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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Irene Lisboa: uma consciência das palavras e da vida.

 

Escritora de uma qualidade de água no saber do ofício de escrever como poucos.

José Rodrigues Migueis, Gomes Ferreira, João Gaspar Simões estão entre os que a nomearam como escritora de peso e, no entanto, a obra literária de Irene Lisboa nunca teve o gosto do público.

Teve Irene um destino literário marcado pela injustiça e pelo cruel silêncio como muito acontece com quem é verdadeiramente superior e se faz à estrada.

Os seus livros ou eram invendáveis ou rejeitados na publicação por quem não assumia nem assumiu culpa nesta decisão ou, escorriam, muito lentamente das prateleiras quando se mostravam. Ignorada ou esquecida, a sua escrita, em jornais e revistas de pequenas tiragens, eram inconscientes da realidade raríssima de que eram portadores.

Excelente pedagoga, o seu trabalho, nesta área, foi também quase todo ignorado, sem sequer se desejar conhecer com a necessária profundidade, a teoria da educação da escola activa, que, tanta ardência de entusiasmo Irene Lisboa colocou, por ela, na sua luta.

Infeliz a nação que não deu a Irene Lisboa merecido jardim e berço e memória.

Como escutei um dia Pacheco Pereira dizer que não era compreensível que Irene Lisboa tenha sido um dos expoentes mais brilhantes que tivemos em literatura pela poesia, pelo conto, pela crónica e pela novela, e, tão pouco divulgada tenha sido, e ainda o seja, que, acrescento, a tábua quase rasa a que a quiseram condenar e que me levou também a ter a maior dificuldade no encontro dos seus livros e a pasmar os silêncios.

Formou-se pela Escola Normal Primária de Lisboa e fez estudos de especialização pedagógica em Genebra, tendo contactado com Piaget com quem estudou no Instituto Jean- Jacques Rousseau. A escrita, enfim, veio a dominar toda a vida de Irene.

Usou vários pseudónimos entre os quais João Falco, Manuel Soares e Maria Moira. Centrou-se também nas curtas formas de narrativa que denomina de crónicas ou reportagens que tanto retratam Lisboa como o rural e o serrano com uma astúcia cultural invulgar.

 

Jacinto do Prado Coelho qualificando-a de mulher livre num mundo atrasado, constacta também a grandiosidade da sua escrita, muito para além do tempo em que foi produzida.

Dos seus “Pequenos poemas mentais” eis:

 

Quem não sai de sua casa,

não atravessa montes nem vales,

não vê eiras

nem mulheres de infusa,

nem homens de mangual em riste, suados,

quem vive como a aranha no seu redondel

cria mil olhos para nada.

Mil olhos!

Implacáveis.

E hoje diz: odeio.

Ontem diria: amo.

Mas odeia, odeia com indômitos ódios.

E se se aplaca, como acha o tempo pobre!

E a liberdade inútil,

inútil e vã,

riqueza de miseráveis.

 

O Prémio Literário Irene Lisboa, nas modalidades de prosa e poesia não tem tido, na minha opinião, a projecção da mulher que lhe deu nome.

Eu devia escrever sobre os presos. Tão irmanada me sinto tantas vezes com eles!(…)Isto até onde irá? O tempo para mim é uma espécie de passagem apertada.

Calma, alguma vez calma? Alguma vez o doce sentimento da plenitude, de tranquilidade; de nos bastar aquilo que recebemos da vida? Não, porque esse sentimento deve ser apenas pressentido, apenas desejado, nunca perfeitamente conhecido…Pelo menos, não é um sentimento ordinário.

E de modo nenhum aquela ambicionada conquista de épanouissement!

A vida ama-se. Se se ama! Amamo-la através de tudo e de todos. Amamo-la até quando a renegamos e dela desesperamos.

(…)Quem é que a si mesmo se descreve, quem é que se conhece bem?

(…) Noto que nos homens a impressão ou o acontecimento do desejo é brusco e que alterna com a indiferença. É uma alternância com foros ou vislumbres de lei. Nas mulheres não, julgo eu que não. Elas são mais lentas e mais ternas que eles, não desligam muito bem o sensual do sentimental, demoram e complicam as fases do amor. São eles,  realmente, os seus mais felizes exploradores, os mais despreocupados.

Veio-me um desejo infantil de me livrar de mim mesma, de me deixar de me sentir o meu eterno centro e periferia(…) ambiciono a mais extraordinária arte, a de pôr a nu a desordem do espírito, a confusão, não a tranquilidade?

Nós que somos senão ordem e desordem constante?

E mais uma vez…ainda mais uma vez, por uma espécie de solidariedade moral me apeteceu enfileirar com os ignorantes. Penso que com eles resolveria muitos casos que os sábios nunca me deixaram abordar, sequer.

Assim neste livro Solidão de Irene Lisboa, pela chancela da Portugália Editora e que agora releio por outros tempos do interpretar, foi para José Régio, um dos mais inteligentes documentos humanos que existem em língua portuguesa e por estas acima citadas palavras, aqui o deixo.

Faço minhas também as palavras de Luísa Dacosta quando refere a necessidade de semear Irene Lisboa aos espaços abertos do futuro.

José Cardoso Pires entendeu-a no esforço de recusar o fácil reabilitando a profundidade e Virgílio Ferreira não esqueceu o quanto o nada está em nós por comparação à generosidade da obra desta tão solitária escritora.

Também Augustina Bessa Luís referindo-se a Irene Lisboa

«No momento em que desaparece Irene Lisboa, bem poucos de nós estarão isentos de a ter desconhecido ou evitado. (…)A obra continua ao nosso dispor; não é de morte que devemos falar.»

O público às vezes respeita demasiado tarde a inteligência que reside na criatividade, na arte, pois move-se na vaidade terrena dos autores que são, ou que entendem eleger por não dano, a um estranho equilíbrio da mediania, onde, se é certo que aí pode viver quem é bom, também vive quem nunca consegue ser excelente e não abre porta a quem faz levedar o pão.

Com 66 anos e em 1958 morre Irene sem deixar de ter escrito

 

«Achavam-me insistemática…
Era de um cientista a opinião.

Tão formoso espírito tinha!

Incomodou-me tanto o seu dizer!»

 

TERESA VIEIRA