Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Desembarcados que fomos em Naxos, todos rumámos ao Templo de Apolo sobre as águas, simbolizado por um pórtico recortado no azul e muito mármore jacente. Quase nem demos pelo guia que se nos foi juntando pouco a pouco, discreto e seguro, com um discurso ligado e sereno. Fez a sua vida no mar, é reformado, "sempre destacado para receber VIP". Nenhum arroubo, fundo severo, tudo o que viveu e sabe está à vista, "não precisa de livro nem de arquivos".
Já relatei na quinta crónica como, depois de ouvirmos uma muito completa dissertação de José Pedro Serra sobre o mito que envolveu Teseu, Ariadne, o Minotauro e o aparecimento de Dionísio junto a Naxos enquanto Teseu quebrava a palavra dada e se fazia ao mar, o Professor se propôs traduzir o que acabava de dizer em intenção de Yirolas. Este declinou cortesmente, compreendera tudo, seguiu a exposição mergulhando fundo, até às raízes greco- romanas das palavras. Acrescentou mais tarde, perante a minha admiração, que sempre assim agiu na vida, residindo o seu segredo na profundidade e rapidez da imersão.
Falhámos o encontro com a pessoa que nos ia abrir a catedral ortodoxa. Foi a casa do bispo e pudemos voltar à tarde. Aqui revelou a qualidade do seu coração e uma sensibilidade requintada ao afagar cada ressalto, exaltar a preciosidade de pedras e metais, descrever um ícone raro, acender uma vela votiva misteriosa.
Fez absoluta questão de que não deixássemos de subir ao Templo de Deméter que domina a parte mais fértil da ilha e acompanhou- nos ao pequeno museu em frente para melhor contemplarmos o mármore cristalino da região. Conduziu-nos depois pelos dédalos da cidade antiga até à catedral "dedicada a Jesus Cristo" e ao museu das peças mais raras. Tudo com a mesma convicção, o mesmo sorriso interior.
Ao voltarmos, chegámos à conclusão de que somos exactamente da mesma idade. Disse eu: "estamos a envelhecer". Respondeu ele: "claro que somos velhos. Mas todos os dias vou nadar e ver os meus netos".
Despedimo-nos com um aperto de mão terra-a-terra, ático, ético. Trago-o à colação porque foi ele que preferi em toda a viagem. "Um homem pode enganar-se na sua parte de alimento mas não pode enganar-se na sua parte de palavra.” Sophia, mas também Jorge Luís Borges:
"Diz-se que Ulisses, saciado de prodígios, Chorou de amor ao ver a sua Ítaca Verde e modesta; e a arte está nesta Ítaca De verde eternidade, não de prodígios".
Temos presentes as duas peças de Almada que retomam um certo ambiente histórico e social, no plano e na cronologia da época em que foram escritas. São elas “Deseja-se Mulher” (1928), peça referencial do teatro de Almada, e “S.O.S” (1928-1929), peça complementar da anterior mas de que sobrou apenas o 2º ato, publicado em 1935, no número 2 da revista Sudoeste.
Recorde-se aliás que a realização cénica do “Deseja-se Mulher” foi feita em 1963 na Casa da Comédia, por iniciativa do CNC e encenada por Fernando Amado.
Mas o que aqui hoje queremos lembrar é que, segundo o próprio Almada, ambas as peças integrariam um mesmo texto, ou pelo menos ambas decorrem de um projeto teatral. Almada nos diz, na “Notícia sobre um Ato de Teatro que a seguir se Publica”, o qual antecede, precisamente, a publicação do 2º ato do “SOS”.
Faça-se uma longa transcrição, pois é muito mais interessante ler (ouvir) Almada:
«No ano de 1927, em Madrid, comecei a trabalhar uma peça de teatro e na qual a palavra “Unidade” fosse o grande motivo (…) Como porém não era um ensaio o que me propunha especular com essa palavra que reunisse a todos em legitima humanidade, mas sim um espetáculo de teatro onde comunicasse imediatamente com os públicos, depressa a palavra “Unidade” foi completada pelas de “Tragédia da unidade”. (…) Mas na minha mesa de trabalho surgia uma novidade: era materialmente impossível, dentro da aceitação que o público ainda tem do teatro, conduzir o assunto reunindo-o numa única obra».
E daí, diz no mesmo texto Almada, a criação de duas peças: “a primeira dessas duas obras recebeu o título de Deseja-se Mulher e a segunda é o
S.O. S.”
E de facto, analisadas no seu necessário conjunto, percebemos o que as une e o que as complementa - e não, note-se bem o que eventualmente as “separaria”, porque ambas constituem a “Tragédia da Unidade”. Tragédia no sentido clássico de destino, pois o amor e os encontros e desencontros de Ele e Ela, na primeira, não são diferentes, na essência, dos encontros e desencontros do Protagonista e da Sua Noiva na segunda.
E mais: os sucessivos ambientes do “Deseja-se Mulher”, a começar na “boîte-de-nuit” e a terminar no “mar de ondas rudimentar” onde a sereia discute com o marinheiro - na sua simbologia próxima e percursora de certo teatro do absurdo, conciliam-se bem com a “pequeníssima sala de espera “ e com o “gabinete da direção” do “grande jornal O Estado, Diário nacional” do segundo ato (repita-se, único que chegou até nós) do “S.O.S.”
Ambas as peças conciliam uma minuciosíssima e de início aparentemente realista descrição das cenas, com um ritmo de falas e ações que contraria e desmente esse realismo aparente. Por que estamos perante uma extraordinária antevisão, em muitas cenas e situações, do que viria dezenas de anos depois, com por exemplo Beckett ou Ionesco… o que mostra a indiscutível modernidade do teatro de Almada.
E as duas peças são uma expressão teatral “única”, mesmo considerando que “Deseja-se Mulher” retrata o amor-individuo, e “S.O.S.” retrata o amor-coletividade. Porque, tal como diz o Protagonista do “S.O. S.” - «a humanidade não pode continuar assim com os seus pedaços para cada lado» pois «temos de colaborar todos em edificar a obra única por cima de todas as cabeças da terra!».
Almada diz que “no teatro todos são um”. E o lema-grafismo do “Deseja-se Mulher” não é precisamente… “1+1=1”?