Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
"O tempo para refletir e comunicar era mais lento e por isso as ideias e os discursos duravam mais"... Respondi certamente em tempo oportuno à carta de Camilo Maria que contém esta afirmação. Mas não me lembro já do que disse, e de novo lhe respondo, mais de quarenta anos depois. A evolução veloz dos meios de comunicação (media, em latim, que o português pingarrilho gosta de pronunciar "mídia") permite-nos hoje estar em rede, isto é, presente numa articulação de mensagens em vários sentidos, veiculadas pela escrita eletrónica, pelo som e pela imagem disponíveis e alcançáveis por qualquer computador portátil. Passar de um meio de comunicação a outro é fácil, falar de dia com alguém que está na noite do outro lado do mundo é instantâneo. Escreve-se, diz-se, mostra-se tudo o que ocorre, imediatamente. A tal ponto que, visionário, já no princípio dos anos 60 do século passado, Marshall McLuhan dizia : "A mensagem é o medium" (o meio de comunicação). Reside aí o motivo de uma primeira interrogação: como se mantém e evolui a identidade de cada um,sem o tempo (que é ocasião de reflexão e circunstância de densidade,de substância) a dar-lhe a distância necessária a definir-se? A referência do Marquês de Sarolea a "The Triumph of Vulgarity" - que aliás foi mais tarde o título de um livro de Robert Pattison, com o subtítulo "Rock Music in the Mirror of Romanticism" - pode traduzir algum elitismo aristocrático, mas levanta uma segunda interrogação: onde poderá levar-nos a democratização global da transmissão de conhecimentos e ideias, de valores enquanto referências éticas e estéticas, numa rede em que se torna impossível - para quem não tenha educado, na família ou na escola, o espírito crítico - distinguir entre propostas e autores com maior ou menor fundamentação? Na verdade, como já McLuhan observara, "a tecnologia não produz efeitos ao nível das ideias e dos conceitos; o que ela muda, sim, a pouco e pouco e sem encontrar a menor resistência, são as relações dos sentidos e os modos de percepção". Penso que só será possível viver em rede humanamente - como ser racional e livre, pessoa única mas em relação - se as famílias e as escolas, em vez de despacharem as crianças para o "surfar a net" ou o "zapping" televisivo, trabalharem na construção das personalidades, pela aprendizagem da reflexão e do tempo, do espírito crítico e do juizo. Do respeito do outro e do diálogo, apenas possíveis se em presença estiverem identidades diferentes e que convivam. Cito um jovem filósofo francês, Jean-Claude Monod: "O poder neo-liberal funciona cada vez menos pela interdição e cada vez mais pela liberdade, de circular, de consumir. Não é um poder que proíba, mas empurra para um comportamento. Como diz Axel Honneth, daí resulta uma forma de coisificação do indivíduo, uma incitação a apresentar-se a si mesmo como um produto: classificamo-nos, damo-nos notas de mais ou de menos,subimos ao palco. Nas redes e novas tecnologias, adotamos um formato, um estilo, uma maneira de ser. Foucault falava da pressão do parecimento, inclusive no interior de movimentos de emancipação". Tal desejo de assemelhar-se, de ser parecido com todos, é inato ao ser humano. Na educação das crianças, sabemo-lo bem, o exemplo dado é fundamental: funcionamos muito, em pequeninos, por mimetismo. Mesmo a norma social, antes de ser direito positivo, responde à necessidade de pautarmos uns pelos outros, os comportamentos. Por sso a expressão "normal" tanto tem a ver com o normativo como com o habitual. Mas o que dantes resultava da convivência das pessoas, presentes umas às outras, é hoje, cada vez mais, produzido no isolamento de quem se encontra ligado ao telemóvel, ao televisor, ao computador, que assim tornam virtual o encontro, e simultâneamente condicionam uma visão do mundo e dos outros em que o que parece é. E em que os afetos já não ligam, porque se vão tornando na projecção narcísica de sonhos e desejos próprios... Por isso também as escolas não devem ser fábricas de habilitações e diplomas, mas centros de convívio, nesse preciso sentido de lugares onde se aprende a viver com os outros. Daí a importância das atividades ditas "extracurriculares", desportivas e recreativas, culturais e turísticas. É mais positivo da sociedade futura formar gerações que vejam mundo, e aprendam a pensar e distinguir valores e ocasiões,do que produzir robôs cujo "software" é a instrução administrada e cuja circunstância é a confusão de si com uma rede de informação electrónica em que não se controlam. Temos assistido, hoje em dia, a movimentos de massas humanas, estimuladas e arrebanhadas por mensagens anónimas e motivações que exploram simplisticamente frustrações (v.g. as "primaveras árabes" e várias manifestações de "indignados"). As transmissões televisivas de debates parlamentares ou entre os chamados "comentadores" revelam um aflitivo vazio de ideias, na repetição previsível de lugares comuns "programados"... É tudo sempre "mais do mesmo". Não se interpela, nem desafia a inteligência do outro para a análise cooperante e a procura de soluções. Tudo são mensagens publicitárias, nem já política se faz, mas apenas, roboticamente,"marketing" político. Falta-nos estatura intelectual e moral, entretemo-nos com o episódio, não conseguimos ver nem por cima nem para além dele. Nunca a mesquinhez foi tão vaidosa, nem tão curta a miopia. Nem tão potente esse misterioso instinto de aniquilação... Por regra, os políticos - que se tratam de "líderes" e "governantes" - discursam (nem sempre procedendo, depois, em conformidade) para os seus mercados internos, onde mais se lhes projecta e ecoa a vaidade, e se ganham votos. Qualquer cidadão atento aos sinais dos tempos sabe, p. ex., que a "crise" económica e financeira do seu país não tem solução possível num quadro político nacional, nem tampouco no cumprimento de medidas impostas do exterior, altamente gravosas para os povos, e apenas servindo para o contentamento possível de credores estrangeiros. A questão de fundo é saber como poderemos encontrar o caminho diplomático, político e jurídico, que nos conduza à superação do grande défice - que o vazio de instituições, normas e comportamentos internacionais gerou: a ausência de democracia global num mercado global. Antes de que a guerra em que, inconscientemente, já estamos envolvidos, assuma proporções militares. O capital que por aí anda à solta pode alimentar megalomanias políticas hegemónicas... Todas as 6ª feiras, de 27 de Julho a 19 de Outubro de 2012, fui confidenciando, no blogue do Centro Nacional de Cultura, reflexões que me habitam e perseguem interiormente. Todas, desta ou daquela maneira, vão desaguar no mesmo mar de interrogações (quando me sinto optimista) ou de preocupações (quando menos esperançoso): será ainda possível ganharmos uma consciência moral para os novos tempos? Como reacreditaremos a função libertadora das elites (não digo a frustração ditadora de quem se sente minoritariamente com razão, nem o papel condutor,no sentido de um fio de cobre, de quem se salvaguarda a si por "surfar" na onda explosiva das massas), função libertadora das consciências e tão necessária ao exercício do juízo pessoal, sem o qual não haverá democracia possível? Estaremos irremediavelmente intoxicados? O silêncio, como meditação no tempo que nos colhe, é a circunstância da prudência. A prudência não é "sonsice", nem reserva mental ou hipocrisia. Não é cálculo. É a abertura interior à vontade de benquerer. Para que, vencido o egoísmo, a generosidade seja um ato inteligente verdadeira vontade de fazer bem. Tenta evitar a precipitação. Ocorre-me um exemplo extravagante mas real: o atentado mortífero e bárbaro de 11 de Setembro de 2001 foi rejeitado por muitos muçulmanos e seus representantes, que não o aceitaram nem reconheceram como ato islâmico; por cautela, as vozes oficiais do "Ocidente" também proclamaram que não devemos confundir alhos com bugalhos; mas um presidente dos EUA, talvez exprimindo o que ia no subconsciente de muitos, ao lançar a guerra contra a Al-Qaeda e (porquê?) o Iraque, falou em "CRUZADA contra o terrorismo"! E é frequente ouvirmos, aqui e ali, vozes que insistentemente querem confundir o Islão com o Mal... Por isso também aplaudiram as "primaveras árabes" como sabotagem interna do mundo muçulmano. Ora, se quisermos construir a paz pelo diálogo, teremos de ser, primeiro, o que somos; e também os que querem perceber o Islão na sua diferença. Traduzirei uma carta de Camilo Maria, que nos fala da acção do padre Chenu (dominicano, Marie-Dominique de seu nome em religião) na fundação do "Institut Dominicain d´Études Orientales du Caire". Hoje, para o Cairo devíamos olhar todos, a ver o que dará a experiência de governo da Fraternidade Islâmica ao futuro da democracia no Egipto. E nos países muçulmanos que, a sul, são a cintura da Europa. Assim responderia eu, em 2013, para o Céu, à carta anterior do Marquês de Sarolea. A tal em que o senti cansado.
Clifford James Geertz foi professor em Princeton e ainda hoje é considerado um dos antropólogos mais influentes dos Estados Unidos. Para o saber antropológico o conceito de cultura abarca inúmeras dimensões, até a da linguagem, a dos valores e leis.
Com Clifford, com Claude Lévi- Strauss entre tantos outros, intui-se a cultura como princípio estruturante da vida, insusceptível de ser enclausurada pois que ela é o próprio desafio, o marco coerente que se desenvolve na raiz da sua própria criação ou fruição.
Quantas vezes ao ler um livro sobre um determinado tipo de sociedade, sinto a necessidade de pensar experiências minhas em relação à sociedade em que vivo, e, nesse ângulo, se coloca a reflexão da árvore, a obra dos dias que vão sendo e as suas respostas ou processos.
Uma hora, chega sempre uma hora, em que começa a surgir-nos a necessidade de uma espécie de decantação dos significados e torna-se necessário reforçar a coragem do seu entendimento, da sua força para reflectir e actuar de acordo.
É então chegado o momento da qualidade criativa de cada um não recear partilhar a sua energia com o mundo que a envolve com os outros no dia-a-dia de muitas respostas vazadas de uma incomensurável distância de.
Tenho reflectido nesta temática inerente à cultura e sobre o próprio conteúdo do direito à cultura, e, surge-me como necessária, a constatação de muitos géneros a que chamaria de impossibilidades culturais. Na verdade, o problema da natureza jurídica do direito fundamental à cultura recoloca-se nas dimensões objectivas e subjectivas, muitas vezes desinseridas do património cultural a que se destinam ou de onde surgiram.
Certo é que a pessoa que se interroga profundamente é aquela que sabe qualquer coisa e que contamina o ambiente com o adubo mágico da interrogação.
Assim, não cessa esta pessoa de encantar-se com a árvore num humano sinal do seu direito face ao mundo; face à completude que a terra, caminho vivo que incita, lhe transmitirá que a vida, aquém se não fique.
« Moldam-se as plantas através da cultura, os homens através da educação», disse Rousseau.
A cultura é também o requinte do indivíduo que reflecte o seu progresso da consciência; a realização da natureza humana; a travessia da vida de cada um como mineiro de lágrimas e alegrias, como primeira e última comunhão ao beiral da janela do
Desembarcados que fomos em Naxos, todos rumámos ao Templo de Apolo sobre as águas, simbolizado por um pórtico recortado no azul e muito mármore jacente. Quase nem demos pelo guia que se nos foi juntando pouco a pouco, discreto e seguro, com um discurso ligado e sereno. Fez a sua vida no mar, é reformado, "sempre destacado para receber VIP". Nenhum arroubo, fundo severo, tudo o que viveu e sabe está à vista, "não precisa de livro nem de arquivos".
Já relatei na quinta crónica como, depois de ouvirmos uma muito completa dissertação de José Pedro Serra sobre o mito que envolveu Teseu, Ariadne, o Minotauro e o aparecimento de Dionísio junto a Naxos enquanto Teseu quebrava a palavra dada e se fazia ao mar, o Professor se propôs traduzir o que acabava de dizer em intenção de Yirolas. Este declinou cortesmente, compreendera tudo, seguiu a exposição mergulhando fundo, até às raízes greco- romanas das palavras. Acrescentou mais tarde, perante a minha admiração, que sempre assim agiu na vida, residindo o seu segredo na profundidade e rapidez da imersão.
Falhámos o encontro com a pessoa que nos ia abrir a catedral ortodoxa. Foi a casa do bispo e pudemos voltar à tarde. Aqui revelou a qualidade do seu coração e uma sensibilidade requintada ao afagar cada ressalto, exaltar a preciosidade de pedras e metais, descrever um ícone raro, acender uma vela votiva misteriosa.
Fez absoluta questão de que não deixássemos de subir ao Templo de Deméter que domina a parte mais fértil da ilha e acompanhou- nos ao pequeno museu em frente para melhor contemplarmos o mármore cristalino da região. Conduziu-nos depois pelos dédalos da cidade antiga até à catedral "dedicada a Jesus Cristo" e ao museu das peças mais raras. Tudo com a mesma convicção, o mesmo sorriso interior.
Ao voltarmos, chegámos à conclusão de que somos exactamente da mesma idade. Disse eu: "estamos a envelhecer". Respondeu ele: "claro que somos velhos. Mas todos os dias vou nadar e ver os meus netos".
Despedimo-nos com um aperto de mão terra-a-terra, ático, ético. Trago-o à colação porque foi ele que preferi em toda a viagem. "Um homem pode enganar-se na sua parte de alimento mas não pode enganar-se na sua parte de palavra.” Sophia, mas também Jorge Luís Borges:
"Diz-se que Ulisses, saciado de prodígios, Chorou de amor ao ver a sua Ítaca Verde e modesta; e a arte está nesta Ítaca De verde eternidade, não de prodígios".
Temos presentes as duas peças de Almada que retomam um certo ambiente histórico e social, no plano e na cronologia da época em que foram escritas. São elas “Deseja-se Mulher” (1928), peça referencial do teatro de Almada, e “S.O.S” (1928-1929), peça complementar da anterior mas de que sobrou apenas o 2º ato, publicado em 1935, no número 2 da revista Sudoeste.
Recorde-se aliás que a realização cénica do “Deseja-se Mulher” foi feita em 1963 na Casa da Comédia, por iniciativa do CNC e encenada por Fernando Amado.
Mas o que aqui hoje queremos lembrar é que, segundo o próprio Almada, ambas as peças integrariam um mesmo texto, ou pelo menos ambas decorrem de um projeto teatral. Almada nos diz, na “Notícia sobre um Ato de Teatro que a seguir se Publica”, o qual antecede, precisamente, a publicação do 2º ato do “SOS”.
Faça-se uma longa transcrição, pois é muito mais interessante ler (ouvir) Almada:
«No ano de 1927, em Madrid, comecei a trabalhar uma peça de teatro e na qual a palavra “Unidade” fosse o grande motivo (…) Como porém não era um ensaio o que me propunha especular com essa palavra que reunisse a todos em legitima humanidade, mas sim um espetáculo de teatro onde comunicasse imediatamente com os públicos, depressa a palavra “Unidade” foi completada pelas de “Tragédia da unidade”. (…) Mas na minha mesa de trabalho surgia uma novidade: era materialmente impossível, dentro da aceitação que o público ainda tem do teatro, conduzir o assunto reunindo-o numa única obra».
E daí, diz no mesmo texto Almada, a criação de duas peças: “a primeira dessas duas obras recebeu o título de Deseja-se Mulher e a segunda é o
S.O. S.”
E de facto, analisadas no seu necessário conjunto, percebemos o que as une e o que as complementa - e não, note-se bem o que eventualmente as “separaria”, porque ambas constituem a “Tragédia da Unidade”. Tragédia no sentido clássico de destino, pois o amor e os encontros e desencontros de Ele e Ela, na primeira, não são diferentes, na essência, dos encontros e desencontros do Protagonista e da Sua Noiva na segunda.
E mais: os sucessivos ambientes do “Deseja-se Mulher”, a começar na “boîte-de-nuit” e a terminar no “mar de ondas rudimentar” onde a sereia discute com o marinheiro - na sua simbologia próxima e percursora de certo teatro do absurdo, conciliam-se bem com a “pequeníssima sala de espera “ e com o “gabinete da direção” do “grande jornal O Estado, Diário nacional” do segundo ato (repita-se, único que chegou até nós) do “S.O.S.”
Ambas as peças conciliam uma minuciosíssima e de início aparentemente realista descrição das cenas, com um ritmo de falas e ações que contraria e desmente esse realismo aparente. Por que estamos perante uma extraordinária antevisão, em muitas cenas e situações, do que viria dezenas de anos depois, com por exemplo Beckett ou Ionesco… o que mostra a indiscutível modernidade do teatro de Almada.
E as duas peças são uma expressão teatral “única”, mesmo considerando que “Deseja-se Mulher” retrata o amor-individuo, e “S.O.S.” retrata o amor-coletividade. Porque, tal como diz o Protagonista do “S.O. S.” - «a humanidade não pode continuar assim com os seus pedaços para cada lado» pois «temos de colaborar todos em edificar a obra única por cima de todas as cabeças da terra!».
Almada diz que “no teatro todos são um”. E o lema-grafismo do “Deseja-se Mulher” não é precisamente… “1+1=1”?
Mesmo aos distraídos, o quadro não escapa. Anda no ar até com uma qualquer nota de non-sense. Os dias de Ascot e as noites de teatro invadem o Tube com uma abertura ao feerismo edwardiano, a colorir a cidade em doses variáveis de amusement, fashion, sport, and manners. ‒ La saison à London! Os Ascottians e a famosíssima corrida de cavalos inaugurada pela Queen Anne em 1711 têm tanto a ver com chapéus altos e vestes finas, quanto com o pretexto para o Windsor Castle regressar a um tempo marcado por um carismático monarca, King Edward VII, historicamente reconhecido como… – Humm. A pleasure-loving one? A 2013 Royal Ascot Racecourse vive hoje o Ladies Day e ainda decide a quem a golden cup, mas contém já o contraponto televisivo do hard working politician que é, sem casaca e gravata, Mr David Cameron reunido em Belfast com os grandes do mundo em mais um vazio G8 Summit. Aos amantes de equídeos basta notar que o going está “good to firm”.
A Edwardian experience usa chegar por estes dias quentes, nas proximidades do aniversário da Queen Elisabeth II, comemorado a June 15th com o Trooping the Colour na Horse Guards Parade, aqui mesmo nas bandas de St James. Mas sobretudo chega ao toque de Wimbledon e Bloomsbury, aquando da invasão dos racegoers à volta de Waterloo station para o National Horse Meeting. O resultado é assaz divertido. Porque os jazzy hats então iluminam a fratura social e latentes class wars, este é também um período de testes de velocidade nas hostes de Whitehall. Os campeões evoluem no Horsewalk: Pre-parade, Parade ring and… on the Track. Ao som, claro, de um ladies and gentleman, make your bets.
Os players na edição de 2013 esgrimem argumentos sabidos. Com as aspirações da classe média massivamente submetidas a doce dieta de austeridade, entre o Ring e o Enclosure garden, a Tory democracy testa o excitement de calibrar a estratégia da destruição do emprego contra o que uns designam como protecionismo social e outros equacionam como civilização. O Prime Minister tem até consigo o aguardado Parliamentary Commission on Banking Standards report. São 571 páginas ao todo e o respetivo Chairman veio a público esclarecer que as conclusões apontam um severo controlo do setor financeiro. Para Mr Andrew Tyrie, o porquê de tal regulação é simples: “Bankers and banks are in a position where they can not just do harm to their shareholders but do harm to the whole economy and end up putting taxpayers on the hook”. Ora, depois do coro de críticas contra as malfeitorias da City, resta esperar para ver quais as lições extraídas do desastre global que, desde 2008, os contribuintes pagam duramente. E isto, sem que Westminster caia na intemperança da anti-banker mob ou no ilusionismo do fazer algo para tudo continuar igual.
Mas a Ascot season traz mais que a magreza das expetativas. A small talk around insiste nos equinos. A natureza do evento, por modelo, é objeto de elegante digressão. Para uns nada diverso é que o Royal picnic, para outros, porém, consiste no Royal garden party. Para a maioria cá de casa, trata-se mesmo de algo mais: The derby. Aqui chegados, valha o good old King Edward: No panic! Invoque-se o White Uffington Horse, papagueie-se que o mais alto ginete é the English sacred beast e a pageantry está coloridamente a postos. Afinal, quem senão o Desert Orchid ou o Seabiscoit são icásticos campeões. ‒ Be carefull, dear. Set a beggar on horseback, and he'll ride to the devil!
Idealizado pelo arquitecto suisso Bernard Tschumi, o novo museu da Acrópole, inaugurado em 2009, é uma estrutura de vidro, aço e betão concebido com tal rigor matemático que a luz grega, na sua exactidão e nas suas transparências, volta a irradiar o mundo.
Desde a entrada, em frente da larga escadaria, e cada vez que uma nova perspectiva se depara, pensamos na Electra de Sófocles: "Ó pura luz, e tu planície do ar criada à medida exacta da terra".
No espaço das antiguidades arcaicas os corpos das estátuas, libertos das habituais peias dos museus e como que imobilizados no seu sorriso por um estranho sortilégio, parecem respirar uma felicidade humana.
No espaço imenso dedicado ao Parthenon os frontões as métopes e os frisos - originais, vestígios ou reconstituições, mármores ou gessos, emanam a sua luz própria, sem que de nós se apodere nenhuma noção de perca, antes surja uma nova exaltação graças à mestria com que foram diferenciados materiais e colmatadas lacunas.
A sucessão de cavalos e cavaleiros, de joelhos proeminentes prodígios de escultura, muitos atribuídos a Fídias; a sequência dos efebos portadores de hídrias destinadas ao sacrifício em honra de Atena, contrastam, no seu ímpeto e no seu fogo, com algumas métopes de grandes hiatos, pontos de interrogação numa escrita que desafia os tempos.
Olhado de cima, a partir do Parthenon, o novo Museu, na sua bela e discreta proporção, parece uma lanterna mágica pronta a iniciar o seu espectáculo onírico.
Não creio que se deva perpetuar o esforço da Grécia para rehaver as métopes que Lord Elgin levou para Londres e figuram no British Museum. É verdade que atitude semelhante levou à repatriação de preciosas jóias desaparecidas dos túmulos micénicos de Aidonia, importante património da idade do Bronze muito esclarecedor sobre as relações existentes entre centros micénicos e Creta e que em 1993 apareceu à venda por preços ditirâmbicos numa galeria de arte em New York. Mas os ingleses também fizeram prodígios na conservação das maravilhas à sua guarda, reinstaladas quando a nova cúpula de vidro de Norman Foster encabeçou uma profunda renovação no British Museum a as esculturas do Parthenon aí passaram a desfilar e respirar connosco corpo a corpo na sua insuperável beleza. É o espírito da Grécia que se expande e aquece com a luz do Egeu latitudes mais sombrias.
Quando em 1990 viajámos à Sicília, uma noite numa praça em Palermo, Sophia contemplava uma fonte de muitas estátuas profusamente iluminadas. As estátuas enchiam e transbordavam a fonte, quase enchiam a praça. Disse-me num sorriso: "O povo das estátuas! "Nunca esqueci e com ela, com esse sorriso e com esse espírito, percorri o novo Museu.
À saída reparei que engrossara substancialmente a multidão de visitantes, na sua maioria jovens. Ao poder dispersar-se entre a grande escultura que marcou a nossa civilização, ao senti-la reviver, conviver com ela, sentir-lhe a divina humanidade, esta nova geração a outros títulos tão conturbada poderá encontrar um novo Sol, alegria, um novo alento.
De novo me ocorreu Sophia, agora por escrito: "A Grécia permanece porque é actual: porque está na pedra, na luz, na noite, no bosque, no liso do mar, na curva da vaga. É nesse sentido que Byron diz que o sol é grego."
Respiro fundo, a caminho do aeroporto. "Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage".
Regressado de Atenas, com a enorme satisfação de participar no jubileu da Europa Nostra e no congresso europeu do Património Cultural, depois de há um ano, termos tido esta mesma iniciativa em Lisboa, faço-o com os olhos cheios de muitas memórias numa peregrinação às raízes da civilização.
RAÍZES ANTIGAS Muito mais do que as circunstâncias imediatas, o importante é percebermos que as antigas raízes não podem ser esquecidas, e que o diálogo entre as civilizações se faz sempre dentro de cada geração e entre gerações. A hospitalidade foi magnífica, Costa Carras, presidente da Elliniki Etairia, multiplicou-se em simpatia, para que os cinquenta anos da Europa Nostra fossem devidamente assinalados da melhor maneira. E foram na dignidade que se esperaria. Apesar de alguns pequenos contratempos iniciais que nos atrasaram a chegada, desde a greve dos controladores aéreos franceses à greve geral grega, que se seguiu à decisão do fecho da televisão pública, depressa nos pudemos integrar no Congresso, graças à amabilíssima e aristocrática receção de Edmée Leventis, com a melhor mesa grega e um panorama esplendoroso da Acrópole, iluminada naquele cair de tarde, nas vésperas do início de um tímido verão, que não quis deixar de se manifestar, por contradição, com uns breves e inofensivos pingos de chuva, que praticamente se desvaneceriam nos dias seguintes. Entretanto, havia notícias do grupo que deambulava poeticamente no mar Egeu, a recordar a poesia de Sophia de Mello Breyner. Tudo se associava. E ouvíamos alguns remoques sobre o pouco cuidado com a preservação do património cultural e sobre o excesso de grafitis a desfearem monumentos e lugares magníficos. O incansável Embaixador Ferreira Marques dá-nos informação de que, no âmbito das comemorações do dia de Portugal, houve ocasião para recordar o filme «A Noite em que Fernando Pessoa se encontrou com Konstantinos Kavafis», realizado em registo onírico e extremamente belo por Stelios Charalambopoulos. A obra foi muito premiada, e o mais espantoso é a ligação imaginária, entre os dois grandes poetas do século XX, de Portugal e da Grécia: Kavafis (1863-1833) e Pessoa (1888-1935) foram contemporâneos e hoje são venerados como referências maiores das poesias grega e portuguesa. Kavafis praticamente nunca viveu na Grécia, mas nunca deixou a língua grega como ofício seu, apesar de viver em Alexandria e de aí exercer uma função na bolsa de valores egípcia. Esse diálogo poético imaginário ganhou atualidade. Há um ano, os europeus, mais ativos e cientes dos perigos, gritavam: todos somos gregos. O tempo passou, isso tornou-se ainda mais atual. Todos sabem (até pelos perigos internacionais) que precisamos de apoiar os gregos, com europeus. E ouvimos Kavafis no seu belíssimo poema Ítaca, que é um autêntico hino de uma Europa que sabe que não sairá da crise se não reunir esforços e energias, lembrando-nos de Odysseos e de Ítaca. De que estamos a falar quando falamos de Europa? Do que se trata é de perceber as raízes e as diferenças, para que as complementaridades se não tornem inúteis. E se falo de Kavafis e de Pessoa, não deixo de referir Sophia, a poeta que melhor compreendeu porventura o universalismo do Mediterrâneo, a começar na Grécia e continuando a oriente (em terras que hoje trazem tantas ameaças e tanto risco de destruição). Oiçamos três apontamentos, que não posso deixar de lembrar quando atravesso a muito agitada Plaka, com os restaurantes cheios com a alegria de quem celebrava a luz e o sol do sul, muito para além as vicissitudes quotidianas, que muitos desejam esquecer. «Quando partires de regresso a Ítaca, / deves orar por uma viagem longa, / plena de aventuras e de experiências. / Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, / um Poseidon irado – nãos os temas, / jamais encontrarás tais coisas pelo caminho, / se teu pensar for puro, e se um sentir sublime / teu corpo toca e o espírito te habita» (tradução de Jorge de Sena). O dois outros textos são de Sophia, que não poderia deixar de guiar nossos passos nesta viagem, falando da ilha de Hydra: «Odysseus – Persona / Pois de ilha em ilhas todo de percorreste / Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa / Até às rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias». Mas ainda há mais. Não podemos esquecer nestas deambulações na cidade de Atenas o testemunho da poeta: «Fui ao Parhénon sozinha sob o sol a pique. Outras ruínas estão comidas, gastas, decaídas, velhas, desfeitas, como se a sua vocação fosse corromper-se e desfazer-se. Aqui não. Aqui tudo estoirou. É um eternidade despedaçada e vamos tropeçando nas pedras antigas. Aqui a vocação é de eternidade (…). Tudo está quebrado, mas a presença do sagrado está inteira e é quase difícil de suportar, de respirar. É qualquer coisa mais do que a beleza. Caminho tonta de sol e de solenidade. Esta é a mais espantosa ruína por sua natureza própria, corruptível, mas que foi quebrada pelo desastre» (12.9.63). Felizmente, não apanhei o sol a pique. Eram 8,30 da manhã quando fui, o céu estava nublado e a temperatura amena. Ainda havia pouca gente e fui privilegiado, para compreender as obras extraordinárias que aqui têm lugar. Depois de mil vicissitudes e erros, agora procura-se restaurar e conservar, sem o amadorismo de há mais de um século. Os Propileus estão a ser alvo de uma ação notabilíssima, que a Europa Nostra reconheceu num dos seus grandes prémios. O pequeno templo de Atena Niké, à direita da escadaria que nos faz chegar aos Propileus, onde as coberturas são recriadas regressa à sua pureza… O Parthénon também está a sofrer uma ação intensa que procura tornar mais adequada a consideração deste centro vital da civilização. O Erechtéion – em honra de Atena e de Poséidon – completa o conjunto com a inconfundível tribuna das Cariátides, que nos extasia. E descemos, por fim, pelo teatro de Dionísio Eleuthéreus, abrindo caminho aos tempos áureos da cultura… «Oh! Lumière! Marbres! Monochromie! Frontons tous abolis, mais point celui du Parthénon, contemplateur de mer, bloc d’un autre monde, celui qui prend un homme et le place au-dessus du monde». Quem o disse foi Le Corbusier, capaz de compreender a força dos símbolos, que nos fazem lembrar Péricles dirigindo-se aos seus compatriotas, avisando-os da necessidade de não cometerem os erros da facilidade e do triunfalismo, nesse momento, em que a guerra do Peloponeso ditou que a potência marítima, à partida favorita, se deixasse vencer pela continental e pelo modelo de Esparta. E voltamos a reler o diário dessa visita de Sophia à cidade: «Quando saímos do Museu Nacional andámos pela cidade moderna, que é horrível, duma fealdade triste e sem explicação (…). Vamos ao fim da tarde ao mercado. Extraordinária abundância de fruta belíssima: melancias todas vermelhas por dentro, pêssegos, uvas, figos, tomates. Fruta, fruta, fruta. Nunca vi tanta fruita junta nem tão bonita». Mas em falando da Acrópole: «Beleza inigualável, leve brisa, mar brilhando ao longe. Maravilhoso o enquadramento da paisagem. Mar de pedras à roda do Parhénon. (…) Mas como Ulisses estou sempre a pensar na minha casa. Fazem-me falta notícias diárias». E vem-nos à lembrança «Um Adeus aos Deuses – Grécia» de Ruben A., descrição apaixonada da terra dos deuses, a que não falta esse mito fantástico do museu fechado, para que o escritor pudesse passear-se entre as estátuas, fazendo jus à obra extraordinária de Sophia «O Nu na Antiguidade Clássica»… Pode discutir-se tudo sobre a Grécia de Sophia, ou sobre Atenas de hoje e de ontem, ou sobre as crises atuais, mas a verdade, como Frederico Lourenço disse «Sophia inventou uma Grécia própria (…) É uma Grécia construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal». O búzio de Cós diz tudo: «nele não oiço / Nem o marulho de Cós nem o de Egina / Mas sim o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre minha alma foi criada». Na visita ao novíssimo Museu da Acrópole, onde nos reunimos, conversámos, debatemos e almoçamos, pudemos usufruir a beleza dos vários tempos – épico, lírico, dramático. Que dizer de um programa cheio, desde a arqueologia antiga ao período bizantino, passando pela Ágora e pelo monte Pnyx, invocando a democracia grega, e os passos dados para o respeito da vontade dos cidadãos, alargando progressivamente o seu lugar ativo… Viemos celebrar o património cultural. Reconhecemos os prémios. O nosso grande prémio para «SOS Azulejo» foi o reconhecimento de um trabalho de pequenas formigas, para preservar o que tem valor. A inclusão do Convento de Jesus de Setúbal nos 7 projetos a merecer especial apoio foi uma responsabilidade especial. E mais do que Sólon e Pisístrato, é a voz de Clístenes que retemos, pela força de transformar a aristocracia em campo de decisão dos cidadãos…
Longos anos visitei, sem adivinhar o que o destino me reservava, o museu Memling no Hospital de S. João em Bruges. Era sempre irresistivelmente atraído para o painel da direita do Tríptico de S. João Baptista e S. João Evangelista, chamado Retábulo dos dois S. Joões. Com o seu extraordinário realismo óptico, Memling representou aí a visão apocalíptica da ilha de Patmos.
Sentado numa rocha revestido de ampla túnica encarnada - esse encarnado que apenas e sempre em Memling reaparece - o santo olha em frente, com a pena mergulhada num tinteiro; ergue os olhos para o alto onde visões surgem sobre a água e sobre o céu num espectáculo novo e único para a época.
Deus está sentado num trono rodeado por colunas, um halo esverdeado e um arco-íris,"tendo o aspecto do jaspe e da sardónia" (Apoc. 4:2 - 3). Em redor sete lâmpadas acesas e sete tochas ardentes e relâmpagos que saem do arco-íris (Apoc. 4: 5 - 6). E sentam -se os vinte e quatro anciãos de que treze são visíveis, vestidos de claro e coroas de ouro (Apoc. 4:4), tangendo instrumentos vários. O trono assenta numa superfície líquida onde se reflecte "um mar límpido como cristal" (Apoc. 4:5). Deus está acompanhado por quatro animais recobertos de olhos e com seis asas, semelhantes a um leão, um touro, um homem e uma águia, "os quatro Vivos" (Apoc. 4:6-8). Toda esta visão se inscreve no círculo de um segundo arco-íris, que se reflecte no mar e liga simbolicamente ao santo .
Deus segura na mão direita um livro com sete selos (Apoc. 5:1). Pousado no mais vasto arco-íris um Anjo aponta para o livro e dirige-se a João, "digno de desvendar os selos" (Apoc. 5:2). Um Cordeiro com sete cornos e sete olhos rodeia o livro entre as suas patas (Apoc. 5:6 -7), quebra sucessivamente seis selos, e aparecem os quatro cavaleiros. O primeiro branco montado num cavalo branco a desfechar uma seta, o segundo de armadura negra num cavalo encarnado, o terceiro de longa toga sobre um cavalo preto arvora uma balança e o quarto, a Morte montada num cavalo castanho, é perseguido por uma cabeça de monstro corpulento que tritura corpos humanos contorcidos (o Hades, Apoc. 6:2 - 8).
Ao fundo vemos um eclipse do sol e estrelas cadentes. De costas para o vidente um Anjo incensa Deus, de joelhos em frente de brasas que serão lançadas sobre a terra (Apoc. 8:3 - 5) e provocarão sismos. À direita um Anjo colossal de pernas de fogo, rosto ardente como o sol, rodeado pelo arco-íris, um livro na mão (Apoc. 10: 1 - 2).
No alto do céu a Virgem e o Menino que escapará ao ataque do dragão de fogo com sete cabeças graças à intervenção de um Anjo. A cauda do dragão varre estrelas cadentes e estas por seu lado prenunciam novas catástrofes.
Toda a obra de Memling exprime misticismo e devoção, uma nova organização aberta e límpida do espaço, a cristalização perfeccionista do retrato na procura de uma beleza platónica.
Depois do desembarque, ao sair da gruta onde se desenrolava uma cerimónia religiosa segundo o rito ortodoxo, olhei em frente e deparei com o cenário do Apocalipse. O mesmo mar translúcido, os mesmos ilhéus e enseadas, a vegetação variada. Não duvidei por um instante que o santo que sobrevivera à tortura do azeite escaldante e ficara incólume ao beber uma taça de veneno se sentara sobre aquela mesmíssima rocha enquanto ouvia o que o pintor flamengo transcreveu.
Patmos é um desses lugares em que céu e terra se interpenetram com tal intensidade que a evolução do mundo acontece num refinamento que os séculos vindouros decifrarão.
Das preciosidades, os maravilhosos ícones, um "Ecce Homo" do Greco, os códices púrpura e as bulas douradas do Santo Mosteiro falaremos mais tarde, dissipada que seja a magia desta vivência que apenas talvez computadores quânticos pudessem abordar.
Mas falta o Minotauro, não ficou em Creta. A guia, no seu genuíno inglês de Oxford, implorava que não nos dispersássemos, pois o acesso ao coração da ilha passa por uma estrutura de inextricáveis labirintos, protecção contra os piratas. Repetiu vezes sem conta a palavra "maze".
Chegados ao cimo, na praça, deparo com um hermético edifício de estrutura vetusta e janelas assimétricas, portadas azuis cerradas, encimado por nichos de pedra cegos. Fita- me como colosso pronto a investir. Pergunto quem é. Sabe e não sabe. Ali acaba o Labirinto.
O meu sonho vestiu-te esta tarde de Turandot... Vê tu bem, sonho muitas vezes acordado, até em charlas à hora do chá, com senhoras japonesas! Cabias imensa no abraço da nossa ternura, quando a Callas, na gravação de 1957, no Scala de Milão, clamava cantando: "Padre Augusto...conosco il nome dello straniero! Il suo nome é...Amor!" Vencida pelo amor de Calaf, que acertara na resposta aos três enigmas e assim escapara à morte reservada aos seu pretendentes, Turandot, a filha do imperador da celeste China, todavia tivera o destino dele preso pelo capricho dela. Se tivesse querido, denunciaria ao povo o verdadeiro nome desse príncipe desconhecido, não por tê-lo descoberto mas porque ele lho confessara. Confissão feita, não por obrigação, mas por renúncia à reclamação do direito que sobre ela já tinha como consequência do acerto com que respondera aos enigmas. Calaf, o príncipe desconhecido, não a quisera por direito de conquista, e por isso lhe dera, a ela, a oportunidade de o repudiar e condenar à morte, já fora do prazo estipulado no concurso: se Turandot adivinhasse o seu nome, ele renunciaria e entregar-se-ia à fatal sentença da Filha do Céu. É assim a entrega do amor: faz-se em função da pessoa amada, não em função de si mesmo. Na ópera de Puccini, a revelação final, o apocalipse do nome dele é também a descoberta do íntimo nome dela, que nunca quisera ou sempre receara proclamar. As perguntas enigmáticas, falam mais de desejo de vida do que de sentença de morte : "que fantasma alado vagueia pela noite, se abriga no coração, mas morre pela manhã?" Calaf responde: "La speranza!" E depois: "O que é que surge como chama, se enche de febre ou enfraquece, vermelho como o sol poente?" Hesitante,ainda grita: "Il sangue!" Finalmente,a terceira e última pergunta, a que define a pessoa: "Gelo e fogo, claridade e escuridão, fazendo de vós um escravo ou talvez um rei?" O príncipe contesta: " Turandot!" A princesa não aceitará de bom grado a verdade forte que a venceu. Ele não teima em reclamar, antes a põe, à quase deusa, perante o dilema de lhe descobrir o nome (e ele aceitará a morte) ou de se revelar o nome íntimo dos dois... "Amor omnia vincit". O libreto da ópera,por Giuseppe Adami e Renato Simoni, adapta uma peça do veneziano Carlo Gozzi, escrita no século XVIII, já fora alvo de diversas adaptações, até operáticas, algumas delas inspiradas na tradução de Gozzi por Schiller. Para mim, expliquei eu às madamas nipónicas, nesta ópera - aliás terminada por Alfano, por escolha de Toscanini, depois da morte ( e aproveitando notas ) de Puccini em 1924 - ressalta, mais do que o conflito da crueldade com o amor e a vitória deste, a descoberta do amor inscrito no coração dos homens, como princípio de criação e de vida nova. Daí saí para a "Lohengrin", em que sinto o inverso: Wagner vai buscar à mitologia teutónica as forças que se aniquilam, aquele misterioso impulso para a destruição que encontraremos também na "morte de Deus" de Nietzsche ou na barbárie nazi. Não deixa de ser curioso que ele - familiarizado com a poesia medieval alemã, onde aliás encontrou também inspiração para os "Meistersinger", "Parsifal" , "Tannhäuser" e o próprio "Lohengrin" - não se tenha deixado tentar pelas promessas de um lirismo mais doce que, mesmo quando ensombrecido pelo pressentimento de algo que se possa recear, cantava o encanto chão das coisas humanas e possíveis. Como nestes versos de Walther von der Vogelweide, cujo alemão arcaico tanto lembra o inglês que conhecemos (a inversa é que é verdadeira,claro...) que recitei às minhas ouvintes atentas, pelo seu clima " japonês" (a natureza envolvente): "Unde der linden / an der heide, / dâ unser zweier bette was, / dâ mugt ir vinden / schône beide / gebrochen bluomen unde gras. / Vor dem walde in einem tal, / tandaradei, / schöne sanc diu nachtegal..." Debaixo da tília,no chão onde foi a cama da nós dois,podereis achar,lindamente pisadas, as flores e a erva. Na orla do bosque,num talude, riu piu piu, que bem cantava o rouxinol! Contemporâneo de Vogelweide é Wolfram von Eschenbach, que celebra uma dama que, ao nascer do dia, acorda nos braços do seu nobre amigo, e grita ao dia: "Já não pode o meu amado ficar ao pé de mim. Pois de mim o afasta a tua luz". É ele o autor do " Niebelungenlied", em que "se narram inúmeras maravilhas, que falam de gloriosos heróis e de penosas provas..." Há aí evocações de távolas redondas e amores proibidos, tabus antigos como a Grécia, em que - o próprio Wagner o refere pelo mito de Zeus e Semelé - não podem durar as relações entre os deuses e os homens, pois a satisfação do desejo é destruidora. Quando Kriemhild, "cujo coração puro quisera renunciar ao amor, e vivera muitos dias sem conhecer um só homem que quisesse amar... ...desposou um muito valente homem de armas", tudo a conduziu à verificação real do sonho em que "certa noite vira um belo falcão, forte e ousado, que ela criara, ser despedaçado por duas águias". É mais ao pessimismo germânico, a esse medo de deuses malévolos e espíritos malignos, espreitando-nos do frio escuro de misteriosas florestas e pântanos, que Wagner vai buscar a inspiração para contar amores humanos, excessivos e desprotegidos. Na "Lohengrin", uma maldição paira sobre os cavaleiros do Graal, um freio posto por poderes luminosos mas obscuros os trava e proíbe de pronunciar o nome e a linhagem. Como Kriemhild, Elsa von Brabant apaixona-se: eis que, no momento exato da humilhação final da dona por Friedrich von Telramund - o rejeitado pretendente à dama e à coroa que, sob o feitiço da bruxa Ortrud, a acusa de ter morto o irmão, herdeiro do Brabante - a salva um guerreiro desconhecido (aí tão ignoto como o príncipe da Turandot), que lhe conquista a mão e o amor que, afinal, já a habitava (tal como Turandot reconheceria Calaf já dono do seu coração...). A celebração do enlace dos amantes obedece a uma condição: Elsa nunca deverá perguntar a Lohengrin qual o seu nome, nem a sua linhagem. Mas qual Orfeu, olhando para trás para ver se Euridice o segue no regresso à superfície da terra da vida, Elsa pede uma resposta. Lohengrin poderia ter respondido como Turandot dando um nome a Calaf. Neste caso: o meu nome é amor! Mas não confessa. Fica sujeito à lei da cavalaria a que pertence. Ponho a tocar a "Lohengrin" que trouxe, uma gravação de 1964, com a Wiener Philarmoniker, dirigida pelo Rudolf Kempe, sendo Jess Thomas o Lohengrin e fazendo de Elsa a Elisabeth Grümmer. As madamas nipónicas ouvem de olhos cerrados e coração presente, o pranto suplicante de Elsa: "Bist du so göttlich,als ich dich erkannt,sei Gottes Gnade nicht aus dir verbannt!" Sei agora que vens de Deus, não rejeites a sua misericórdia! Se esta infeliz pelo sofrimento, expia a sua culpa, não a prives da tua presença! Não me repudies,por maior que seja o meu crime! E a resposta "justiceira" do guerreiro: Já o Graal se irrita com a minha demora! Assim terá de ser, assim terá de ser: seremos separados, arrancados um ao outro! As damas gostam da música, impressiona-as o rigor do mito. Para alívio lhes conto a história de Cupido, filho de Vénus, e de Psyché, de quem a deusa do amor inveja a beleza. Psyché também quer conhecer a verdadeira identidade do seu amante, mas Cupido não quer revelar-se. Instigada pelas irmãs, ela tenta apunhalá-lo, durante o sono, para lhe descobrir a alma. Mas ele acorda e ela foge. Ele persegue-a, não para se vingar, mas para lhe pedir que se case com ele. E Zeus acederá a uni-los. Tranquilas, mais confortadas, as senhoras pedem-me mais uma história bonita. Conto-lhes o encontro de Zéfiro com Flora, e como o vento levou a Primavera para se casar com ela e depois a deixou ser rainha das flores e dispensadora do mel. Sorriem. E eu com elas, a pensar no que lhes não digo e te recordo agora: Mandaste-me, há anos muitos, um postal de Nova Iorque, com o casamento de Cupido e Psyché do Andrea Schiavone, exposto no Metropolitan. Dizias só: "Cupido serás,mas eu de Psyché nada tenho. Que nome me darias?" Respondi-te de Frankfürt, num postal ilustrado com outro quadro de um italiano de quinhentos, Bartolommeo Veneto: "Flora". E repito de cor o que te escrevi então: "Esta minha cabeça, Santo Deus! / (Será da idade ou do muito amar?) / Não acerta os pensamentos meus / na oportunidade de os acertar... / O Olimpo percorro sempre à procura / do nome que a minha deusa tem... / Mas tonto, em desvario, nessa altura / não dou com nome que te fique bem! / Quedo-me desgostoso, sem dormir / (Eu, feito pr’ó sono e pr’à preguiça!) / mas, mesmo sem cabeça, eu acho agora / um nome que me alegra e me faz rir, / promessa, primavera tão noviça: / fosse eu sempre Zéfiro...e tu Flora!" E não lhes disse. Fiz duas boas acções: fui-te fiel e poupei-lhes ciúmes escusados. Para encerrar a sessão, voltei à Turandot que grita "Il suo nome é Amor!" e o povo rejubila: "Amor! O sole,vita,eternitá! Luce del mondo é amore! Ride e canta nel sole l´infinita nostra felicitá! Gloria a te! Mas, de regresso ao hotel, com saudades tuas, ia cantarolando o lamento de Orfeu na música de Gluck: "Ché faró senza Euridice..." Traduzi esta carta de Camilo Maria ao som das mesmas músicas...mas em CD!
Escritora de uma qualidade de água no saber do ofício de escrever como poucos.
José Rodrigues Migueis, Gomes Ferreira, João Gaspar Simões estão entre os que a nomearam como escritora de peso e, no entanto, a obra literária de Irene Lisboa nunca teve o gosto do público.
Teve Irene um destino literário marcado pela injustiça e pelo cruel silêncio como muito acontece com quem é verdadeiramente superior e se faz à estrada.
Os seus livros ou eram invendáveis ou rejeitados na publicação por quem não assumia nem assumiu culpa nesta decisão ou, escorriam, muito lentamente das prateleiras quando se mostravam. Ignorada ou esquecida, a sua escrita, em jornais e revistas de pequenas tiragens, eram inconscientes da realidade raríssima de que eram portadores.
Excelente pedagoga, o seu trabalho, nesta área, foi também quase todo ignorado, sem sequer se desejar conhecer com a necessária profundidade, a teoria da educação da escola activa, que, tanta ardência de entusiasmo Irene Lisboa colocou, por ela, na sua luta.
Infeliz a nação que não deu a Irene Lisboa merecido jardim e berço e memória.
Como escutei um dia Pacheco Pereira dizer que não era compreensível que Irene Lisboa tenha sido um dos expoentes mais brilhantes que tivemos em literatura pela poesia, pelo conto, pela crónica e pela novela, e, tão pouco divulgada tenha sido, e ainda o seja, que, acrescento, a tábua quase rasa a que a quiseram condenar e que me levou também a ter a maior dificuldade no encontro dos seus livros e a pasmar os silêncios.
Formou-se pela Escola Normal Primária de Lisboa e fez estudos de especialização pedagógica em Genebra, tendo contactado com Piaget com quem estudou no Instituto Jean- Jacques Rousseau. A escrita, enfim, veio a dominar toda a vida de Irene.
Usou vários pseudónimos entre os quais João Falco, Manuel Soares e Maria Moira. Centrou-se também nas curtas formas de narrativa que denomina de crónicas ou reportagens que tanto retratam Lisboa como o rural e o serrano com uma astúcia cultural invulgar.
Jacinto do Prado Coelho qualificando-a de mulher livre num mundo atrasado, constacta também a grandiosidade da sua escrita, muito para além do tempo em que foi produzida.
Dos seus “Pequenos poemas mentais” eis:
Quem não sai de sua casa,
não atravessa montes nem vales,
não vê eiras
nem mulheres de infusa,
nem homens de mangual em riste, suados,
quem vive como a aranha no seu redondel
cria mil olhos para nada.
Mil olhos!
Implacáveis.
E hoje diz: odeio.
Ontem diria: amo.
Mas odeia, odeia com indômitos ódios.
E se se aplaca, como acha o tempo pobre!
E a liberdade inútil,
inútil e vã,
riqueza de miseráveis.
O Prémio Literário Irene Lisboa, nas modalidades de prosa e poesia não tem tido, na minha opinião, a projecção da mulher que lhe deu nome.
Eu devia escrever sobre os presos. Tão irmanada me sinto tantas vezes com eles!(…)Isto até onde irá? O tempo para mim é uma espécie de passagem apertada.
Calma, alguma vez calma? Alguma vez o doce sentimento da plenitude, de tranquilidade; de nos bastar aquilo que recebemos da vida? Não, porque esse sentimento deve ser apenas pressentido, apenas desejado, nunca perfeitamente conhecido…Pelo menos, não é um sentimento ordinário.
E de modo nenhum aquela ambicionada conquista de épanouissement!
A vida ama-se. Se se ama! Amamo-la através de tudo e de todos. Amamo-la até quando a renegamos e dela desesperamos.
(…)Quem é que a si mesmo se descreve, quem é que se conhece bem?
(…) Noto que nos homens a impressão ou o acontecimento do desejo é brusco e que alterna com a indiferença. É uma alternância com foros ou vislumbres de lei. Nas mulheres não, julgo eu que não. Elas são mais lentas e mais ternas que eles, não desligam muito bem o sensual do sentimental, demoram e complicam as fases do amor. São eles, realmente, os seus mais felizes exploradores, os mais despreocupados.
Veio-me um desejo infantil de me livrar de mim mesma, de me deixar de me sentir o meu eterno centro e periferia(…) ambiciono a mais extraordinária arte, a de pôr a nu a desordem do espírito, a confusão, não a tranquilidade?
Nós que somos senão ordem e desordem constante?
E mais uma vez…ainda mais uma vez, por uma espécie de solidariedade moral me apeteceu enfileirar com os ignorantes. Penso que com eles resolveria muitos casos que os sábios nunca me deixaram abordar, sequer.
Assim neste livro Solidão de Irene Lisboa, pela chancela da Portugália Editora e que agora releio por outros tempos do interpretar, foi para José Régio, um dos mais inteligentes documentos humanos que existem em língua portuguesa e por estas acima citadas palavras, aqui o deixo.
Faço minhas também as palavras de Luísa Dacosta quando refere a necessidade de semear Irene Lisboa aos espaços abertos do futuro.
José Cardoso Pires entendeu-a no esforço de recusar o fácil reabilitando a profundidade e Virgílio Ferreira não esqueceu o quanto o nada está em nós por comparação à generosidade da obra desta tão solitária escritora.
Também Augustina Bessa Luís referindo-se a Irene Lisboa
«No momento em que desaparece Irene Lisboa, bem poucos de nós estarão isentos de a ter desconhecido ou evitado. (…)A obra continua ao nosso dispor; não é de morte que devemos falar.»
O público às vezes respeita demasiado tarde a inteligência que reside na criatividade, na arte, pois move-se na vaidade terrena dos autores que são, ou que entendem eleger por não dano, a um estranho equilíbrio da mediania, onde, se é certo que aí pode viver quem é bom, também vive quem nunca consegue ser excelente e não abre porta a quem faz levedar o pão.
Com 66 anos e em 1958 morre Irene sem deixar de ter escrito
«Achavam-me insistemática… Era de um cientista a opinião.