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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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10ª Crónica de Alberto Vaz da Silva na Grécia de Sophia

YIROLAS

 

 

Desembarcados que fomos em Naxos, todos rumámos ao Templo de Apolo sobre as águas, simbolizado por um pórtico recortado no azul e muito mármore jacente. Quase nem demos pelo guia que se nos foi juntando pouco a pouco, discreto e seguro, com um discurso ligado e sereno. Fez a sua vida no mar, é reformado, "sempre destacado para receber VIP". Nenhum arroubo, fundo severo, tudo o que viveu e sabe está à vista, "não precisa de livro nem de arquivos".


Já relatei na quinta crónica como, depois de ouvirmos uma muito completa dissertação de José Pedro Serra sobre o mito que envolveu Teseu, Ariadne, o Minotauro e o aparecimento de Dionísio junto a Naxos enquanto Teseu quebrava a palavra dada e se fazia ao mar, o Professor se propôs traduzir o que acabava de dizer em intenção de Yirolas. Este declinou cortesmente, compreendera tudo, seguiu a exposição mergulhando fundo, até às raízes greco- romanas das palavras. Acrescentou mais tarde, perante a minha admiração, que sempre assim agiu na vida, residindo o seu segredo na profundidade e rapidez da imersão.


Falhámos o encontro com a pessoa que nos ia abrir a catedral ortodoxa. Foi a casa do bispo e pudemos voltar à tarde. Aqui revelou a qualidade do seu coração e uma sensibilidade requintada ao afagar cada ressalto, exaltar a preciosidade de pedras e metais, descrever um ícone raro, acender uma vela votiva misteriosa.

 

 


Fez absoluta questão de que não deixássemos de subir ao Templo de Deméter que domina a parte mais fértil da ilha e acompanhou- nos ao pequeno museu em frente para melhor contemplarmos o mármore cristalino da região. Conduziu-nos depois pelos dédalos da cidade antiga até à catedral "dedicada a Jesus Cristo" e ao museu das peças mais raras. Tudo com a mesma convicção, o mesmo sorriso interior.


Ao voltarmos, chegámos à conclusão de que somos exactamente da mesma idade. Disse eu: "estamos a envelhecer". Respondeu ele: "claro que somos velhos. Mas todos os dias vou nadar e ver os meus netos".


Despedimo-nos com um aperto de mão terra-a-terra, ático, ético. Trago-o à colação porque foi ele que preferi em toda a viagem. "Um homem pode enganar-se na sua parte de alimento mas não pode enganar-se na sua parte de palavra.” Sophia, mas também Jorge Luís Borges:

 

"Diz-se que Ulisses, saciado de prodígios,
Chorou de amor ao ver a sua Ítaca
Verde e modesta; e a arte está nesta Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios".

 

Encontrei o velho Ulisses.

 

26 de Junho de 2013

ALMADA E A UNIDADE DO INDIVIDUO E DA COLETIVIDADE

 

Temos presentes as duas peças de Almada que retomam um certo ambiente histórico e social, no plano e na cronologia da época em que foram escritas. São elas “Deseja-se Mulher” (1928), peça referencial do teatro de Almada, e “S.O.S” (1928-1929), peça complementar da anterior mas de que sobrou apenas o 2º ato, publicado em 1935, no número 2 da revista Sudoeste.

 

Recorde-se aliás que a realização cénica do “Deseja-se Mulher” foi feita em 1963 na Casa da Comédia, por iniciativa do CNC e encenada por Fernando Amado.

 

Mas o que aqui hoje queremos lembrar é que, segundo o próprio Almada, ambas as peças integrariam um mesmo texto, ou pelo menos ambas decorrem de um projeto teatral. Almada nos diz, na “Notícia sobre um Ato de Teatro que a seguir se Publica”, o qual antecede, precisamente, a publicação do 2º ato do “SOS”.

 

Faça-se uma longa transcrição, pois é muito mais interessante ler (ouvir) Almada:

«No ano de 1927, em Madrid, comecei a trabalhar uma peça de teatro e na qual a palavra “Unidade” fosse o grande motivo (…) Como porém não era um ensaio o que me propunha especular com essa palavra que reunisse a todos em legitima humanidade, mas sim um espetáculo de teatro onde comunicasse imediatamente com os públicos, depressa a palavra “Unidade” foi completada pelas de “Tragédia da unidade”. (…) Mas na minha mesa de trabalho surgia uma novidade: era materialmente impossível, dentro da aceitação que o público ainda tem do teatro, conduzir o assunto reunindo-o numa única obra».

 

E daí, diz no mesmo texto Almada, a criação de duas peças: “a primeira dessas duas obras recebeu o título de Deseja-se Mulher e a segunda é o

S.O. S.”

 

E de facto, analisadas no seu necessário conjunto, percebemos o que as une e o que as complementa - e não, note-se bem o que eventualmente as “separaria”, porque ambas constituem a “Tragédia da Unidade”. Tragédia no sentido clássico de destino, pois o amor e os encontros e desencontros de Ele e Ela, na primeira, não são diferentes, na essência, dos encontros e desencontros do Protagonista e da Sua Noiva na segunda.

 

E mais: os sucessivos ambientes do “Deseja-se Mulher”, a começar na “boîte-de-nuit” e a terminar no “mar de ondas rudimentar” onde a sereia discute com o marinheiro - na sua simbologia próxima e percursora de certo teatro do absurdo, conciliam-se bem com a “pequeníssima sala de espera “ e com o “gabinete da direção” do “grande jornal O Estado, Diário nacional” do segundo ato (repita-se, único que chegou até nós) do “S.O.S.”

 

Ambas as peças conciliam uma minuciosíssima e de início aparentemente realista descrição das cenas, com um ritmo de falas e ações que contraria e desmente esse realismo aparente. Por que estamos perante uma extraordinária antevisão, em muitas cenas e situações, do que viria dezenas de anos depois, com por exemplo Beckett ou Ionesco… o que mostra a indiscutível modernidade do teatro de Almada.

E as duas peças são uma expressão teatral “única”, mesmo considerando que “Deseja-se Mulher” retrata o amor-individuo, e “S.O.S.” retrata o amor-coletividade. Porque, tal como diz o Protagonista do “S.O. S.” - «a humanidade não pode continuar assim com os seus pedaços para cada lado» pois «temos de colaborar todos em edificar a obra única por cima de todas as cabeças da terra!».

Almada diz que “no teatro todos são um”. E o lema-grafismo do “Deseja-se Mulher” não é precisamente… “1+1=1”?

 

DUARTE IVO CRUZ