, não o esquecemos.
ESPÍRITO ABERTO E LIVRE
António Quadros era um espírito aberto e livre que conhecia muito bem as raízes da cultura portuguesa e que pensou Portugal a partir da modernidade e das relações desta com a tradição. Para ele, não havia contradição entre o caminho histórico português e o desejo de olhar o futuro como um desafio de transformação. Nesse sentido, foi original na sua atitude, fiel ao gesto inconformista de seu pai, António Ferro, no «Orpheu», mas também capaz de compreender a multifacetada e heterogénea atitude de Fernando Pessoa, inclassificável e indomável. É, por isso, impossível encerrar António Quadros numa leitura retrospetiva da sua obra. Antes de tudo, era uma pessoa atenta à realidade que o cercava, capaz de compreender, como poucos, a filosofia da existência, assumida por Karl Jaspers e Gabriel Marcel, e o modo de ser «homo viator», como podemos encontrar com nitidez em «Histórias do Tempo de Deus» (1965). Quem conheceu António Quadros sabe bem a singularidade da sua atitude – de um homem de verdadeiro diálogo, nunca encerrado sobre qualquer posição de superioridade ou de certeza. E se, para entendermos o pensamento, precisamos de conhecer os pensadores, a verdade é que o humanismo e a proximidade eram características que o tornavam alguém para quem o ato de pensar tinha a ver com a necessidade de nos compreendermos e aproximar-nos mutuamente. A dúvida foi sempre uma leal conselheira para Quadros na demanda da verdade – já que considerava que à categoria tradicional do ser tornava-se necessário acrescentar a categoria do estar (ou do existir), donde decorria que a verdade deveria ser entendida com algo que englobava, que abarcava, que integrava, ou seja, uma simbiose do testemunho pessoal e existencial, em que a transcendência tinha de partir da dignidade humana. Nesse sentido se demarcou de uma posição transpersonalista, para assumir a força da eminente dignidade da pessoa. «Não reconheço verdadeiramente adversários em minha volta (disse um dia), porque de todos me sinto irmão na origem da minha atividade, na geratriz da minha energia ao serviço de uma causa». E não podemos esquecer a invocação do Quinto Império de Vieira e de Pessoa, como império da cultura e do espírito, a realizar quando se unirem, o que o poeta chamava o lado direito e o lado esquerdo da sabedoria. O lado direito é o do conhecimento do transcendente e do místico e o lado esquerdo o da ciência, da filosofia, da experiência e da razão. A criação do futuro haveria de resultar dessa ligação e dessa complementaridade.
E PORTUGAL? COMO O TRATAMOS?
«Desde muito cedo me choquei com a maneira como os portugueses falam de Portugal». Numa entrevista ao «Diário de Notícias», a Antónia da Sousa (11.3.93), fala-nos dessa sensação estranha que lhe causava o derrotismo fatalista. «Uma maneira constantemente depreciativa. Confundiam os aspetos materiais com os aspetos espirituais. Então, acho que essas pessoas (que são de todos os géneros, no meio intelectual e não só) não dão uma chance a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». Se é verdade que hoje a crise é mais sentida, o certo é que somos levados a ir além das simplificações. Não meias-tintas, temos mesmo de responder, sob pena de perdermos. «A minha mola psicológica (dizia António Quadros) é tentar ajudar a criar um outro estado de espírito, em que as pessoas possam entender melhor a razão de ser de Portugal e aquilo em que Portugal é grande e desconhecido». Fora de uma mitificação da identidade (no sentido da mumificação), o que estaria em causa era o entendimento de que «a identidade portuguesa não é (…) qualquer coisa estática, mas qualquer coisa a construir». E aqui sentimos o criacionismo de Leonardo Coimbra. Daí a preocupação do ensaísta em reunir ideias e pensadores que animaram e contribuíram para a afirmação do país – como Fernão Lopes, o Padre António Vieira, os homens da Renascença Portuguesa, alguns do «Orpheu», como Fernando Pessoa… E Quadros, um dos animadores do jornal «57», ao lado doutros discípulos de José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi-se preocupando em alargar horizontes e esferas de reflexão. À ciclotimia portuguesa, haveria que saber contrapor o estímulo e a resposta de Arnold Toynbee, que nos levou a ir além dos limites, perante os exigentes desafios da provação e da subalternidade. E assim pudemos ir superando: mediocridade, irrelevância e periferia – ontem como hoje. Portugal precisaria, isso sim, de pensar por si próprio. «Portugal, quanto a mim (costumava dizer), nasceu para realizar uma obra de sentido universal e nós temos de estar à altura dessa exigência». E aqui seguia as pisadas de Camões, de Vieira ou de Pessoa, refletindo sobre a complexa relação entre o mito e a profecia. Afinal, a previsão científica em História é, segundo pensava, mais problemática que a profecia. Esta parte de uma crença e a ciência pode partir de um erro. Nunca a História ou o historicismo conseguiram fazer previsões ou leis, embora tal tenha sido tentado várias vezes. Afinal, os mitos e as profecias, mesmo que postos em dúvida, constituem o imaginário de um povo – sem o qual a identidade não existe.
O PROBLEMA MODERNO
«O grande problema moderno não é, quanto a mim (alertava António Quadros), um problema económico, é um problema de valores e há uma riqueza de valores em suspensão em toda a cultura portuguesa». Os acontecimentos recentes demonstram-no à evidência. E a verdade é que o pensador nunca desistiu da tarefa fundamental de «desentranhar esses valores», fazendo-os trazer para a luz do dia. O que deveria ser construído, o império do futuro, não seria uma pura quimera, deveria ser algo a criar com o nosso pensamento e esforço. Trata-se de um «mundo de valores que nos pertence a nós criar». Um país antigo apenas pode persistir com vontade e determinação. E, por isso mesmo, o pensador deixou-nos (na linha do que sempre defendeu) um apelo de esperança: «acreditem em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois».
Onde li eu, sobre a música de Haydn, que nela nascia a harmonia, não de receita, mas como procura? Ou fui eu que o disse ou alguém o terá dito por mim... Ocorre-me agora essa reflexão, quando silenciosamente contemplo este jardim japonês. Voltei a Kyoto, a Primavera vai-se alongando, as pétalas de "sakura" vão-se espreguiçando pelo ar, como se dissessem "é tarde!", efémeras traviatas dançando ao sopro musical de brisas que as afagam e logo apagam, varrendo o chão em que adormecem. Este ano, a Primavera das cores teima e atrasa a vinda das chuvas que anunciam o Verão verde e húmido, respirando a terra... Hei de ir a Horiyuji, ao templo da cor escura do tempo, feito de madeiras milenárias, firmado no cinzento negro das lajes, levantado entre o verde poderoso da natureza que transpira para o céu a humildade dos homens... Pois é de humildade feita a harmonia das artes nipónicas. Da tigela de barro do artesão ao gesto caligráfico do erudito, procura-se, humildemente, essa respiração por dentro da natureza, em que o tempo de cada gesto seja, na alma, o tempo eterno do mundo. Circular, incessantemente retornando, ao ritmo das estações que obedecem aos astros, e levam a vida na morte e trazem a morte na vida. O que, para nós, é um destino escatologicamente realizável é, para eles, a repetição tentativa da harmonia inicial das coisas. A harmonia que se procura não é ordem, é a da coexistência necessária (diríamos nós: de tudo em todos) das forças díspares, e até antagónicas, que sustentam e constroem, de um caos que desconhecemos, um universo que ainda não vemos em plenitude. Reconheço que, ao dizer-te isso, me afasto da minha meditação japonesa e tenho a alma cheia da visão de uma missa sobre o mundo, da escatologia cosmo-genética de Teilhard de Chardin. Mas volto os olhos para este "meu" jardim japonês: é do estilo "Tsukiyama", uma espécie de microcosmo cultivado e arranjado, à volta e sobre um manto de água, como se fosse um mar semeado de ilhas, correntes e bosques. Poderia ser um "Karensansui", calvo e seco, em que a água se representa por predrinhas ou areias penteadas em ondas, como nos jardins "Zen"... Assim também, na elaborada cerimónia do chá, a razão da natureza ensina a humildade. Não só pela porta de entrada na "chashitsu" (a sala da cerimónia do chá), chamada "nijiriguchi", com apenas 67 cm de altura e 60 de largura, de forma a impedir o ingresso de armas, armaduras e vestidos de espavento... nem porque se deixa o calçado lá fora. Mas porque ali se procura o ideal estético do "wabé", como despojamento "zen", simples e calmo. Ora este também se traduzirá na beleza, limpa de adornos, dos utensílios que servem uma cerimónia litúrgica que aliás, dizem, o grande mestre Sen no Rikyu, foi buscar aos ritos dos jesuítas portugueses no século XVI. A "chawan" (tijela ou chávena,sem asas nem pegas) é objeto de apreço, antes de muitas se term tornado objecto de preço. Ao rodá-la e mirá-la nas nossas mãos, antes e depois de a levar à boca, contemplamos a natureza que ela encerra nos quatro elementos que a conjugaram (ar, fogo, terra e água) e aqui nos serve o chá em sinal de igualdade e partilha entre os homens. Na "chashitsu", durante o "sadô" ou "cha no yu" (a cerimónia do chá) somos todos iguais e estamos em harmonia com a natureza. Há ainda, nessa comunhão natural (quiçá telúrica até, em país de vulcões, terramotos e outras erosões) - que é um esteio tão vivo na tradição da cultura japonesa, mesmo em tempos modernos de motores e electrónica - outros aspectos do pensamento e sensibilidade das gentes que se revelam pela visão estética: a economia de desenho e materiais na construção de utensílios, móveis e edifícios, por exemplo: o "design" japonês já no tempo medievo preconizava, com elegância fina e forte intuição abstrativa, o que, entre nós, seria, já no século XX "art-déco" e abstracionismo. Tal como, na viragem do século XIX para o nosso, os desenhos florais japoneses,nas artes decorativas, influenciaram as nossas "artes novas", e as gravuras japonesas os nossos cartazes. Mas o que, para o europeu, seria, quase sempre, um artifício, era ,para o japonês, a estética enquanto sensação, sentido, percebimento, comunhão da natureza. Estética não é só, acho eu, a concepção da harmonia de um objeto ou superfície material, ou de um seguimento de sons... de acordo com leis que concebemos com a intenção de organizar ou reformar a natureza que se reproduz ou copia. A emoção estética - e afinal será isso que a arte procura - é, antes de tudo mais, o ato de contemplação do artista, do artesão que, pela obra que a materializa, se comunica. Esteta, no seu grego de origem, é o que sente, o que percebe. Será, pois, o que está do lado inicial - que ele não começou - ou do lado final - que não se esgota aí - duma comunicação. Que é partilha. O artista que se exprime, no fundo se si, quer partilhar. Um percurso pela história da arte europeia, ajudar-nos-ia a entender o processo genético daquilo a que actualmente chamamos a liberdade de expressão artística. Receio que estejamos a enveredar por um processo autista, como se os "círculos de artistas" entrassem num remoinho. "Mutatis mutandis", lembra-me a decadência escolástica da nossa filosofia medieval ou o especiosismo maneirista no tratamento de tantos temas pela oficialidade católica... A "fuga para a frente" é, muitas vezes, o enrodilhar-se sobre si. Essas "descobertas", em sucessivas efemérides, de compositores e artistas plásticos contemporâneos, já não têm os pés no chão da natureza e dos homens, tal como certos pietismos e pretensões doutrinais da Igreja já não têm assento nas almas. Se eu chegasse ao fim deste século XX, talvez ainda visse o esplendor do barroco e da renascença nas salas de concertos,como sacramento da natureza num mundo de ruído automóvel e industrial,de poluição electrónica,sonora e visual. Pois é sempre paradoxal a condição humana: como poderia eu discernir por aí o triunfo da vulgaridade na cultura das massas,se por aí também não encontrasse os contempladores de deuses?" Há, entre muitas outras cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... (isto lembra-me o título de um filme de que o João Bénard da Costa gostava muito: "Madame de..." não era?) uma, sobretudo, por onde deambula, através do Japão, um prazer estético incontido...
«Penso que só há um caminho para a ciência ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele, casar e viver feliz com ele até que a morte vos separe – a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenham uma solução. Mas, mesmo que obtenham uma solução, poderão então descobrir, para vosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem-estar poderão trabalhar, com um sentido, até ao fim dos vossos dias.»
Quando li estas palavras de Popper sorri-lhes como poucas vezes se pode sorrir já que inspirava através delas um perfume de plantas sagrado e vulnerável.
Considerado por muitos como o filósofo de maior influencia no sec. XX, Karl Popper habituou-nos a que nunca se desligasse da inteligência o quanto a verdade é inalcançável, e que por essa razão dela nos devemos sempre aproximar por tentativas.
Em rigor, para ele, o estado da ciência é sempre provisório, e, ao se atingir uma teoria ainda não refutada pelas observações e factos, devemos sempre perguntar-nos até que ponto é assim? Até que ponto todas as possibilidades se esgotaram, mesmo as que pareciam seguir caminhos inversos. Até que ponto a inexistente refutação nos dá segurança?
Revejo como quem diz, repenso, o quanto uma das cores que a vida nos coloca, é a de nos sabermos confrontar com algo completamente novo, algo que implique avaliação, valores, ensaios, erros, enfim tentativas resolutamente activas para que encontremos nesse novo mundo, do qual fazemos caminho, a forma de vida que nos tornará a qualquer hora descobridores por tanto buscarmos.
Atentemos, contudo, que, para que as nossas diligências decifrem, necessário se torna, diga-se, que as condições da nossa individualidade saibam viver numa desordem interior dentro do limite que detecta o erro, e, claro está, o mecanismo que o corrigirá. E logo a perpétua imperfeição essencial à vida se reorganiza como um organismo anti-valor o faria, na sua própria busca de um mundo melhor e propicio a acolhedores meios-ambientes.
Registe-se ainda o quanto a leitura de Popper é um constante esclarecimento na própria interpretação de Alber Einstein, que tanto o influenciou num mundo de propensões.
Alerta a Poppper também recebo a história, não descuidando que ela o é, com o sentido que os homens lhe dão, tentando antecipar consequências desse facto, sobretudo, as que poderão colocar em causa as favoráveis reformas.
Dizia Popper que a única atitude justificável para atingir a verdade surge pelo diálogo, pelo confronto de ideias através de meios não violentos. E sempre a sua admiração por Churchill se revelou fecunda pela percepção teimosa e lúcida deste politico, nos debates que enfrentava, seguro quanto possível do conhecimento do comportamento humano tão sabiamente verbalizado.
Afirmou Popper
“Sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Mas podemos aprender com eles.”
Popper será sempre um mundo a conhecer e a reflectir também sobre a génese e fundamentação ideológica dos regimes totalitários.
E acrescento que outra consequência da epistemologia de Popper reside no núcleo central da liberdade crítica como condição indispensável ao progresso do conhecimento, e, assim, somos convidados a interpretar a distinção entre uma sociedade aberta e uma sociedade fechada.
Todos os cisnes são brancos?
Ou como sentenciou Sócrates: « É preferível suportar uma injustiça do que praticá-la.»
Recomecemos de novo. E sempre pelo conhecimento. Pela busca entre a verdade e a certeza, certos de que existem verdades incertas , mas não existem certezas incertas.
O método do conhecimento científico é o método crítico ao serviço da verdade, e só fio a fio se descobre o linho, e um dia um pescador colheu-o na rede.
E assim por Karl Popper também direi, direi do mar nos teares de quem o tece.
Vamos analisando, nestes textos, a colaboração e mais do que isso, a convergência de Almada Negreiros e de Fernando Amado em torno da teoria e da prática da arte do teatro. Muito colaboraram, como sabemos e temos dito, na Casa da Comédia e no CNC - aliás, ambas as entidades estão historicamente e culturalmente ligadas. Vamos referindo essa convergência através de textos e de evocações.
E precisamente: ao teorizar num texto intitulado significativamente “O Meu Teatro”, Almada abre com uma dedicatória evocativa dessa colaboração. “A Fernando Amado que pôs em cena duas peças minhas: sinto-me pago em artista e em amigo”. Outras encenações se seguiriam. A amizade e a colaboração intelectual e artística duraram décadas, e não impedia os debates e a controvérsia.
Por exemplo: a encenação e os ensaios do “Deseja-se Mulher”, peça editada em 1959 e por essa altura encenada por Fernando Amado na Casa da Comédia, em parceria com o CNC, ficou marcada por debates entre o autor e o encenador, e deles resultou um espetáculo que ainda hoje se recorda com entusiasmo.
Em qualquer caso, no texto sobre “O Meu Teatro”, Almada disserta não só sobre o (seu) teatro mas sobre a arte dramática e o espetáculo em geral. Aliás, como iremos vendo, essa teorização é constante e recorrente. No caso que agora nos ocupa, Almada elabora uma teoria geral da ligação entre o teatro e as artes em geral - e esse, insista-se, é nele um tema recorrente.
Diz Almada:
“Teatro é o escaparate de todas as artes.
Todas as artes são todas as peças da mesma coisa.
Perguntaram-me se teatro não era a mais facil das artes.
Respondi: não há artes mais fáceis, qualquer delas é facilidade. Teatro é facilidade ali à vista de todos.
Arte é tornar fácil o difícil. O difícil é o espontâneo. Este vem no fim. Pois quando foi primeiro não estava lá o próprio”.
O texto, tal qual como Almada o escreveu, contem já de si, na estrutura dos parágrafos, uma oralidade “espetacular” - no sentido mas abrangente do termo!
E podemos cruzar este texto de Almada com o Prólogo que Fernando Amado leu na estreia da sua peça “A Caixa de Pandora”:
“Este é o Prólogo, É o pequeno ato representado por uma única personagem, antes da peça.
O que se vai dizer não intervém diretamente na ação. Também não é arrazoado inútil.
Corresponde a uma ideia teatral, já se vê. As palavras proferidas aquém do reposteiro têm algo de confidência. E os espetadores costumam apreciá-las - sobretudo os que detestam o improviso - porque nelas transparece o cuidado do autor em aproximar a plateia da cena.
Para que não haja equívocos nem percam tempo em imaginações”…
A mobilização para a obediência possui as suas artes. E estas são observáveis à luz do quotidiano. A British Library tem agora patente uma nova exposição que justamente oferece um curioso caleidoscópio sobre esta face obscura do poder. ‒ Chérie, c’est toujours une question orwellian! De segunda a domingo no 96 Euston Road, em London, está aberta uma mega mostra sobre Propaganda: Power and Persuasion, com uma gama de materiais tal que algures se deambula já entre a gargalhada, a indignação e até o espanto. – Well, power does not corrupt. Fear corrupts! A exibição é uma panóplia de mensagens, técnicas e suportes, a ilustrar como diferentes estados recorrem à manipulação das massas para suscitar a adesão ou quebrar a resistência dos cidadãos aos seus projetos em tempos de guerra e de paz. Resulta uma lição política.
Um manual de história e lapidar epigrama de Mr George Orwell serão boa parceria na visita à casa de King’s Cross. Grafa ele no incontornável 1984: Who controls the past controls the future. Who controls the present controls the past. A falsificação do real é traço forte na propaganda, acesa em culturas ditatoriais mas não de todo ausente no alarido democrático que tanto impressiona Mr Alexis de Tocqueville. Com maior ou menor subtileza, clássicos ou nem por isso, a exposição apresenta cartazes, filmes, artigos, banda desenhada, enfim, sugestivos objetos, sons e textos que amiúde desnudam o lado demagógico, senão sinistro, no exercício do poder por líderes que basicamente não confiam nos seus concidadãos.
Há anos atrás, aí nas vossas redondezas, na belíssima Madrid, visitei uma outra exposição em torno da arte do poder. Foi no Museo del Prado e recordo sobretudo um esplêndido Tiziano de 1548 com Carlos V a caballo. Se recordo bem, larga parcela das peças seiscentistas provinha da Real Armería e o evento insistia tanto em armaduras da primitiva modernidade quanto em retratos epocais. Do ouro de umas às cores sombreadas de outros, El arte del poder projetava a aura do sic transit gloria mundi: o garbo dos cavaleiros manifestamente contrastava com os corpos estropiados em enlameadas cenas de batalha. O espírito imperial que gera o euromundo produz a ars moriendi, a denúncia de Machiavelli e excelentes manuais de criação de cavalos – estes, aliás, obrigatórios na biblioteca de qualquer country house. Mas que ficará destas artes na idade dos spin doctors e dos social media, quando os discípulos de Herr Goebbels rivalizam com os fãs de Frau Riefenstahl?!
Cenário de divertida incursão literária de David Lodge, a British Library tem nestes summer days uma outra estimulante proposta. Illustrating Shakespeare é um livrinho local de Peter Whitfield, que disponibiliza um olhar sobre o modo como personagens e tramas de Master Will são captadas ao longo de três séculos por artistas tão notáveis quanto os William’s Hogarth e Blake, Mr John Waterhouse, o Baronet John Millais ou até Monsieur Eugene Delacroix, o de Liberty Guiding the People (1830). Saboreie-se. ‒ Yeah! None but the brave deserve the fair.
O dia de anos de Eduardo Lourenço é 23 de maio. Assinalamos a data e teremos o gosto de o ter connosco no dia 20 para nos apresentar a reedição aumentada de «Os Militares e o Poder seguido de O Fim de Todas as Guerras e a Guerra Sem Fim» (Gradiva, 2013). A 5 de junho o Centro Nacional de Cultura associa-se à Biblioteca Nacional de Portugal em torno de uma indispensável mostra bibliográfica. Mais de que homenagens, do que se trata apenas é de agradecer a vitalidade e a força intelectual do nosso sócio honorário, que fez no CNC, no ano de 1956 a sua primeira conferência em Lisboa, na presença de Almada Negreiros. Bem haja, Eduardo!
Visão.
LIBERTAÇÃO DOS MITOS Se há pensador português contemporâneo que pratica o sentido crítico plenamente, ele é Eduardo Lourenço, empenhado (neste belo tempo de aniversário) em libertar-se da consideração de «mito cultural», que, relativamente a uma geração anterior, entendeu criticamente ter sido assumida por António Sérgio. Ao interrogar permanentemente a identidade portuguesa, fê-lo como genial criador da língua e da literatura, articulando a intuição poética e a manipulação experimentada e hábil dos mitos, que o ensaísta usou como reveladores dos grandes enigmas de uma nação antiga que teima em persistir e em lutar, contra todas as lógicas e evidências. E assim seguiu as pisadas de Joaquim de Carvalho e de Sílvio Lima por sendas diferentes. «Na aparência, o país que (…) podia justificar um livro como “O Labirinto” já não existe» - disse-o o ensaísta na reedição do ano 2000 da sua mais falada obra. E afirmava ainda, que no tempo decorrido, «não mudámos apenas de estatuto histórico-político, de civilização e de ritos sociais que julgávamos, lamentando-o, característicos de uma sociedade quase marginal em relação aos padrões europeus. Mudámos literalmente falando, e sem quase nos darmos conta disso, de mundo. Mudámos porque o mundo conheceu uma metamorfose sem precedentes, não apenas exterior, mas de fundo». Passámos a viver noutro planeta, caiu o muro de Berlim, deixámos de ser «potencial ou imaginariamente» senhores dos nossos destinos, houve uma «avassaladora dissolução das entidades clássicas a que chamávamos nações», sobrevieram «microidentidades virulentas ou superidentidades simbólicas». E sofremos «o fim da civilização europeia sob paradigma cristão e iluminista, se é lícito associar estas duas matrizes da milenária e agora defunta Europa». Mas onde estamos? Quem somos? «Como todo o Ocidente, tornámo-nos “todo o mundo e ninguém”. A nossa visceral “hiperidentidade” nada tem de irónica, tal como era descrito no “Labirinto”. Somos, sim, quem sempre quisemos ser. E todavia, não estando já em África, nem na Europa, onde nunca seremos o que sonhámos, emigrámos todos, coletivamente, para Timor». E, por momentos, então, parecemos regressar ao centro do mundo… Mas o certo é que essa ilusão momentânea, enquadrável na ciclotimia nacional, depressa deu lugar à depressão das crises que se foram instalando, ao cairmos em nós, depois do chuveiro de euros, como tinha acontecido no século XIX com as libras do Sr. Fontes.
UM ENSAÍSMO DE PRESENÇA Em vários momentos, Eduardo Lourenço explicou-nos que o ensaísmo que praticou e pratica nunca foi feito por ele próprio para recuperar o país, que verdadeiramente nunca perdeu (sendo ele, afinal, um ausente presente), mas para o «pensar», com paixão e sangue-frio intelectual, lembrando o tempo antigo da «felicidade melancólica» do tempo em que era um «prisioneiro de alma». E aí está a extraordinária originalidade do discípulo de Montaigne e de Kierkegaard – ele, que quis pensar-se em simultâneo como universo pessoal em ligação com o universo mitológico da pátria – ilustrando plenamente o verso de O’Neill, «Portugal, questão que tenho comigo mesmo». Assim se entende a sua visão dos mitos, na linhagem de Antero e de Oliveira Martins – não como mitos da pura alienação, mas como mitos enquanto ideias projetadas no devir por um povo que toma consciência de si. Aliás, hoje, deve ler-se «O Labirinto da Saudade», a partir do magistral texto publicado na revista «Raiz e Utopia», prosseguindo com a luminosa análise de «Portugal como Destino». Os mitos e os contramitos são vistos como autorrepresentações críticas, irónicas, motivadoras, ilusórias, entusiastas ou redutoras – mas sempre como pistas para explicação ou para o conhecimento. E o ensaísta sabe, e di-lo com clareza meridiana, que não há uma mitologia nacional, mas mitos na história, que circulam e são sinais de permanência e de metamorfose. Daí que o escritor recorra aos poetas do seu santuário – Camões, Antero e Pessoa – para melhor avaliar o sentido das mitologias, compreendendo, pela reflexão e pelo pensamento, quais projetam esperança no futuro (no sentido da «maravilhosa imperfeição») e quais são provas póstumas e sinais de decaimento, como no sebastianismo. Nesse ponto, Vieira é um companheiro também presente nessa apaixonante busca de palavra e utopia…
MEMÓRIA ESPONTÂNEA E CULTIVADA Lembremo-nos do que escreveu Eduardo Lourenço em «Nós e a Europa – Ou as Duas Razões»: «Povo com larga memória espontânea e cultivada de si mesmo, nação com definição política, territorial e cultural de muitos séculos, Portugal não parece exemplo particularmente interessante dos fenómenos, hoje tão angustiosos para outros povos, comunidades ou continentes inteiros, de “crise de identidade”. Nós pensamos saber quem somos, por ter sido largamente quem fomos, e pensamos que nada ameaça a coesão e a consistência da realidade que constituímos». Daí a «hiperidentidade» detetada pelo escritor, centrada numa «quase mórbida fixação na contemplação e no gozo da “diferença” que nos caracteriza». As fragilidades ligam-se ao fazer das fraquezas forças. E vem à lembrança a analogia com o povo judaico, com uma diferença: Portugal não espera o Messias, o Messias é o seu próprio passado, convertido na mais consistente e obsessiva referência do seu presente, podendo substituir-se-lhe nos momentos de maior dúvida sobre si ou constituindo até o horizonte mítico do seu futuro». Não por acaso, Eduardo Lourenço descobre em Fernando Pessoa, muito para além do que alguns quiseram ver na «Mensagem», a essência da multiplicação e a capacidade de ver de dentro e de fora, abarcando o mito na sua heterogeneidade: «a poucas nações se aplicaria tão bem, como a Portugal, a imagem do navio-nação e melhor ainda a de “nação-navio”, pela identidade de destino e o projeto que encarnou, deslocando-se no espaço e no tempo, mas tão sempre a mesma na diferença apenas apreciável que a História vai constituindo». E há ainda o paradoxo, que não pode ser esquecido, de uma sublime vocação de não-identidade dos portugueses («aptos a ser tudo e todos», caso em que «não seríamos ninguém»). Veja-se, aliás, a atual crise e o certo regresso a questões de sobrevivência. De novo a imagem da «nação-navio» faz sentido, ao lado da metáfora do cais de partida e de chegada. E Eduardo Lourenço ainda acredita na lógica cosmopolita, do universalismo autêntico (agora relembrado, pela reedição de «A Chave dos Profetas» do Padre Vieira), capaz de fazer «ressuscitar, como Novalis o sonhou, uma outra-Europa, onde não triunfem apenas instâncias obscuras, sem outra ideologia que a da gestão do “ouro do Reno” wagneriano, convertido em deus do coração humano. Sem a música do génio para redimir tão sinistros atores do nosso destino coletivo. Sempre era uma consolação» (Público, 24.11.2012). Vamos, apesar de tudo, conhecendo-nos melhor, e pondo a vontade no lugar próprio, em vez do fatalismo.