COMO JAPÃO E EUROPA SE ENTREVÊEM…
"Minha saudosa Princesa de mim:
Recebi esta tarde, de um grupo de senhoras japonesas cujo clube cultural me convidara a falar sobre "Olhares trocados: como Japão e Europa se entrevêem na arte", um "kakemono" com a caligrafia de "ichi go ichi é", máxima que exprime o espírito da cerimóia do chá e posso analiticamente traduzir por: "um encontro é um tesouro que não se repete"... Sensibilizou-me a intenção e o gesto; comove-me o pensamento. Das vezes que,namorados, nos encontrámos e demos a mão, e os olhos de cada um foram a luz dos olhos do outro, não saberei distinguir uma só, nem posso dizer que foram todas iguais, ou alguma diferente. Pela simples razão de que todas foram e são únicas. A contemplação do amor é descobrir sempre o mesmo como pela primeira vez,com a mesma novidade da emoção. Assim também é o olhar do japonês para a natureza ou o objecto ou obra de arte, mesmo artesanal. Para nós, a verdade das coisas é aquela que se descobre, que "se traz ao de cima", que se manifesta. E esta atitude vala tanto para o naturalista que reproduz,como para o impressionista, o cubista ou o abstraccionista: em todas essas escolas ou correntes se afirma uma visão própria, ou se pretende transmitir realidades tal como nos apoderámos delas. Para o japonês, o que se procura, o que conta e determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. O olhar, ou o escutar - assistir a um concerto no Japão é perceber como o silêncio é participante - torna-se assim, mais do que um exercício dos sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar da alma que traz o objecto de arte - que é visível mas cheio de invisível - para o convívio quotidiano. Se compararmos o recheio e decoração dos palácios e casas grandes onde nascemos - e a sua acumulação de objectos exibicionistas de abundância material - com o despojamento dos interiores coevos das residências e retiros da nobreza japonesa, logo nos aperceberemos dessa diferença essencial. Nas salas japonesas, a prova de bom gosto não amontoa. Afasta e singulariza cada objecto de estimação - um "kakemono" pendurado (seja uma caligrafia, um "sumi é"), uma pintura, ou um arranjo de flores, ou uma peça de cerâmica ou de metal - de modo a poder ser contemplado e convidar ao diálogo invisível... Este sentimento da decência e da superioridade espiritual do que é simples, está patente na arquitectura e arrumo interior dos santuários, templos e mosteiros, como nas casas e pavilhões de repouso da nobreza, tenham estes a grandeza de Katsura ou sejam mais pequenos,como o Gingakuji e o Kinkakuji. E apraz-me pensar que tal contenção material terá moderado a arrogância e os excessos decorativos de construções afirmativas do poder político e militar e suas linhagens,como nesses magníficos monumentos do "barroco" Tokugawa que são o Nijo jo,aqui em Kyoto,e os túmulos dos "shogun" dessa família, em Nikko, a noroeste de Tokyo. Lembrei-me de ti, por interposta referência, durante a minha charla desta tarde. Sabes bem que não precso de cábulas para que me sorrias à janela do coração.. Mas ocorreu-me,vinda de fora dos tópicos que tinha alinhado, a memória de Mondrian (o Piet Mondrian, nosso conterrâneo, compatriota de teus pais pelo passaporte, já que somos família de muitas fronteiras). Recordas-te da exposição que, juntos, visitámos em Paris, e de eu te ter dito que aqueles Mondrian me evocavam a geometria das plantas da arquitectura japonesa,ou ainda o desenho de portas e janelas - e dos quebra-luz das lanternas portáteis - as madeiras que dividem o espaço e seguram a translucidez do papel de arroz? Na altura em que falava, "vi" primeiro a divisão do interior da minha caixa de "ô bentô", donde fui petiscando o almoço de ontem, no "shinkansen" que me trouxe de Tokyo, onde tinha aterrado. Os compartimentos dessa "merendeira" são lineares e desiguais,contendo cada um a sua dose de alimentos diferentes,pela substância e pelo paladar. O seu consumo não obedece a qualquer ordem pré-estabelecida, vamos comendo, daqui e dali, conforme "conversamos" com eles. Na sua apresentação, há todavia a proposta de oferta, em quantidades que são, para nós, amostras, de produtos conformes à estação da natureza. E a intenção de nos conformar a ela, tornando-os mais apetecíveis pelo prazer cromático que, à vista, cada petisco em seu arrumo nos dá. Em toda a sua "sofisticação" (diríamos nós), o "bentô" é comida popular, quase sempre almoço do funcionário, do empregado, do trabalhador comum. Mas tem, para lá da saúde dietética e da economia, uma dimensão espiritual, na medida do seu usufruto estético e da sua referência à mãe-natureza (nós diríamos Criação...). Mondrian,que tanto se preocupou com a relação da arte à vida, perceberia o que quero dizer. O mesmíssimo princípio estético se aplica ao "kaiseki ryiori" com que fui gratificado ao jantar num "ryotei", restaurante fino e caríssimo. Aqui, não só a variedade dos quatorze serviços obedece também à sazonabilidade dos produtos,mas,nas mesinhas baixas dispostas à nossa frente,as louças e lacas em que se nos oferecem as iguarias apresentam formas e desenhos alusivos à estação do ano... É já mais copiosa a refeição,mas "quem pode" não é obrigado a comer tudo... Vai-se bebendo "saké", acompanhando os pratos de "sashimi", "tempura" e os outros, cozidos, avinagrados ou mais adocicados, grelhados, etc... Mas,no fim da refeição,com a "miso shiru" (sopa de soja fermentada) e os "pickles", vem a malga de arroz. Esta,em princípio é para ser totalmente ingerida. Todos a comem, como quem cumpre. Tal como na nossa tradição cristã, não se deita fora o pão dos pobres." Quando, décadas mais tarde, na senda de Camilo Maria, me calhou andar pelo Japão, encontrei muito do mesmo. E também a coexistência de tudo isso com um Japão electrónico e "pop". E pensei muito nessa coexistência, que não se anuncia só nas caixas do "bentô". Está no cerne de uma visão do mundo, com a aceitação de si e do seu contraditório, ou simplesmente da diferença,como se explica até pela convivência do shintoísmo com o budismo desde o século VII. Talvez também se possa dizer que, para o japonês, um momento de distração desse princípio de bondade universal, ou seja, a afirmação "erga omnes" da diferença pretendida, pode conduzir à barbárie. Sentimos, penso eu, de quando em vez, ou dessa vez quando estamos às avessas com a circunstância,um desejo fúnebre de embirrar com o mundo. Daí, mal nenhum ao mundo virá, pois tão pouco podemos que nem para aguentar a birra - ou o burro amarrado - temos força... A menos que a gente se dê conta de que a birra, afinal, nossa não é, mas cegueira, sim, da circunstância. Como quando, esta noite, me assusto ao imaginar, depois de tanto comentário mais televisivo do que silenciosamente sábio, que estamos todos a ser arrastados para um barranco de cegos...
Camilo Martins de Oliveira