Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Longos anos visitei, sem adivinhar o que o destino me reservava, o museu Memling no Hospital de S. João em Bruges. Era sempre irresistivelmente atraído para o painel da direita do Tríptico de S. João Baptista e S. João Evangelista, chamado Retábulo dos dois S. Joões. Com o seu extraordinário realismo óptico, Memling representou aí a visão apocalíptica da ilha de Patmos.
Sentado numa rocha revestido de ampla túnica encarnada - esse encarnado que apenas e sempre em Memling reaparece - o santo olha em frente, com a pena mergulhada num tinteiro; ergue os olhos para o alto onde visões surgem sobre a água e sobre o céu num espectáculo novo e único para a época.
Deus está sentado num trono rodeado por colunas, um halo esverdeado e um arco-íris,"tendo o aspecto do jaspe e da sardónia" (Apoc. 4:2 - 3). Em redor sete lâmpadas acesas e sete tochas ardentes e relâmpagos que saem do arco-íris (Apoc. 4: 5 - 6). E sentam -se os vinte e quatro anciãos de que treze são visíveis, vestidos de claro e coroas de ouro (Apoc. 4:4), tangendo instrumentos vários. O trono assenta numa superfície líquida onde se reflecte "um mar límpido como cristal" (Apoc. 4:5). Deus está acompanhado por quatro animais recobertos de olhos e com seis asas, semelhantes a um leão, um touro, um homem e uma águia, "os quatro Vivos" (Apoc. 4:6-8). Toda esta visão se inscreve no círculo de um segundo arco-íris, que se reflecte no mar e liga simbolicamente ao santo .
Deus segura na mão direita um livro com sete selos (Apoc. 5:1). Pousado no mais vasto arco-íris um Anjo aponta para o livro e dirige-se a João, "digno de desvendar os selos" (Apoc. 5:2). Um Cordeiro com sete cornos e sete olhos rodeia o livro entre as suas patas (Apoc. 5:6 -7), quebra sucessivamente seis selos, e aparecem os quatro cavaleiros. O primeiro branco montado num cavalo branco a desfechar uma seta, o segundo de armadura negra num cavalo encarnado, o terceiro de longa toga sobre um cavalo preto arvora uma balança e o quarto, a Morte montada num cavalo castanho, é perseguido por uma cabeça de monstro corpulento que tritura corpos humanos contorcidos (o Hades, Apoc. 6:2 - 8).
Ao fundo vemos um eclipse do sol e estrelas cadentes. De costas para o vidente um Anjo incensa Deus, de joelhos em frente de brasas que serão lançadas sobre a terra (Apoc. 8:3 - 5) e provocarão sismos. À direita um Anjo colossal de pernas de fogo, rosto ardente como o sol, rodeado pelo arco-íris, um livro na mão (Apoc. 10: 1 - 2).
No alto do céu a Virgem e o Menino que escapará ao ataque do dragão de fogo com sete cabeças graças à intervenção de um Anjo. A cauda do dragão varre estrelas cadentes e estas por seu lado prenunciam novas catástrofes.
Toda a obra de Memling exprime misticismo e devoção, uma nova organização aberta e límpida do espaço, a cristalização perfeccionista do retrato na procura de uma beleza platónica.
Depois do desembarque, ao sair da gruta onde se desenrolava uma cerimónia religiosa segundo o rito ortodoxo, olhei em frente e deparei com o cenário do Apocalipse. O mesmo mar translúcido, os mesmos ilhéus e enseadas, a vegetação variada. Não duvidei por um instante que o santo que sobrevivera à tortura do azeite escaldante e ficara incólume ao beber uma taça de veneno se sentara sobre aquela mesmíssima rocha enquanto ouvia o que o pintor flamengo transcreveu.
Patmos é um desses lugares em que céu e terra se interpenetram com tal intensidade que a evolução do mundo acontece num refinamento que os séculos vindouros decifrarão.
Das preciosidades, os maravilhosos ícones, um "Ecce Homo" do Greco, os códices púrpura e as bulas douradas do Santo Mosteiro falaremos mais tarde, dissipada que seja a magia desta vivência que apenas talvez computadores quânticos pudessem abordar.
Mas falta o Minotauro, não ficou em Creta. A guia, no seu genuíno inglês de Oxford, implorava que não nos dispersássemos, pois o acesso ao coração da ilha passa por uma estrutura de inextricáveis labirintos, protecção contra os piratas. Repetiu vezes sem conta a palavra "maze".
Chegados ao cimo, na praça, deparo com um hermético edifício de estrutura vetusta e janelas assimétricas, portadas azuis cerradas, encimado por nichos de pedra cegos. Fita- me como colosso pronto a investir. Pergunto quem é. Sabe e não sabe. Ali acaba o Labirinto.
O meu sonho vestiu-te esta tarde de Turandot... Vê tu bem, sonho muitas vezes acordado, até em charlas à hora do chá, com senhoras japonesas! Cabias imensa no abraço da nossa ternura, quando a Callas, na gravação de 1957, no Scala de Milão, clamava cantando: "Padre Augusto...conosco il nome dello straniero! Il suo nome é...Amor!" Vencida pelo amor de Calaf, que acertara na resposta aos três enigmas e assim escapara à morte reservada aos seu pretendentes, Turandot, a filha do imperador da celeste China, todavia tivera o destino dele preso pelo capricho dela. Se tivesse querido, denunciaria ao povo o verdadeiro nome desse príncipe desconhecido, não por tê-lo descoberto mas porque ele lho confessara. Confissão feita, não por obrigação, mas por renúncia à reclamação do direito que sobre ela já tinha como consequência do acerto com que respondera aos enigmas. Calaf, o príncipe desconhecido, não a quisera por direito de conquista, e por isso lhe dera, a ela, a oportunidade de o repudiar e condenar à morte, já fora do prazo estipulado no concurso: se Turandot adivinhasse o seu nome, ele renunciaria e entregar-se-ia à fatal sentença da Filha do Céu. É assim a entrega do amor: faz-se em função da pessoa amada, não em função de si mesmo. Na ópera de Puccini, a revelação final, o apocalipse do nome dele é também a descoberta do íntimo nome dela, que nunca quisera ou sempre receara proclamar. As perguntas enigmáticas, falam mais de desejo de vida do que de sentença de morte : "que fantasma alado vagueia pela noite, se abriga no coração, mas morre pela manhã?" Calaf responde: "La speranza!" E depois: "O que é que surge como chama, se enche de febre ou enfraquece, vermelho como o sol poente?" Hesitante,ainda grita: "Il sangue!" Finalmente,a terceira e última pergunta, a que define a pessoa: "Gelo e fogo, claridade e escuridão, fazendo de vós um escravo ou talvez um rei?" O príncipe contesta: " Turandot!" A princesa não aceitará de bom grado a verdade forte que a venceu. Ele não teima em reclamar, antes a põe, à quase deusa, perante o dilema de lhe descobrir o nome (e ele aceitará a morte) ou de se revelar o nome íntimo dos dois... "Amor omnia vincit". O libreto da ópera,por Giuseppe Adami e Renato Simoni, adapta uma peça do veneziano Carlo Gozzi, escrita no século XVIII, já fora alvo de diversas adaptações, até operáticas, algumas delas inspiradas na tradução de Gozzi por Schiller. Para mim, expliquei eu às madamas nipónicas, nesta ópera - aliás terminada por Alfano, por escolha de Toscanini, depois da morte ( e aproveitando notas ) de Puccini em 1924 - ressalta, mais do que o conflito da crueldade com o amor e a vitória deste, a descoberta do amor inscrito no coração dos homens, como princípio de criação e de vida nova. Daí saí para a "Lohengrin", em que sinto o inverso: Wagner vai buscar à mitologia teutónica as forças que se aniquilam, aquele misterioso impulso para a destruição que encontraremos também na "morte de Deus" de Nietzsche ou na barbárie nazi. Não deixa de ser curioso que ele - familiarizado com a poesia medieval alemã, onde aliás encontrou também inspiração para os "Meistersinger", "Parsifal" , "Tannhäuser" e o próprio "Lohengrin" - não se tenha deixado tentar pelas promessas de um lirismo mais doce que, mesmo quando ensombrecido pelo pressentimento de algo que se possa recear, cantava o encanto chão das coisas humanas e possíveis. Como nestes versos de Walther von der Vogelweide, cujo alemão arcaico tanto lembra o inglês que conhecemos (a inversa é que é verdadeira,claro...) que recitei às minhas ouvintes atentas, pelo seu clima " japonês" (a natureza envolvente): "Unde der linden / an der heide, / dâ unser zweier bette was, / dâ mugt ir vinden / schône beide / gebrochen bluomen unde gras. / Vor dem walde in einem tal, / tandaradei, / schöne sanc diu nachtegal..." Debaixo da tília,no chão onde foi a cama da nós dois,podereis achar,lindamente pisadas, as flores e a erva. Na orla do bosque,num talude, riu piu piu, que bem cantava o rouxinol! Contemporâneo de Vogelweide é Wolfram von Eschenbach, que celebra uma dama que, ao nascer do dia, acorda nos braços do seu nobre amigo, e grita ao dia: "Já não pode o meu amado ficar ao pé de mim. Pois de mim o afasta a tua luz". É ele o autor do " Niebelungenlied", em que "se narram inúmeras maravilhas, que falam de gloriosos heróis e de penosas provas..." Há aí evocações de távolas redondas e amores proibidos, tabus antigos como a Grécia, em que - o próprio Wagner o refere pelo mito de Zeus e Semelé - não podem durar as relações entre os deuses e os homens, pois a satisfação do desejo é destruidora. Quando Kriemhild, "cujo coração puro quisera renunciar ao amor, e vivera muitos dias sem conhecer um só homem que quisesse amar... ...desposou um muito valente homem de armas", tudo a conduziu à verificação real do sonho em que "certa noite vira um belo falcão, forte e ousado, que ela criara, ser despedaçado por duas águias". É mais ao pessimismo germânico, a esse medo de deuses malévolos e espíritos malignos, espreitando-nos do frio escuro de misteriosas florestas e pântanos, que Wagner vai buscar a inspiração para contar amores humanos, excessivos e desprotegidos. Na "Lohengrin", uma maldição paira sobre os cavaleiros do Graal, um freio posto por poderes luminosos mas obscuros os trava e proíbe de pronunciar o nome e a linhagem. Como Kriemhild, Elsa von Brabant apaixona-se: eis que, no momento exato da humilhação final da dona por Friedrich von Telramund - o rejeitado pretendente à dama e à coroa que, sob o feitiço da bruxa Ortrud, a acusa de ter morto o irmão, herdeiro do Brabante - a salva um guerreiro desconhecido (aí tão ignoto como o príncipe da Turandot), que lhe conquista a mão e o amor que, afinal, já a habitava (tal como Turandot reconheceria Calaf já dono do seu coração...). A celebração do enlace dos amantes obedece a uma condição: Elsa nunca deverá perguntar a Lohengrin qual o seu nome, nem a sua linhagem. Mas qual Orfeu, olhando para trás para ver se Euridice o segue no regresso à superfície da terra da vida, Elsa pede uma resposta. Lohengrin poderia ter respondido como Turandot dando um nome a Calaf. Neste caso: o meu nome é amor! Mas não confessa. Fica sujeito à lei da cavalaria a que pertence. Ponho a tocar a "Lohengrin" que trouxe, uma gravação de 1964, com a Wiener Philarmoniker, dirigida pelo Rudolf Kempe, sendo Jess Thomas o Lohengrin e fazendo de Elsa a Elisabeth Grümmer. As madamas nipónicas ouvem de olhos cerrados e coração presente, o pranto suplicante de Elsa: "Bist du so göttlich,als ich dich erkannt,sei Gottes Gnade nicht aus dir verbannt!" Sei agora que vens de Deus, não rejeites a sua misericórdia! Se esta infeliz pelo sofrimento, expia a sua culpa, não a prives da tua presença! Não me repudies,por maior que seja o meu crime! E a resposta "justiceira" do guerreiro: Já o Graal se irrita com a minha demora! Assim terá de ser, assim terá de ser: seremos separados, arrancados um ao outro! As damas gostam da música, impressiona-as o rigor do mito. Para alívio lhes conto a história de Cupido, filho de Vénus, e de Psyché, de quem a deusa do amor inveja a beleza. Psyché também quer conhecer a verdadeira identidade do seu amante, mas Cupido não quer revelar-se. Instigada pelas irmãs, ela tenta apunhalá-lo, durante o sono, para lhe descobrir a alma. Mas ele acorda e ela foge. Ele persegue-a, não para se vingar, mas para lhe pedir que se case com ele. E Zeus acederá a uni-los. Tranquilas, mais confortadas, as senhoras pedem-me mais uma história bonita. Conto-lhes o encontro de Zéfiro com Flora, e como o vento levou a Primavera para se casar com ela e depois a deixou ser rainha das flores e dispensadora do mel. Sorriem. E eu com elas, a pensar no que lhes não digo e te recordo agora: Mandaste-me, há anos muitos, um postal de Nova Iorque, com o casamento de Cupido e Psyché do Andrea Schiavone, exposto no Metropolitan. Dizias só: "Cupido serás,mas eu de Psyché nada tenho. Que nome me darias?" Respondi-te de Frankfürt, num postal ilustrado com outro quadro de um italiano de quinhentos, Bartolommeo Veneto: "Flora". E repito de cor o que te escrevi então: "Esta minha cabeça, Santo Deus! / (Será da idade ou do muito amar?) / Não acerta os pensamentos meus / na oportunidade de os acertar... / O Olimpo percorro sempre à procura / do nome que a minha deusa tem... / Mas tonto, em desvario, nessa altura / não dou com nome que te fique bem! / Quedo-me desgostoso, sem dormir / (Eu, feito pr’ó sono e pr’à preguiça!) / mas, mesmo sem cabeça, eu acho agora / um nome que me alegra e me faz rir, / promessa, primavera tão noviça: / fosse eu sempre Zéfiro...e tu Flora!" E não lhes disse. Fiz duas boas acções: fui-te fiel e poupei-lhes ciúmes escusados. Para encerrar a sessão, voltei à Turandot que grita "Il suo nome é Amor!" e o povo rejubila: "Amor! O sole,vita,eternitá! Luce del mondo é amore! Ride e canta nel sole l´infinita nostra felicitá! Gloria a te! Mas, de regresso ao hotel, com saudades tuas, ia cantarolando o lamento de Orfeu na música de Gluck: "Ché faró senza Euridice..." Traduzi esta carta de Camilo Maria ao som das mesmas músicas...mas em CD!