Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

7ª Crónica de Alberto Vaz da Silva na Grécia de Sophia


O BÚZIO DE CÓS

 

  

Está uma manhã quente, mas Cós eleva-se verdejante e fértil.

 

Começamos a pé pela Ágora antiga onde abundam vestígios e ruínas, entre as quais a do Templo de Hércules, de quem Hipócrates descenderia pelo lado materno. O "fundador da medicina moderna" aqui nasceu em 460 a.C. e teria plantado o milagroso gigantesco plátano que nos dá uma sombra benfazeja enquanto o evocamos. Além de ter pela primeira vez, que se saiba, classificado doenças e os quatro temperamentos psicossomáticos relacionados com os elementos da natureza, proferiu o juramento que ficou célebre.

 

Depois de prestar homenagem ao seu Mestre, comprometeu-se a tudo fazer que pudesse beneficiar os doentes, abstendo-se de todo o mal e injustiça. Jurou jamais ministrar venenos ou a uma mulher substâncias abortivas e protestou passar a vida e exercer a sua arte na inocência e na pureza. Baniu intenções de qualquer malefício voluntário e corruptor, sedução de mulheres ou rapazes, escravos ou livres. Prometeu nortear-se pelo segredo profissional e a discrição; nutriu a esperança de assim poder gozar a vida e o exercício da sua profissão honrado para sempre entre os homens. Mas em caso de perjúrio, que o destino lhe fosse adverso para sempre.

 

Esta alegria, justiça e pureza crescentes ameaçadas pela fatalidade estão no símbolo da serpente, eterna esperança de cura. De regresso ao barco vimos como da constelação da Lira, ligada a Apolo, derivam as do Hércules e do Ophiucus, esta atravessada pela infindável Serpente que nasce perto da Coroa Boreal, louro celeste dos heróis míticos. O profundo sentido da vida paira sobre as nossas cabeças dito pelas estrelas brilhantes, nas incessantes trocas entre céu e terra, em baixo como em cima.

 

Foi na "mediterrânica noite azul e preta" de Cós que Sophia comprou "numa venda junto ao cais / Rente aos mastros baloiçantes dos navios" o búzio que deu o título a um dos seus livros, e consigo "trouxe o ressoar dos temporais".

 

No mercado vimos incontáveis búzios de múltiplas cores e espécies, conchas, esponjas e estrelas-do-mar. Mas o búzio trazido por Sophia naquela longínqua noite como a de hoje sem lua que para sempre a ligou, e nos ligou, a Cós, não ecoava afinal "o marulho de Cós nem o de Egina / Mas sim o cântico da longa vasta praia/ Atlântica e sagrada/ Onde para sempre minha alma foi criada".

 

Estamos nós também na esteira do regresso.

O TEATRO DE FERNANDO AMADO: EDUCAÇÃO E EMIGRAÇÃO/IMIGRAÇÃO


António Manuel Couto Viana

 

A evocação de Fernando Amado, como escritor, como doutrinário interveniente na vida pública e cultural do seu tempo e como homem completo de teatro - dramaturgo,  encenador, diretor de companhia, professor - tem  aqui sido feita no também no quadro das comemorações dos 120 anos de Almada: aliás, o CNC esteve diretamente ligado à colaboração recíproca de ambos, como temos recordado.

 

Ora, importa assinalar aspetos pouco conhecidos da obra de Fernando Amado. Já referi a sua ação pedagógica no Conservatório, de que muito beneficiei. Mas esse sentido pedagógico e essa notável vocação educativa surge em muitas outras e por vezes inesperadas áreas. Uma delas, hoje esquecida, foi a colaboração, como dramaturgo, na Campanha Nacional de Educação de Adultos que, nos anos, 50, desenvolveu uma notória ação de alfabetização, sobretudo no grande interior e nos meios rurais, á época mais do que carenciados.

Para essa Campanha Fernando Amado escreveu, em 1953, duas peças em que concilia o sentido didático com a simplicidade poética da escrita. Logo os nomes são esclarecedores: “O Livro” e “O Aldrabão”, nada menos. Ambas encenadas por António Manuel Couto Viana, percorreram, sobretudo a primeira, o país, representadas por atores profissionais.

 

São textos de grande sentido teatral e perfeição literária, como tudo o que Fernando Amado produziu. Mas mais do que isso: a propósito e a partir do temário pedagógico da educação de adultos, Fernando Amado refere outra importante questão da sociedade portuguesa - a saber, a emigração/imigração.

 

Senão, vejamos. Em “O Livro”, o protagonista, Gil, num longo monólogo inicial, está feliz porque estudou: “ganhei a aprovação nos exames de leitura e escrita graças ao senhor prior. Já não sou analfabeto e por conseguinte posso embarcar… Dito e feito. Se bem o pensei, melhor o fiz”… e ei-lo de partida para Luanda, chamado pelo amigo Tomé das Bouças. Certo que naquele tempo Luanda não era propriamente emigração, mas talvez já fosse imigração…

 

E a peça desenvolve-se numa sucessão de diálogos com amigos, habitantes da aldeia, um escrivão, um caixeiro-viajante, num registo de fé cristã e apologia da alfabetização e do livro simbólico, que o Gil enviará ao seu amigo Cristóvão.

 

E em “O Aldrabão” o protagonista “Xico, o aldrabão, trepado sobre uma pedra, fala a um grupo de aldeões” a quem lê as cartas por eles recebidas e que eles não conseguem ler… Mas afinal, o Xico é tão analfabeto como eles: não lê, inventa as correspondências recebidas. E por isso mesmo, só por milagre ele próprio, porque não leu a convocatória, não faltou à incorporação no serviço militar, o que lhe daria uma pena de prisão.

O Xico assume a sua “aldrabice” e confessa-a ao amigo Manuel. “ Xico - É verdade Manuel. Não sei ler. O Xico Vaqueiro, o leitor encartado, o rival da senhora professora, olha para um livro ou para um jornal como boi para palácio…”  E a solução, para evitar ser preso como desertor (“são capazes de pregar comigo numa enxovia a pão e água!”) é emigrar: “estou resolvido a fugir, a passar a fronteira” !

Afinal, não precisa: ainda está tempo de se apresentar no quartel!

 

Repito: ambas as peças de Fernando Amado, cada uma a seu modo, apontam para a emigração/imigração, como solução e modo de vida ou como recurso; e em qualquer caso, revelam a mesma opção: partir pra outras terras.

 

Mas sobretudo, ambas provam, diretamente ou a contrário, a absoluta prioridade da leitura, da alfabetização - e a partir daí, da educação e da cultura!...

 

Duarte Ivo Cruz