Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Para a cultura portuguesa a festa do Pentecostes tem uma importância especial. As celebrações do Espírito Santo são um sinal do «humanismo universalista», de que falou Jaime Cortesão, e devem ser recordadas como uma exigência de esperança, de liberdade e de igualdade. A coroação de quem não tem poder, uma criança normalmente, a abertura dos Impérios do Espírito Santo e a vivência comunitária de uma refeição de que todos são beneficiários sem exceção (desde a sopa do Espírito Santo à massa sovada, passando pela alcatra e todas as iguarias) são a prefiguração de um tempo de reconciliação e de paz, a que nenhuma sociedade ou pessoa pode renunciar. E, num contexto de dificuldades, como o atual, estes símbolos ganham uma importância acrescida, uma vez que se trata, a um tempo, de dizer que há motivos para mobilizar vontades em torno da justiça, e que a esperança tem de se construir num horizonte em que o sentido comunitário deve ser reforçado, como lógico complemento, da singularidade e da dignidade. Afinal, caridade é cuidado, atenção, entrega e não mero assistencialismo…
Lembramo-nos da memória histórica, desde a influência dos franciscanos espirituais à invocação da Idade do Espírito Santo do monge calabrês Joaquim de Flora, nos tempos do reinado de D. Dinis e da Rainha Santa Isabel, até à seiscentista «História do Futuro», à «Chave dos Profetas» e ao Quinto Império do Padre António Vieira – tudo isso nos leva à consideração de que o Pentecostes é um momento de significativa importância religiosa, teológica e cultural. A reminiscência dessas festividades antigas ultrapassa em muito a ideia de um acontecimento popular, sem repercussões espirituais. O Espírito procede do Pai e do Filho – e traduz o reconhecimento pleno da dignidade da pessoa humana, como pedra angular da justiça e da paz. Estamos longe de uma recordação de ancestrais movimentos pagãos. O sentido da comunidade e do amor (agapé), a dignidade das pessoas e o igual respeito por todos são mais fortes do que quaisquer elementos folclóricos. Há poucas festividades com um sentido tão profundamente ligado à Verdade e à Vida como a de Pentecostes – e quando lemos as referências culturais a essas tradições, depressa percebemos que estamos no coração da nossa identidade (apesar do Concílio de Trento ter levado para fora – Açores e Brasil – uma festa tão genuína), devendo entender-se que são as pessoas que estão no epicentro dos desígnios e aspirações deste acontecimento.
Como lembrou António Quadros, «há uma poderosa relação desta cerimónia com o Sermão da Montanha» e acrescentava: «o Império do Espírito Santo será também aquele em que nada do que é espiritual, nas sete partes do mundo e ao longo dos milénios, poderá perder-se. Não será um Império por amputação, mas um Império por acréscimo: acréscimo do Espírito de Verdade em todos e cada um dos modos de diálogo do humano com o divino, e de valorização do humano na sua dimensão integral». Essa era, aliás, para o Padre António Vieira a verdadeira «chave dos profetas», não confundível com um projeto político ou de conjuntura, mas como uma aspiração universalista de paz e de justiça. Oiçamos o Padre Joaquim Alves Correia: «sem caridade, não passa a melhor doutrina de um tinir de chocalho ou de badalar de sineta. Com a caridade, tudo feito e tudo ganho: porque a caridade será depois a vida definitiva e em cheio, a vida coroada de alegria, a vida-felicidade, quando a fé já não for precisa, quando a esperança já não tiver objeto (porque se não espera o que se possui» («De Que Espírito Somos»). As palavras são clarividentes.
De Brantôme para Congar, de frei Ivo para o Japão, onde me espera uma reflexão partilhada sobre experiências estéticas, cá estou no avião e,preparando,no caderno,umas notas sobre estética,dou com outras sobre esse paradoxo tradicional da nossa cultura que encerra a mulher numa fúria mental de diabolização-santificação... E que tantas vezes a inferioriza: discutiu-se (até em concílio!) se a mulher teria alma humana, Aristóteles, no cadinho de certos "ideais" helénicos (que aliás se reflectiram em comportamentos sexuais) considerou-a uma frustração ou incompleição da natureza. E o Doutor Angélico, fiel ao seu método dedutivo e ao rigor da sua dívida para com o filósofo ateniense, terá achado de somenos importância aprofundar ou discutir um conceito que não se agitava no seu tempo. (Mas que teria dito,um século antes,Santa Hildegarda de Bingen?). S. Tomás de Aquino vai buscar a Aristóteles o conceito e a justificação da inferioridade congénita das mulheres. Assim, afirma em resposta à "quaestio" 92 da "Summa Theologiae" : "Pela própria operação da natureza,a mulher é inferior e é um erro. A causa agente que está na semente masculina tenta produzir algo completo em si, um macho. Mas quando é produzida uma fêmea, isso deve-se ao facto de a causa agente ter sido frustrada, ou por inadequação da matéria recipiente, ou por qualquer interferência deformadora, como ventos do sul, que são demasiado húmidos, como lemos no "Conceção Animal" (de Aristóteles). A esta visão da natureza da mulher, atribuirá ele a primeira razão de recusa de ordens sacras a pessoas do sexo feminino: "Como nenhuma precedência de superioridade pode ser expressa no sexo feminino,que tem um estatuto inferior,esse sexo não pode ser ordenado. Não há aqui qualquer fundamento bíblico nem argumento teológico. Trata-se de uma afirmação decorrente de um princípio aristotélico que, para nós, já não tem qualquer base científica aceitável. À ideia de inferioridade natural da mulher desde logo se associa a da sua impureza, designadamente manifestada pela fisiologia menstrual. Nas religiões antigas, e no próprio judaísmo, eram vários os interditos relacionados com esse período,em que o contacto com a mulher era considerado causa de impureza. Assim,não deviam os sacerdotes aproximar-se de suas mulheres por essa altura, sob pena de não poderem oferecer as preces e sacrifícios rituais. Aliás, é também por esta linhagem de interditos que,já no século XI, a Igreja Católica importá o celibato aos seus padres. Até aí, a castidade não era condição sine qua non do ministério pastoral e sacramental, mas um voto, em regra exigido a quem professasse numa comunidade religiosa, feito por quem escolhia uma vida de consagração especial. Há em tudo isso uma atitude e uma tradição misógina, que até se esquece de que o primeiro papa era um homem casado, cuja sogra foi curada por Jesus... E em lado algum está dito que Pedro tenha enviuvado ou repudiado a sua mulher. Mas sabemos, pelos evangelhos sinópticos, que Jesus curou uma mulher que sofria de um fluxo de sangue, uma hemorragia que, mesmo fora do período menstrual, determinava a impureza canónica. E diz-nos S.Lucas que Jesus não encarou logo com quem lhe tocara a veste, mas disse: "Quem me tocou? ... Alguém me tocou,pois senti sair de mim uma força!" Há algo de sacramental nessa afirmação. As representações do episódio "Noli me tangere" são recorrentes na história da arte europeia, desde os primórdios do cristianismo, como no fresco romano na igreja de Santi Pietro e Marcellino em Roma. A presença importante das mulheres na vida e na Igreja primitiva de Jesus foi relatada por S.Paulo nas suas epístolas. Na primeira aos Coríntios,pergunta: "Não teremos o direito de levar connosco uma senhora cristã, como os restantes Apóstolos, os irmãos do Senhor e Kefá?" Nessa carta,em que se preocupa e procura desenhar linhas de comportamento desejável para as mulheres --- que, por serem cristãs (emancipadas?) não perdem todavia o estatuto social e as conveniências impostas pela sociedade do seu tempo --- afirma: "Aliás,no Senhor,nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher; e tudo vem de Deus". Na carta aos Romanos, recomenda "a nossa irmã Febe, que é diaconisa da Igreja..." e refere-se a muitas outas, incluindo a mulher de Andrónico: "Saudai Andrónico e Júnia, meus parentes e companheiros de prisão, que são insignes entre os apóstolos e me precederam em Cristo." Santo Agostinho, num dos seus sermões, aconselha: "Devíamos ponderar a providencial aptidão da obra de Nosso Senhor. Assim,como o Senhor Jesus Cristo fez com que fossem mulheres os primeiros a testemunhar que ele tinha ressuscitado. Porque o homem caiu por uma mulher, e porque a virgem Maria deu à luz Cristo, mulheres deveriam proclamar que Ele tinha ressuscitado. Através da mulher, morte? Através da mulher,vida!" E não era o bispo de Hipona - que aliás repudiara a mulher aquando da sua conversão ao cristianismo - muito propenso a enaltecê-las, nem sequer a Mãe de Jesus: não deixou escrito um só sermão sobre Nossa Senhora, mas referiu-se a Maria de Betânia como símbolo da contemplação e à Madalena como símbolo do amor. Das duas naturezas, humana e divina, coexistentes na pessoa de Jesus,Maria de Nazaré é só mãe da primeira. E como mulher só é confiada por Jesus, do alto da cruz, a João, para que este tome conta dela e não o contrário. É esclarecedor do seu pensamento sobre o poder de intercessão de Maria,o comentário de Agostinho sobre as bodas de Caná: "Porque ela não era mãe da Sua divindade,e o milagre que ela pedia tinha de ser feito pela Sua divindade, ele respondeu-lhe desta maneira: Que podes querer de mim,mulher? Mas para que não penses que não te reconheço como mãe, acrescento que ainda não chegou a minha hora. Então reconhecer-te-ei, quando a fraqueza que deste à luz tiver começado a sua hora na cruz." Será quando entregará a mãe ao cuidado do seu discípulo. Morrendo antes de mãe, para ressuscitar antes da mãe, Ele, como ser humano entrega a outro humano o cuidado desse humano de onde lhe veio a humanidade". A condição humana de Maria de Nazaré - que a tornava herdeira do pecado original - foi reafirmada por S. Bernardo, todavia um devoto de Santa Maria e pregador de cruzadas. A piedade popular fez constar que Deus teria então marcado de negro a sua alma... o que não dissuadiu S. Tomás de Aquino, passado um século, de se pronunciar contra a Imaculada Conceição, não só porque tal significaria negar a Cristo a natureza humana (posto que nascido de uma mulher), como ainda "retirar-lhe a honra de ser o salvador de todas as pessoas"... Enfim: discussões escolásticas cuja subtileza me escapa e que não impediram a proclamação desse dogma no sec.XIX. Nem a insistência crescente na mediação de Maria, que a piedade do povo católico foi impondo à doutrina oficial da Igreja. Aproximo-me dos meus 80 anos, Princesa, nasci, cresci e vivi, num mundo em que as mulheres não podiam seguir os cursos de estudos facultados aos homens, nem votar em eleições "democráticas" (muito embora, no passado, por direito divino ou genealógico, tivessem sido rainhas e imperatrizes), nem ser diplomatas, juízes ou militares. Hoje, a pouco e pouco vão podendo ser tudo isso, e em Igrejas cristãs irmãs da nossa na fé, mesmo conservadoras (como a anglicana/episcopaliana), até já vão acedendo às ordens sacras... Mas é na Igreja Católica, e nas ortodoxas, que o culto de Maria, como medianeira entre céu e terra,mais foi e tem sido cultivado. E não se define a função sacerdotal como essencialmente medianeira? Interrogo-me acerca deste ostracismo,não tenho que me pronunciar, apenas pergunto porquê. Já que, na verdade, nada, que eu saiba, exclui as mulheres desse munus no Novo Testamento. Recordo,nesta cabine de avião onde te escrevo,prestes a aterrar em Tokyo,o texto em que Congar explica como,nessas sagradas escrituras,nem sequer surge qualquer fundamento para o sacerdócio ritual que certo "machismo" eclesiástico reclama (esta frase é minha, não de frei Ivo): "Eis os factos. A palavra "hiereus" (sacerdote, o que oferece sacrifícios) surge mais de trinta vezes no Novo Testamento, e a palavra "archiereus" mais de cento e trinta. A utilização destas palavras é tão constante, que claramente denuncia uma intenção deliberada e altamente significante, sobretudo porque os escritores da primeira geração cristã seguem cuidadosamente a mesma linha. Neles, tal como no Novo Testamento, "hiereus" (ou "archiereus") é utilizada para designar quer os sacerdotes da ordem levítica,quer os sacerdotes pagãos. Aplicada à religião cristã, a palavra "hiereus" só serve para falar de Cristo ou dos fiéis. Nunca se aplica aos ministros da hierarquia da Igreja". Já apertei o cinto de segurança. É quando, nos aviões em manobras de voo, mais se reza. E eu rezo também, para que a nossa Igreja se entenda com a sua circunstância. Não por relativismo, mais ou menos oportunista. Mas porque, como Cristo, é incarnada. E vive na história dos homens." Camilo Maria não voltaria, por modo epistolar, a assuntos eclesiais. Mas,pela atualidade de um texto escrito nos anos setenta do século passado, transcrevo uma citação do Cardeal Congar,inserta num apontamento avulso do Marquês de Sarolea: "Os conceitos de Povo de Deus e de Sacramento da Salvação impõem-se como ponto de partida para o que se procura: uma Igreja desclericalizada, uma Igreja para o mundo. Enquanto que,até ao concílio (Vaticano II) vimos o mundo a partir da Igreja, tendemos a ver a Igreja a partir do mundo,correndo o risco de a secularizar e de equecer o facto de que, por muito que ela seja feita para o mundo, ela é uma coisa diferente do mundo: é fruto de iniciativas divinas sobrenaturais,irredutíveis à criação ou à história. Por outro lado, um estudo histórico, a valorização de um laicado activo, e também o diálogo ecuménico levam-nos a reler e alargar a teologia dos ministérios..."
Temos referido o caracter inovador e globalizante, perdoe-se a ênfase dos termos mas são justos e adequados, da colaboração de Almada Negreiros e de Fernando Amado nas actividades teatrais, sejam de criação dramatúrgica, sejam de espectáculo. Diga-se agora que foi sobretudo neste plano que ambos mais directamente colaboraram, designadamente no Centro Nacional de Cultura ou na Casa da Comédia, nos anos 50/70. Mas o relacionamento pessoal vinha muito de trás e cruzou-se logo nos anos 20, nas primícias do modernismo teatral.
Luis Francisco Rebello recorda no Teatro Estúdio do Salitre ( 1946) “a presença de Almada Negreiros, Fernando Amado, Branquinho da Fonseca e João Pedro de Andrade, todos já então com uma considerável e relevante bagagem dramatúrgica mas ainda virgem da experiencia do palco” (in Teatro Estúdio do Salitre - Anos 60” ed. SAP e Publicações D. Quixote -1996). Assim é, mas a colaboração, repita-se, era muito mais antiga e assentava num relacionamento pessoal-familiar que se cruzaria por exemplo nos bailados da Condessa de Castelo Melhor, verdadeira iniciação do modernismo .
Nesse sentido, importa ter presente que tanto Almada como Amado são dramaturgos de grande relevo no plano da inovação estética - mas também, um e outro, na própria abundancia de produção. Almada já foi referido e iremos continuando a recordar e analisar, em próximos artigos, a sua dramaturgia.
No caso de Fernando Amado, temos notícia de algo como 28 peças, das quais cerca de 5 se terão perdido. As restantes estão publicadas e percorrem uma variedade considerável de registos estéticos e de vocação de espectáculo, digamos assim. Também as iremos analisar em próximos artigos.
Mas aqui, importa recordar sobretudo que Amado encenou em 1949 o “Antes de Começar” de Almada e revelou, em 1963, na Casa da Comédia, o “Deseja-se Mulher”.
A colaboração entre ambos durou décadas e assumiu com um plano teórico, estético e doutrinário, que urge recuperar. Não obstante, em 1999 é publicado um elucidativo “Diálogo entre Almada Negreiros e Fernando Amado” que contém uma notável elaboração acerca do fenómeno teatral (cfr. “À Boca de Cena - Fernando Amado” dir. Vitor Silva Tavares ed. ETC 1999).
E David Mourão Ferreira caracteriza o teatro de Amado como uma “dramaturgia poética e abrupta, simbólica e desconcertante, seduzida pelo mistério que paira sobre certas situações “ (in “Dicionário do Teatro Português”). O que até se poderia aplicar a algumas das peças de Almada…
Repita-se: a dramaturgia de Almada Negreiros e de Fernando Amado exige uma mais detalhada evocação critica, que iremos fazendo em termos da colaboração reciproca ou das obras autónomas respetivas. São numerosas as peças de um e de outro. E se Almada é mais recordado que Fernando Amado, importa então lembrar não só o teatro deste como a globalidade de abordagem de um e de outro;. E a respetiva colaboração!
Ainda existem coisas assim, que vêm pelo correio com a simplicidade da inteligência e um sorriso. Entre estas, cá por casa, conta-se a Oxford Today. Na era em que muitos profetizam o fim das publicações em papel e tinta, e muitos mais viraram apóstolos da nebulosa digital, onde também está presente, receber em cada term uma nova edição da revista da Oxford University é desde logo um prazer. ‒ Oh-là-là. Vos affinités électives!
O último número apresenta na capa o Dr Marcus du Santoy, Simonyi Professor for the Public Understanding of Science e matemático da interdisciplinaridade, enquanto glosa nas páginas do interior várias modalidades com que o espírito do tempo hoje estremece as ideias e as pessoas, os direitos e os quotidianos, mesmo o regime das coisas nas paisagens natural e social. – Something as ours Yourcenar’s That Mighty Sculptor, Time!? Pelo grafismo cuidado, conteúdos interessantes, informações sobre ilustres alumni e mais um outro elemento que não vem de todo agora a propósito, a publicação partilha interrogações e desafios em circulação na comunidade científica. Do tipo útil na ilha como ‒ What makes the British?
The University Magazine tem sempre para ler e a idade algures ditou a preferência por ler devagar. Neste número do Trinity Term, o artigo que até agora captou a atenção aborda o financiamento da higher education. Intitulado “The Money question”, o texto assinado por Mr Richard Lofthouse baseia-se numa entrevista ao autor de um bem humorado livro: The financial history of Cambridge University. Assim descobri o Neildian Paradox: "The rate of government interference in academic matters has gone up in recent years, while the public funding of higher education has gone down". E com o cheque vêm inconfundíveis characters & methodologies.
O Professor Robert Neild examina o trilho financeiro das college universities como Oxford e Cambridge durante os séculos XIX e XX, nomeadamente aquele que conduziu ao atual estádio de riqueza e gestão profissionalizada, um e outra doando condições notabilíssimas para pensar, rabiscar e cinzelar ciência. Há um dado interessantíssimo: A academia recebeu o seu mais generoso investimento do estado nos anos do pós-guerra, os 1945-51 de Mr Clement Attlee quando a escassez de recursos era regra; esse financiamento coincide com pouca ou nenhuma interferência na vida académica, abrindo a uma golden age. Como explicar o aparente quadrado paradoxal?
Quando o voto ukkiper diz da democracy for the few e o debate sobre o cisma europeu ainda agora abriu e já sobe ao rubro, convirá talvez regressar à reflexão sobre os laços críticos do poder e saber. Afinal, a sua dissociação lógica custa caro e corrigir demora tempo. O Oxford Today ajuda com um 1957 quip do astuto Mr Harold Macmillan. ‒ Let us be frank about it: most of our people have never had it so good.
Carlos Queiroz (1907-1949), autor de «Desaparecido» (1935) e de «Breve Tratado de Não Versificação» (1948) foi um dos poetas mais significativos do segundo modernismo português, quer pelo talento e originalidade, quer por ter sido o elo que permitiu o contacto do movimento da revista «presença» com a geração do Orpheu, em especial com Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
QUEM FOI CARLOS QUEIROZ? Muitas vezes se refere como um caso inexplicável a insuficiente notoriedade de um dos poetas mais importantes da sua geração. De facto, para quem lê a obra de Carlos Queiroz, fica a ideia nítida de que estamos perante um autor maior com uma personalidade própria, com uma sensibilidade bem marcada e com um domínio da língua e da cultura portuguesas, no qual a modernidade se articula com um conhecimento seguro das raízes, o que o torna a um tempo original e ciente de que a língua tem uma continuidade que vem dos seus maiores cultores históricos. Como afirmou Fernando J. B. Martinho: «pela delicada musicalidade dos versos, Carlos Queiroz» foi «exemplo maior da persistência da tradição simbolista». E David Mourão-Ferreira diz lapidarmente: «Carlos Queiroz aprendeu, como poucos, a lição dos clássicos; assimilou também os jogos dos barrocos, o rigor dos arcádicos; ouviu igualmente o canto da sereia dos românticos; e foi moderno, foi inclusive modernista, mas, para além dos formulários dos modernistas ou do que a modernidade possa ter de precário. Entre os simbolistas, no entanto, é que ele viria a encontrar os seus mais próximos antepassados». Aqui se diz quase tudo. E sentimo-lo, a cada passo, quando o lemos. Neste sentido, longe de qualquer lógica de grupo ou mesmo de uma redução particularista de identidade fechada, o poeta insere a condição de português numa preocupação cosmopolita e universalista. E o certo é que esta distinção faz especial sentido em Carlos Queiroz por diversas razões: antes de mais, o poeta foi um grande leitor quer dos autores contemporâneos quer dos clássicos; conhece bem as literaturas francesa, alemã e italiana, toma contacto com autores críticos de tribalismos e nacionalismos – como Marcel Arland, que se afastará da «Nouvelle Revue Française» de Drieu de la Rochelle. Por outro lado, procura, a um tempo, os valores essenciais e os problemas permanentes, à semelhança das preocupações não só da revista «presença» de Régio, mas também da «Revista de Portugal» de Nemésio, na qual colaborará sobretudo depois da morte do seu amigo Fernando Pessoa.
O INTERESSE PELO TEMA PORTUGAL O tema Portugal preocupa-o, mas não como questão ideológica, e sim como tema simbólico e vivencial – o que o diferencia do registo nacional e o aproxima das preocupações existenciais que a incerteza da crise e, depois, a guerra determinariam, para além da conjuntura social e política. É muito sintomático que Queiroz diga: «Isto de ser poeta português / Não é tão simples como imaginais. / Vede em Camões, Antero e Pascoaes / O que essa estrela dúplice lhes fez // (…) Gomes Leal, Cesário Verde… tantos! / Se fossem doutro povo, doutra raça / Seriam geniais, - mas sem desgraça. / Os poetas, aqui, são como os Santos: // Não conhecem os frutos dos seus prantos / E a glória é póstuma ilusão que passa» (in «Epístola aos Vindouros e outros Poemas», organização de David Mourão-Ferreira, 1989, p. 28). Ao invés de qualquer simplificação, eis que o poeta invoca a distância e a «desgraça». Não conhecer os frutos dos prantos é sinal de incompreensão. E se há glória, ela é póstuma e é ilusão passageira. E dirá também, fora de qualquer glorificação: «Português e vivo / É diminutivo. / Só fizemos bem Torres de Belém». A ironia é propositada, e não significa desinteresse ou indiferença, mas sim apelo crítico e recusa de um autocomprazimento. O surrealismo poderia usar a mesma metáfora… Portugal é o que é, não ilusão, não passado, mas realidade imperfeita. E, projetando o passado, como pessoal e coletivo, dirá: «Ah o passado, o passado! Que ventoinha, que remoinho / Que sorvedouro inexorável»… E David Mourão-Ferreira insiste nesse cosmopolitismo de Carlos Queiroz, singularizando-o na participação na revista «presença» (1927-1937): «será das raras (colaborações) que virão conferir um caráter menos “provincial” e mais equilibradamente desenvolto à produção poética de quase todo o grupo». Aliás, no número 1 da revista «Litoral», que irá dirigir, Carlos Queiroz fala (1944) de um projeto «sem abstrair qualquer ordem de questões e interesses profundamente humanos e vitais», pelo que «aplicar-se-á, de preferência ao estudo e valorização desinteressada dos motivos eternos, dos valores essenciais, dos problemas permanentes». Há, pois, uma tentativa de imersão total na poesia como arte, como «literatura viva», e o poeta assume o seu próprio caminho, com repercussões clássicas e simbolistas. Em «Ode Pagã», publicada em 1948, desvanecem-se dúvidas: «Ilusões! A cultura, o amor, a poesia… / Não igualam, sequer, um dia à beira-mar, / Vivido plenamente, a sorver, a beijar / o vento e a maresia! // Viver é estar assim: a fronte ao céu erguida, / Os membros livres, as narinas dilatadas; / com toda a natureza, em espírito, as mãos dadas… / - O resto não é vida!». Em lugar de abstrações, é a vida que importa, e não receitas ou invetivas, palavras vazias…
UMA LEITURA REVELADORA Em 1942, ano de tantas incertezas, Queiroz lê «Essais Critiques» de Marcel Arland, e sublinha a lápis cuidadosamente o que lê: «Non je ne souhaite un art à tendances moralisatrices, mais un art où s’expriment nos préoccupations essentielles». E também concorda com o ensaísta quando este diz que a literatura deve ser um esforço para a verdade… E, mais adiante, pensando decerto em Portugal: «Un pays ne subsiste qu’en se transformant, non pas en devenant un cloître où l’on célèbre le culte des reliques». A vida tem, no fundo, essa vocação mutante. E há uma recusa do isolamento. De novo, temos o sentido cosmopolita. E Marcel Arland representa em 1942 o contraponto ao que significará o magistério de Drieu na casa Gallimard. Afinal, um país, segundo o escritor francês sofre sempre as influências que merece, quer quando as recusa quer quando as atrai. A leitura de Carlos Queiroz é assim crítica. Ao invés do isolamento e da autarcia, sentimos uma pulsão de abertura e de transformação. A ironia poética tem uma força especial. E o mais interessante é a insistência dos sublinhados no tocante à exigência de distância política (a crítica da propaganda soviética e americana), sem que isso possa significar anomia ou indiferença. «Une œuvre, un écrivain ne m’intéressent qu’autant qu’ils échappent à une génération». Se dúvidas houvesse, eis que o poeta rompe com a facilidade e a moda. É a arte, com todas as consequências, que está na ordem do dia!
Escreveu-me a NC um bilhete, gratificante para mim, sobre umas reflexões que me ouvira durante o jantar em casa dos C de T. Referia-se à minha meditação sobre o amor como comunicação, procura do outro, movimento perpétuo, e a perplexidade como desamor, paragem. Perplexo - até na sua raiz latina - é o que está atado, embaraçado, ou seja, confuso, indeciso, condenado ao imobilismo. O amor não sabe lidar com a perplexidade, porque é necessariamente generoso e a generosidade é uma atitude da alma como gesto para o outro. "Generositas", em latim, quer dizer nobreza, aquilo que tem qualidade; o seu radical é "genus" que significa nascimento,origem. E, assim também, genuíno se diz do que é verdadeiro, autêntico, inato. O amor é verdade marcada, desde o início, no coração dos homens. É princípio e fim de tudo. Não hesita, é um impulso vital. Quando ocorre a morte de um ente querido, ou nos escandaliza o sofrimento, a miséria, o mal espalhado pelo mundo, há um momento de perplexidade em nós, como se Deus nos tivesse traído. Até Cristo gritou, do alto do martírio da sua cruz: "Pai, porque me abandonaste?" O impulso genético do amor esbarra no absurdo. Só sabemos, então, que o absurdo não se explica. E hesitamos entre essa perplexidade - que nos fecha a Deus, aos outros, ao mundo, e nos imobiliza na impotência - e o amor que nos abre e empurra para fora de nós,ao encontro do outro. A escolha será nossa: amor e perplexidade não são compatíveis. Parafraseando o Ortega y Gasset ("el hombre es un transfuga de la naturaleza"), diria que o amor é um trânsfuga da condição individual: só se torna actual se nos transcendermos por pensamentos, palavras e obras que não nos confinem na paixão dos nossos limites. Quem passou pelo sofrimento de um amor traído, ou de uma amizade esquecida, saberá melhor o que custa, afinal, ser fiel: porque, quando ficou perplexo, terá tido ganas de acusar o outro, de se vingar, fazendo-o sofrer, tornando-o expiatório. Talvez ainda, quando mais resignado a uma fatalidade sofrida como injustiça, fosse tentado a quedar-se na perplexidade, rendido à amargura e à desilusão. Ou,quiçá,tenha feito da sua mágoa uma oferta, guardando serenamente no coração o amor como dom... Dom de si na comunhão de todos, nessa comunicação inesgotável com o nosso ser universal. O amor põe-nos na eternidade, vem do princípio antes de nós e vai até além de qualquer limite que possamoa conceber. Recordo "Un teólogo en la muerte", do Jorge Luis Borges,inspirado num relato dos "Arcania Caelestia" de Emanuel Swedenborg: «Los ángeles me comunicaron que quando falleció Melanchton, le fué suministrada en el otro mundo una casa ilusoriamente igual a la que habia tenido en la tierra. (A casi todos los recién venidos a la eternidad les sucede lo mismo y por eso creen que no han muerto). Los objetos domesticos eran iguales: la mesa, el escritorio con sus cajones, la biblioteca. En cuanto Melanchton se despertió en ese domicilio, reanudó sus tareas literarias como si no fuera un cadáver y escribió durante unos días sobre la justificación por la fe. Como era su costumbre no dijo una palabra sobre la caridad. Los ángeles notaran esa omissión y mandaron personas a interrogarlo. Melanchton les dijo: "He demonstrado irrefutablemente que el alma puede prescindir de la caridad y que para ingresar en el cielo basta la fe." Esas cosas les decía con soberbia y no sabia que ya estaba muerto y que su lugar no era el cielo. Cuando los ángeles oyeron esse discurso lo abandonaran”». O conceito de justificação pela fé, do protestante Melanchton, mesmo com o pensamento na suposta libertação dos fiéis cristãos da tutela uniformizadora da doutrina e da práctica religiosa impostas pala igreja católica, resultará finalmente em fundamentalismos exclusivistas, essencialmente análogos ao espírito da Santa Inquisição. Como se a verdade que cada um entende - e em que acredita - fosse superior ao amor que, à imagem e semelhança de Deus, deve ser comum a todos. "Ama e faz o que queres", disse Agostinho. "Ubi est caritas ibi Deus est", diz a tradição do ensinamento de Jesus. O único antídoto para a concupiscência - que é pensar e fazer por si sem ver o Outro - é o bem-querer, é a humildade intangível de querer o bem. O que está inscrito, no coração dos homens, não é esta ou aquela fé. É simplesmente a fé no amor que se comunica e salva todos. Poderei crer que a forma de fé que professo seja aquela em que melhor se revela e realiza o amor primordial. E nesse movimento quererei comunicá-la. Sem nunca me esquecer de que não sou dono do amor. Assim também, no amor humano, o que vale não é o que no outro mais me agrada ou desagrada. É, tão difícil e simplesmente, a procura da comunicação. Mesmo a comunhão dos santos não é uma uniformidade, nem há comunhão se não houver diferença. Comungar é juntar em paz, num só corpo, as nossas diferenças. No seu diário íntimo, Alma Werfel que, nesse mês de Janeiro de 1902, viria a chamar-se, pelo casamento com Gustav - o compositor, maestro e diretor da Ópera de Viena - Alma Mahler, escreve: " Ele quer mudar-me, mudar-me completamente. E eu também quero. Consigo-o enquanto estou a seu lado - mas basta-me ficar sozinha para que o meu outro eu, esta cabeça má e vaidosa, tenha vontade de reaparecer... ... Ontem à tarde, suplicou-me que lhe falasse - e eu não consegui encontrar uma única palavra calorosa. Nem uma. Chorei. E nada mais...". Alberto Moravia conclui o seu romance sobre o amor conjugal com este diálogo, numa igreja em ruínas, mas acolhedora, entre o narrador e sua mulher, já com história feita de encontros e desencontros: " - Penso que, daqui a uns tempos, quando nos conhecermos melhor, deverás, como ontem à noite dizias, recomeçar a escrever este romance... e tenho a certeza de que farás uma coisa bem feita! (diz a mulher). Não respondi e limitei-me a acariciar-lhe a mão. Mas por cima do seu ombro vislumbrei o capitel com cara de demónio, e pensei que, para retomar o meu romance, precisaria não só de conhecer o diabo tão bem como o canteiro que o esculpira, mas de conhecer igualmente o seu contrário. - Precisarei de muito tempo... - disse, com doçura. E estas palavras, pronunciadas em voz alta, concluíram o meu pensamento". E termino eu mais esta etapa da nossa digressão pelo labirinto claro da mente de Camilo Maria. Recordando a afirmação que encerra o "Some like it hot" do Billy Wilder: "Nobody is perfect!"
Lê Charles de Guérin, Goethe entre muitos outros e é muito influenciado pelo parnasianismo que constitui um movimento literário, essencialmente poético, e pelo qual os autores procuravam recuperar valores estéticos da antiguidade clássica. Monte Parnaso é a montanha que, na mitologia grega era consagrada às musas e a Apolo.
Custeia vários dos seus livros e finalmente em 1940 com 54 anos de idade é eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Manuel Bandeira um dos grandes nomes da poesia moderna brasileira conhece Paul Éluard e Gala que se casaria com Éluard e depois com Salvador Dali.
Mas naquela manhã, Bandeira acha que existe um lugar onde as pessoas se sentem bem, talvez por ser um lugar que desarma solidão e infelicidade o bastante, para se dever evocar o sonho de um país imaginário.
E esse lugar é Pasárgada e escreve Manuel Bandeira:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d ‘água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
E dentro de Manuel Bandeira, neste lugar, tudo lhe foi claro: diria.
Não se pretende analisar ou sequer referir o conjunto da dramaturgia de Fernando Amado (1899-1968) num só artigo. A sua obra é vasta e, no que se refere ao teatro, abrange a globalidade da criação, desde as peças propriamente ditas à encenação, à doutrina e estética teatral, à pedagogia e ao ensino e à direção de iniciativas e companhias teatrais - e sobretudo à Casa da Comédia, à qual esteve ligado o Centro Nacional de Cultura. Fernando Amado integrou aliás, nos anos 60, a direcção do CNC: e a Casa da Comédia de certo modo nasceu aqui.
Ora, é oportuno lembrar que a amizade de Fernando Amado e Almada Negreiros vinha de muito de trás, mas passou pelo CNC e pela Casa da Comédia, sobretudo na verdadeira aventura que foi a estreia do “Deseja-se Mulher” de Almada, dirigido por Fernando Amado.
A peça, como bem sabemos, é exigente, para não dizer difícil, na medida em que envolve um espetáculo integral nas componentes de texto, de cena, de música e de ambiente. De tal forma aliás que a ambientação de 1919, em rigor não perdeu atualidade na estreia dos anos 60, como não a perdeu rigorosamente hoje, pela qualidade do texto mas também pela profundidade critica do conteúdo, repita-se, psicológico e mesmo social - e isto, sem querer obviamente ignorar que decorreu quase um século sobre a Lisboa e sobre o país, a sociedade e as psicologias e condutas que Ele e Ela, a Vampa, e os demais personagens evocam.
Mas a evocação de Fernando Amado, aliás como a de Almada, não se esgota num único texto. Iremos vendo a vasta dramaturgia de Amada ou a sua doutrinação estética. Mas precisamente, uma e outra cruzaram-se nos anos que leccionou no então Conservatório Nacional - Secção de Teatro, hoje Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa.
Recordo essas aulas a que tive o privilégio e o proveito de assistir como aluno-ouvinte, enquanto prosseguia, com menos entusiasmo, o curso de Direito. E lembro muito particularmente a alocução que, logo no início nos dirigia: “é preciso tirar o Conservatório do seu próprio mistério, mostrar a todas as pessoas o que cá se faz”. E o que lá se fazia era uma abordagem global da arte teatral em todas as suas componentes.
As aulas de Fernando Amado eram um misto de ensino teórico, de exercício prático e de ensaio de espetáculo. Mas essas componentes completavam-se. A teoria, mais desenvolvida na cadeira de Filosofia do teatro que também ministrou, estava subjacente à prática da cadeira de Arte de Representar e Encenação.
Era a terminologia dos programas da época - 1958… mas o conteúdo era de hoje, porque o teatro dura desde sempre e não perde atualidade quando não perde qualidade.
Iremos analisando a dramaturgia de Fernando Amado: e de caminho, iremos recordando a trajetória da Casa da Comédia e da colaboração com Almada Negreiros, nessas e em outras iniciativas.
Minha Princesa de mim, Foram bons os dias que passámos em Paris, ainda bem que pudeste vir ter comigo e partilhar concertos, exposições, infindáveis conversas. Antes de regressar ao Japão, ainda dei um pulo ao Saulchoir, por me terem dito que poderia encontrar-me com o Padre Yves Congar. Senti vontade de falar com esse dominicano - um verdadeiro mestre de teologia eclesial no Vaticano II, e não só - depois da conversa que tínhamos tido sobre a vocação militante e até missionária da tua irmã GM. É verdade que ela foi muito influenciada pelo seu amigo Cardeal Cardijn, mas entusiasmou-se sobretudo pela visão da Igreja como Povo de Deus (que se foi afirmando na sequência de um novo surto dos estudos da tradição bíblica e patrística sobre a continuação de Israel do Antigo para o Novo Testamento) e da função apostólica dos leigos, tal como apregoada por Pio XI (1922-1939), o Papa de Cristo-Rei, da Ação Católica e das missões... Sabes como sempre estive politicamente bem longe dos ideais demo-sociais da GM, mas não posso deixar de admirar a generosidade de carácter da jovem aristocrata que, às escondidas da família, se ia "vestir de operária" e trabalhar numa fábrica para iniciar uma das primeiras células da JOC! Foi quando te conheci, nos anos 20, tinha a tua irmã acabado o curso superior de assistência social, o primeiro em todo o mundo, na Rue de la Poste, em Bruxelas. E da JOC a missionária leiga no Congo, sempre por sugestão do Cardijn, foi um pulo. Por isso Pio XI a recebeu e agraciou e ela se casou tarde, que para freira não servia. Registo um comentário do Congar sobre esse apelo de Pio XI aos leigos: "Como já antes o tinham feito Leão XIII e Pio X, mas com renovada insistência, Pio XI convidou os leigos a tomarem a sua parte na missão da Igreja ou do seu apostolado. Isso não significava apenas a ação na ordem temporal, mas também atividades de evangelização e de testemunho. Se a Ação Católica oficialmente organizada supunha um certo "mandato" (palavra muito raramente empregue pelos papas), o apostolado leigo fundamentava-se na própria ontologia sobrenatural do cristão: batismo, confirmação, dons espirituais e carismas, dever de reconhecimento. O convite incansavelmente dirigido pelo papa a "participar no apostolado hierárquico" (Pio XII mudaria participar para cooperar) apoiou-se na revalorização do sacerdócio comum dos batizados". Nasceu frei Ivo (Yves Congar) a 13 de Abril de 1904 na cidade de Sedan, naquela Alsácia-Lorena que alemães e franceses sempre disputaram. Talvez por isso - como Robert Schumann para a Europa - a sua vida tenha sido uma procura incessante da união das igrejas na Igreja universal. É curioso observar que aquilo que talvez seja o mais completo e brilhante tratado de eclesiologia, desde o Vaticano II - esse livro de frei Ivo intitulado "L´Église, de Saint Augustin à l´époque moderne" - tenha a sua primeira edição simultâneamente em francês e alemão: "Die Lehre von der Kirche von Augustinus bis zur Gegenwart". Essa publicação é recente, como sabes. O Padre Congar ia manuseando um exemplar dela, enquanto me falava da Constituição dogmática "Lumen Gentium", documento em que o Concílio Vaticano II definiu ou descreveu, pela primeira vez de forma sistemática e autorizada, a Igreja. Faz-se ali uma revisão e um aproveitamento do que de melhor a Igreja foi pensando de si ao longo de séculos, incluindo a forma que se afirmou no Vaticano I. "Mas, diz Congar, há uma libertação resoluta do assombramento da autoridade e da preponderância do jurídico, do societário, que pesava sobre a eclesiologia há século e meio. O concílio - acrescenta ele - fez a justiça de operar um recentramento vertical sobre Cristo e um descentramento horizontal sobre a comunidade e o povo de Deus... ... Restitui-se assim a imagem de uma Igreja que comporta uma pluralidade de ministérios, segundo as missões, as tarefas, os carismas..." Sabes que tive a tentação de me meter pelo caminho da profissão religiosa, como vida de consagração a Deus e aos outros. Sem sacerdócio - sempre tive e tenho alguma reserva quanto a essa "unção" que nos chegou das religiões primitivas, nacionalistas, bairristas e concorrentes, que se organizaram hierarquicamente, com castas transmissoras dos poderes divinos... Sinto-me espiritualmente mais próximo, quer da mística dos primeiros eremitas e cenobitas, quer da "diakonia", do serviço da comunidade, do que do chamado "exercício do poder espiritual" (expressão que me arrepia). Será uma questão de sensibilidade, mas é assim. Opuseram-me, beneditinos e dominicanos, ao meu desejo de ser simplesmente um "converso", isto é, um "irmão-faz-tudo", a importância da minha educação e cultura, e a necessidade dela para a missão "pastoral" da Igreja, também chamada "seara do Senhor"... E, pensava eu, bem aventuradas são as mulheres que, desde as diáconas da Igreja primitiva - e mais próxima do ideal evangélico - sempre puderam servir com a humildade sublime da Mãe de Deus, sem se revestirem dos símbolos de poder que douraram os báculos dos bispos e puseram três coroas na cabeça do papa. Pois os ministros da Igreja, afinal, não devem ser reconhecidos no sentido político do que manda, mas no do que serve o evangelho. A própria administração dos sacramentos nunca pode esquecer-se desse conceito fundador que é o de Igreja-sacramento primordial, raiz e cultura (no sentido de ambiente vivificante) de todos os sacramentos - por isso mesmo missionária e medianeira para o mundo. Não quero nem posso negar a importância e necessidade dos gestos e dos ritos, para a fidelidade dos quais é certamente necessária uma qualquer organização eclesial. Mas quero, posso e devo dizer que aquilo a que habitualmente se chama "sacramentos" não são receitas médicas nem varinhas de condão. São sinais efectivos do primeiro sacramento do amor de Deus que é Jesus Cristo, cuja forma sacramental atual é a Igreja, seu corpo místico, animada, em cada um de nós, pelo Espírito Santo. Assim também, qualquer vocação monástica, por exemplo, é sacramento. Estar fora do mundo, para no mundo ser testemunho de Deus e medianeiro dos homens. É claro que frei Ivo me sorriu, com condescendência benevolente pela minha ignorância em matéria teológica. Mas também me falou mais - e muito generosamente - da essência da Igreja como sacramento e da importância da sucessão episcopal dos apóstolos na administração dos sacramentos dessa mesma Igreja. E nessa perspetiva esteve sempre presente, também, o seu carinho ecuménico. Em resposta às minhas interrogações sobre o acerto de decisões ou interpretações "dogmáticas" que uma hierarquia, nem sempre recomendável eticamente, foi fazendo ao longo da história,sacudiu por cima do ombro o escapulário do hábito branco e disse-me: "Olhemos para a frente. Temos conseguido, graças a Deus, com apoio em investigações científicas e históricas, compreender melhor a história que envolve a Igreja e a dela mesma - como pensamento e acção que se vão declarando na circunstância mutante do tempo, sejam eles da Igreja oficial ou de tanta gente que nela comunga mesmo quando a interroga... Aproximarmo-nos do sopro e da obra de Deus na história dos homens..." E apontou-me umas linhas do livro que tinha na mão. Conto-te o resto depois. Estou cheio de sono, isto é ciência de mais para a minha carruagem.. Adeus,Princesa. " Num apontamento avulso, Camilo Maria vai tecendo considerações sobre ecumenismo cristão, diálogo inter-religioso e... a Europa no projecto de Robert Schumann e Jean Monnet! Curiosa analogia..