Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Falar do programa «Disquiet» é perceber que noventa escritores norte-americanos postos em diálogo com escritores portugueses assemelha-se um grande e inesperado jogo, em que todos são chamados a descobrir as saídas de um labirinto, com várias saídas e diversas soluções. E a verdade é que esse exercício tem sido fascinante. E sabemos que vai ter inevitáveis efeitos futuros, na escrita, na imaginação, na possibilidade de nos entenderemos, no confronto de preocupações e de temas. Assim, Philip Graham voltou a recordar-nos o seu desafiante e irónico «Do Lado de Cá do Mar» (Presença), tradução de «The Moon Come to Earth – Dispatches from Lisbon» (University of Chicago Press, 2009) e Jacinto Lucas Pires iniciou uma nova coleção da Dzanc Books com «O Verdadeiro Ator»(«The True Ator»), mercê da cuidada tradução de Jaime Braz e de Dean Thomas Ellis.
DISQUIET, UM PROGRAMA SINGULAR Foi a terceira edição e, mais importante de tudo o que se diga, a verdade é que esta imersão total de um grupo de nove dezenas de escritores americanos em Portugal no mês de julho significou a vivência da literatura e da arte como linguagem universal e como oportunidade de pôr a vida a correr ao ritmo do sonho e da criatividade. Estamos a falar do «Disquiet», programa literário internacional, que realizou, de novo, entre nós, uma universidade de verão, de 30 de junho a 12 de julho, que procurou fazer agitar as ideias e a crítica. E temos de recordar a memória inspiradora, presente e inesquecível do poeta Alberto Lacerda (1928-2007), nascido em Moçambique, fundador da «Távola Redonda», mestre da cultura e da criação poética em Inglaterra e nos Estados Unidos, o qual, pela sua obra, nos fez compreender que «cada detalhe vive / inteiro / íntegro - / sua importância é igual / ao inteiro mundo». E não esquecemos o que Eduardo Lourenço disse: «sob o silencioso desdém ou fulgurante ironia, poucos adivinhariam que Alberto Lacerda era nessa época de aparentes certezas um exilado de si mesmo, escolhido com infalível mirada pela musa exigente da pura melancolia e da liberdade». E, talvez por isso mesmo, um dia, Carlos Drummond de Andrade afirmou a Luís Amorim de Sousa que «este é o poeta que me ensina». Que melhor se podia dizer, sobretudo vindo de quem veio?...
UM DIÁLOGO PARA ALÉM DO ESPERÁVEL O Centro Nacional de Cultura (CNC) e a Dzanc Books com o apoio da FLAD, têm procurado com esta iniciativa ser fiéis a uma vocação de apoio à criação, a começar nos jovens escritores. Assim tem feito o CNC, em quase setenta anos de vida, desde Almada Negreiros a Sophia, para só falar de militantes ativos, até Helena Vaz da Silva e às novíssimas gerações de «poems from the portuguese» ou do «Lisbon Consortium». Trata-se de semear a criação sem receios nem restrições culturais. E o certo é que nesta experiência inédita não há circuitos fechados. Há, sim, o lançar ao vento (como no símbolo de uma velha editora) de ideias e de sonhos, para que um dia, daqui a vários anos ou décadas, se possa perceber que houve um grupo de romancistas, de poetas, de escritores, de artistas que aqui veio em puro ato criador, deambulando pelo Chiado, subindo ao Castelo, convivendo com os fantasmas do Orpheu (e seus mestres Antero, Cesário, Pessanha) e recapitulando temas consagrados. Tudo isto, gozando o sol, o calor e até os chuviscos inesperados no Castelo de S. Jorge – mas sobretudo cheios das perguntas, das respostas e do que ficou por explicar ou do que foi dito ao luar, num caminho ao toque do sino da aldeia de Fernando Pessoa ou inspirado pelo «Livro do Desassossego». Sim, foi de «desassossego» que o «disquiet» se fez, procurando traduzir as inquietações e as lutas de desinquietação. Não disse Caeiro que «a minha tristeza é sossego»? Lisboa tornou-se cidade de peregrinação literária. Quantos encontros imaginários poderemos inventar, entre os vários fantasmas que Fernando Pessoa alimentou naquele passo lépido? «Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo»… E quem esteve nesse desassossego? Richard Zenith, Patrícia Reis, Gonçalo M. Tavares, Pedro Mexia, Pedro Adão e Silva, João Tordo, Rui Vieira Nery, Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Patrícia Portela, Jacinto Lucas Pires, José Luís Peixoto, Margarida Vale de Gato, Isabel O. Martins e Rui Azevedo. Eles leram o nosso lado das coisas. Jeff Parker e Scott Laughlin foram, com Teresa Tamen, mais uma vez, os grandes artífices desta complexa construção, sempre presentes e preocupados com a necessidade de os horários não se desfazerem e de os encontros se não tornarem desencontros. E sabendo-se bem como as leituras de traduções são exercícios perigosos, houve a preocupação de pôr a literatura a falar com a literatura, a vida com a vida e a vontade firme de tornar o tradutor o menos possível traidor…
DO LADO DE CÁ DO MAR Philip Graham tem-se tornado um dos nossos. Ele vê de fora, mas é um cicerone experimentado, percorrendo o caminho de Pessoa e trazendo o seu próprio testemunho. Conhece-nos muito bem: «in general I have found the Portuguese to be a very spiritual people, and this is one aspect of the culture that attracts me. The Portuguese also have healthy strain skepticism. I love the balance of the two». Recordamo-nos bem, e com gosto, de «Do Lado de Cá do Mar» (Presença), tradução de «The Moon Come to Earth – Dispatches from Lisbon» (University of Chicago Press, 2009). «Os paquetes que entram de manhã na barra / Trazem aos meus olhos consigo / O mistério alegre e triste de quem chega e parte». Ouvimos Denise Duhamel e Robert Olmstead; Kaherine Vaz (autora de «Saudade» e de «Mariana») a dar-nos a antecipação do que nos reservará em breve a sua verve criadora. Rui Vieira Nery fascinou a todos, ao falar de uma tradição afro-brasileira, que se foi tornando marca de identidade nacional, através do fado e dos seus enigmas. Scott Laughlin revelou-nos o intercâmbio mágico da Casa das Histórias de Paula Rego, em que a narrativa e a pintura se misturam. Jacinto Lucas Pires e Brian Sousa fizeram uma sessão, com música improvisada de intervenção, bem atual, a propósito de resgates e «bailouts», mas, de facto, do que beneficiámos foi da apresentação da tradução para a nova coleção da Dzanc Books de «O Verdadeiro Ator» («The True Ator»), com tradução de Jaime Braz e de Dean Thomas Ellis. Américo abril, personagem estranha, é um artista cansado, sem inspiração, infeliz, que procura transcender-se na representação de Paul Giamatti. E é Portugal que se representa: «Não há nem um gesto, a mínima sugestão de violência. Só o peso da multidão portuguesa, de braços para baixo, corajosos ombros contra as portadas constitucionais. Nem uma palavra mais dura sequer, apenas uns milhares, um milhão de almas, usando o peso da maneira mais sóbria»…
DESASSOSSEGAR, MESMO… Frank Gaspar, sempre ativo, foi um dos animadores, com Onésimo Teotónio de Almeida, numa parceria do «Disquiet» da FLAD, com as Universidade de Lisboa e Nova de Lisboa, das leituras do «Neither here nor there Conference». Lembramos Nemésio a dizer que «os Açores são uma forte variedade da nação portuguesa criada em meio milénio de isolamento norte-atlântico». Como facilmente se compreende, mais do que todas as lembranças do programa, que a cada passo foi reservando surpresas, o que ficou de novo foi essa capacidade de reinventar, de compreender, de conhecer, de dizer e de não dizer, de interrogar criticamente os mitos e sobretudo de entender que este Atlântico que nos separa é o mesmo misterioso oceano que nos leva a perceber que a literatura é uma ligação de corações, de sentimentos e de mil desassossegos. «Sim, esta rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução».
Quando li A Ascensão Da Insignificância de Castoriadis compreendi melhor o quanto estar liberto da tirania de ser o próprio é admitir a manta de retalhos do individuo de todos os dias.
De origem grega e para sempre citado no conteúdo da defesa do conceito de autonomia política, Castoriadis, economista e filósofo deixa clara a sua marca de pensador na filosofia do sec. XX.
A capacidade de um indivíduo racional de tomar as suas decisões respondendo por elas, ou a qualidade de um território de “estabelecer” com liberdade as suas próprias leis, a autonomia local no respeito pelos interesses das populações, um princípio de subsidiariedade como herdeiro legítimo de uma autonomia em maturidade, são significações que muitas respostas fornecem a quem se questiona sobre o mundo do casino e das aparências.
Contudo, pouco alinhada que sou na crença de quem se questiona, ou A Democracia Como Processo e Como Regime não fosse peça de leitura, tenho para mim que o conformismo é domínio de resultado.
Recorda Castoriadis
quando era criança, festejavam-se os aniversários oferecendo prendas, e cada amigo acorria trazendo a sua prenda para a criança festejada. Hoje isso tornou-se inconcebível. A criança que festeja o seu aniversário - quer dizer, os seus pais – dará também uma prenda ainda que de menor importância a sua irmã, irmão ou amigo mais intimo, porque é intolerável que as outras crianças possam aceitar a fantástica frustração que consiste em só receber prendas no dia do seu aniversário.
De facto, na minha opinião, o que daqui advém é um novo estatuto que é atribuído à prenda e ao prazer de a realçar, colocando a criança a aceitar ser afogada numa imensidão de prendas e através delas, sem entender a insignificância das mesmas, abandoná-las para ver televisão.
Assim se esconde a morte, os lutos, as nevroses, tudo substituído pela distracção oca de um olhar que vê televisão e não interpreta nunca sentires, antes transforma a múltiplos quadrados os egoísmos que passam a ser o núcleo das identidades dos dias de hoje.
A morte é o culto dos antepassados quanto muito, mas nunca vista sequer pela luz da Odisseia pois que livros são significações incapazes de penetrar nas ascensões da insignificância destas vidas cuja eventual ética não possui nunca uma efectividade social e a filosofia cria-se a bel-prazer.
Assim a insignificância ocupou espaço numa ascensão arquitectural desprovida da arte do viver, e julgam-se estas gentes ao direito de queixar-se de qualquer pagode tailandês bem mais concreto do que as suas sensibilidades.
A história tornou-se, na melhor das hipóteses, uma paisagem turística a visitar num chuvoso fim-de-semana e ainda assim, seco de perguntas, mas chorudo para a justificação das queixas inúmeras que as insignificâncias só sabem garantir ter como títulos.
Enfim vive-se na corrida de tudo o que não possui o mínimo sentido. Zapping televisivo, supermercados, supostas artes, visitas familiares, tudo num cesto de créditos.
Que força se poderá opor a este bazar informe de sentimentos?
Que força, sem recurso à relação com a tradição revalidará a ideia de responsabilidade?
Ser mais isto do que aquilo na prisão da sociedade que se escolheu aderir, não faz crer que haja qualquer interesse sequer pelos pressupostos antropológicos da política.
Ser futuro é ser projecto alcançado. É ser essência a propósito dos dias. É conspiração universal contra a mentira. É sobretudo o acontecimento fundador.
Trata-se aqui de uma das menos conhecidas e estudadas peças de Almada Negreiros, escrita em Madrid em 1931 e durante anos dada como perdida, exceto numa versão publicada na revista inglesa “Adam” numa inesperada tradução em inglês de Charles David Ley e ao que parece publicada por engano: o que se propunha era a publicação de uma peça do próprio Ley…
Em qualquer caso, o que temos diante de nós é um curioso ato de certa ressonância pirandelliana, através dos diálogos da Mulher e de um grupo de Atores com o personagem Público. É uma cena de teatro no teatro: “Ao subir o pano, estão dispersos pelo palco vários homens e mulheres. Todos falam desordenadamente (e) os que repararam que o pano vai subir procuram os bastidores para fugirem da cena, ou vão para determinado local, como se lho tivessem previamente indicado. Uma mulher distingue-se de todos pela impetuosidade com que procura disfarçar aquela inesperada subida do pano”…, diz a nota de cena inicial.
E a peça inicia-se com um longo monólogo da Mulher, a qual explica ao Público que “não é novidade para ninguém que o teatro está em decadência. O Público abandona cada vez mais o teatro e prefere os outros espetáculos”. Mas é interpelada pelo próprio Público que entra em cena e dialogo com a Mulher, com a Diretora, com os Atores e Atrizes, numa longa conversa de reciproca justificação, numa séria reflexão sobre o teatro, a sua essência e a sua crise.
É que “hoje o Público subirá aqui á cena e vós, senhores autores dramáticos, ocupareis aí os vários lugares do público”, pois o teatro é “a arte de pôr a todos em comunicação nos mesmos entendimentos”.
E mais; trata-se de uma curiosa definição da prioridade do texto, a partir do qual se desenvolverá o espetáculo. É o Público quem o diz: “Sem autores, não há arte. Com bons edifícios, boas companhias teatrais, mas sem autores não há Arte, só são possíveis exibições “. Mas atenção: o Público reconhece e afirma que está nas mãos dos autores, (…) eles é que sabem dizer o que eu quero”.
E curiosamente o Público fala também das conotações financeiras da Arte em geral: “o filão de oiro da Arte, da Arte que vale oiro, e que todo o iro do mundo não será bastante para a servir, está em cima da mesa de trabalho de cada autor” pois “ a imaginação dos autores é o único segredo do mundo que faz nascer , correr e sem perigo de secar a fonte de oiro!”
É pois uma curiosa reflexão acerca dos problemas do teatro e, mais do que isso, da arte em geral, na sua componente de relacionamento com o público.
Et voilà. It is a boy. O nascimento do mais jovem príncipe no United Kingdom coloca quatro gerações em linha para sucessão no trono de Westminster. A monarquia britânica projeta-se assim para o século XXII, sob a égide da House of Windsor fundada em 1917 pela “good riddance” de George V. ‒ Un bon poème sort tout fait! A notícia saiu ontem de Clarence House, confirmada de imediato pelo birth bulletin apresentado no exterior de Buckingham Palace. – Well, my darling. A good beginning is half the battle! É oficial, pois: A future King is born.
A day of very joy. O Prince of Cambridge nasce às 16:24 horas de 22 de julho de 2013 em Paddington, West London, na Ala Wingo do St Mary’s Hospital. A alta temperatura do dia lembrava a Arábia Saudita, em breve surgindo nos céus a beautiful full moon seguida da tradicional chuva a regar a terra e as gentes da ilha. O anúncio di-lo um rapagão: pesa 8 lb 6oz, o equivalente a 3,8 kg. Aquém do memoribilia business e do global media frenzie, que leva jornalistas a acamparem durante semanas na Praed street, saúda-se a jovem família. E o sorriso nos rostos nesta belíssima manhã de sol sublinha o "we could not be happier" dos dukes of Cambridge. A complexidade política apenas surge em torno da denominação do príncipe. Sendo escolha dos pais e cabendo-lhe decidir sobre com que nome reinará, afinal todos na nação possuem preferências e as apostas denotam foros eleitorais, com a maioria a selecionar George ou James ou William George James ou até… Danton! E há sempre tudo quanto um nome contém e a coroa reserva.
A história institucional remete caso similar para o ano de 1894, data do nascimento do futuro Edward VIII no castelo dos destinos cruzados de HRM The Queen Victoria. Alexandrina Victoria (24 May 1819 – 22 January 1901) da House of Hanover impera longamente no período de 1837 a 1901 como monarca do United Kingdom of Great Britain and Ireland, com o título de Empress of India a partir de 1876. Os três demais monarcas servem no tormentoso século XX iniciado com a belle époque de Edward VII entre 1901-10. Albert Edward (9 November 1841 – 6 May 1910) é King of the United Kingdom and the British Dominions and Emperor of India desde 22 January 1901 até à morte, criando a House of Saxe-Coburg and Gotha. O irmão do Prince of Wales e Duke of York sucede-lhe como King George V. George Frederick Ernest Albert (3 June 1865 – 20 January 1936) reina no United Kingdom and the British Dominions e é Emperor of India desde 6 May 1910 até ao passamento, atravessando a I World War (1914–18) que o leva a criar a House of Windsor.
Edward VIII recebe a coroa do irmão. Edward Albert Christian George Andrew Patrick David (23 June 1894 – 28 May 1972) é King of the United Kingdom and the Dominions of the British Commonwealth e Emperor of India tão só de 20 January a 11 December 1936, quando resigna para desposar Mrs Wallis Simpson como Duke of Windsor. A abdicação conduz ao trono o pai de HRM The Queen Elisabeth II. Albert Frederick Arthur George (14 December 1895 – 6 February 1952) é o King George VI of the United Kingdom and the Dominions of the British Commonwealth entre 11 December 1936 até aos dias do fim, vivenciando a II World War (1939–45) como o último Emperor of India e o primeiro Head of the Commonwealth.
Começam agora os primeiros passos na formação de décadas do potencial 43rd Monarch desde que William the Conqueror assume a English crown em 1066. Para já existem praticalities, como assegurar biberão e fraldas frescas. Meanwhile, como desde a manhã lembram os tunes dos Guardsmen aqui próximo e bisadas salvas de canhão na Tower of London a par dos sinos de Westminster Abbey: ‒ Congratulations, William and Catherine! And all the best for the lad!
«Peregrinações em Lisboa» de Norberto de Araújo (Quinze fascículos, s. d., 1938-1939, Parceria António Maria Pereira), com direção artística de Jaime Martins Barata, é uma preciosidade ainda nos dias de hoje. Dir-se-á que a cidade mudou muito, alargou-se, modernizou-se, perdeu elementos castiços, os seus quintais, as suas hortas, como tem dito com persistência Gonçalo Ribeiro Telles. A verdade é que ao lermos hoje Norberto Araújo (1885-1952), peregrinando connosco, seus diletos, reencontramos a história, as personagens, a memória, as raízes e compreendemos melhor Lisboa.
ESTE PENSAMENTO DE PEREGRINAR «Este pensamento de peregrinar pela cidade do passado, dentro da Lisboa do presente, não passa de um deleite de espírito do autor, que dá o braço a quem quer que o acompanhe, prazenteiro destas jornadas, membro da mesma comunidade, freire da mesma ordem cuja regra tem apenas um único capítulo: querer bem; amar a cidade» - assim começa Norberto Araújo. De facto, pega-nos pelo braço e toca de palmilhar as ruas e as vielas, os becos e as quitandas, os lugares, as tascas e as lojas. Assim conheci eu Lisboa. Já tinha morrido Araújo, mas meu avô, que guardava religiosamente as «Peregrinações», fez comigo as suas, e as nossas peregrinações, que depois fui completando, lendo estas, ouvindo outras, escutando eruditos, como Luís Oliveira Guimarães ou Hernâni Cidade, descobrindo almocreves, galegos, varinas e varinos, faias, gente da Ribeira, a levantar-se todo o ano às quatro da manhã, para iniciar às cinco, mas também chorando sítios perdidos, como o Pátio do Gil, onde nasceu Herculano, refazendo a história no Príncipe Real com Agostinho da Silva, conhecendo o Campo de Ourique antigo, dos quarteis, da revolta do 4 de Infantaria, do largo da Páscoa, de S. João dos Bem-casados, ou ajudando a restaurar o velho prédio da Calçada dos Caetanos, e anotando ano a ano a data em que florescem os jacarandás (este ano mais tardios), e notando solitariamente a semana de outubro em que eles recordam a primavera do hemisfério sul com uma falsa floração…
O EXEMPLO DO BAIRRO ALTO Para recordar e homenagear Norberto Araújo, mestre do jornalismo, partilho algumas notas sobre o Bairro Alto. Aí a cidade rompeu com os limites do século XIV, ultrapassou a muralha fernandina e desenvolveu-se no tempo áureo em que se tornou capital atlântica dos descobrimentos. A origem do Bairro Alto vem dos chãos e terras dos Andrades, num sítio arruado que a gente do mar habitava, subindo da Boavista e chegando à Ermida de S. Roque, erguida para livrar a cidade da peste. Pescadores e carpinteiros de machado, comerciantes, carvoeiros e almocreves, nobres e burgueses, eis o que foi nascendo nos séculos XVI e XVII. O velho Bairro Alto foi aberto há 500 anos, em 1513, e comporta trinta e duas serventias entre ruas e travessas desenhadas em talhões na Vila Nova de Andrade. Depois, instalou-se a Casa Professa dos Jesuítas em 1553. Para além das portas de Santa Catarina e da cerca de D. Fernando a cidade cresceu. Aqui tinham acampado as tropas castelhanas no cerco de Lisboa de D. Juan de Castela, tendo elas feito uma célebre queimada, antes de desarvorarem perante a ameaça da peste. Ou seriam estas as terras de Ana Queimada? Era o bairro de Santa Catarina de Alexandria ou o Bairro Novo do Alto que ia até Campolide (hoje o caminho da Escola Politécnica e do Rato) – com o plano ortogonal centrado na Rua da Rosa, até à Rua Larga de S. Roque, passando pela Atalaia, pelos Calafates e pela Queimada. E se falamos de casas, referimos o Convento dos teatinos (o Conservatório Nacional, em S. Caetano), o Palácio do Conde da Ericeira (com o inconfundível cunhal das bolas), a Academia dos Ilustrados e, na Rua Formosa, o Palácio dos Carvalhos, onde nasceu Sebastião José, na hoje Rua do Século. Há ainda a Academia Real das Ciências, nascida no Calhariz (hoje no Convento de Jesus), e o Palácio Lançada, que depois veio a albergar o jornal «O Século». Aqui se cantava: «Eu venho do Bairro Alto cosidinho de facadas». Por aqui nasceu, sob o impulso de Eduardo Coelho, o «Diário de Notícias», o primeiro periódico popular de grande divulgação – e depois este tornou-se o bairro de todos os jornais e de onde partiam os ardinas a apregoá-los. E os arruamentos? A Travessa do Guarda-Mor ou do Grémio Lusitano, a Travessa da Água da Flor, com o Palácio Lumiares e a tal quinta dos Andrades, centro do Bairro, a taberna do Tacão, o Palácio Ludovice com frontaria para S. Pedro de Alcântara, a Rua dos Mouros, o Palácio dos Galvão Mexia, a Travessa de S. Pedro, a casa onde viveu e morreu Luísa Todi, favorita de Catarina II, em S. Petersburgo, e ainda os lugares castiços do Conde de Soure e da Vinha. Até ao século XVIII, havia aqui terra de semeadura, mas também o teatro, onde António José da Silva, o Judeu, levou à cena as «Guerras do Alecrim e Manjerona». E se falámos da Vinha, lembramos ainda o Loureiro e as Parreiras, tudo lugares a recordar a atividade agrícola na extrema da urbanização. E não se esqueça o Pátio do Tijolo, onde está a casa de Anselmo José Braancamp, que foi arrendada a Fontes Pereira de Melo, e onde morreram dois Primeiros-Ministros.
TANTAS INVOCAÇÕES… Como já se disse, o Convento dos Caetanos (entre tantas casas religiosas: inglesinhos, Mercês…) alberga o Conservatório Nacional, criado por Garrett e Bontempo. Em frente, na hoje Rua João Pereira da Rosa, a velha Calçada dos Caetanos, está a casa mais celebrada de Lisboa, onde moraram Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Ferro, Fernanda de Castro, Bernardo Marques, Ofélia Marques, José Gomes Ferreira e António Quadros. Na outra ponta do Bairro, na Travessa André Valente, próximo do Calhariz e das casas do Correio-Mor, da igreja dos Paulistas, invoco a memória de Bocage, que ali morou, e de outro poeta seu amigo, Nicolau Tolentino. A Rua da Rosa é a rua direita do bairro. E há o Poço da Cidade, e a esquina com a Rua da Atalaia com um dos prédios mais pitorescos do bairro, desenhado em extratexto no livro que seguimos. E depois vamos à Rua da Misericórdia, Rua Larga de S. Roque (que foi Rua do Mundo), onde está o Tavares rico, a recordar os «vencidos da vida» e as grandes tertúlias com gastronomia qualificada, mas também há a memória do Tavares pobre, aqui próximo, hoje lembrado no Farta-Brutos… E quantas outras memórias: o jornal «República», a Livraria Guimarães (hoje do grupo Babel) e daqui é um pulo à Trindade e daí ao Carmo – destruídos no terramoto grande. E o povo disse: «Caiu o Carmo e a Trindade». E em S. Roque ia-se pôr tapete para ouvir os Sermões do Padre António Vieira, num tempo em que os fiéis se sentavam no chão ou na laje para ouvir o orador fantástico. O passeio mágico continua: «pelas Mercês, que mudou para Jesus, e pelo Poço da Cidade, que não se sabe ao certo onde é, e diz-se “que foi aqui”, e pela Atalaia, que é uma Avenida de pitoresco, e pela Rosa das Partilhas, cujas partilhas acabaram, sem nunca se chegar a saber quem foi a Rosa». Dileto, continuemos em busca da cidade.
Vamos, vamos para um sítio seguro como nos segreda a linguagem do delírio. A hierarquia?, claro a inferior: aquela do prumo das sentinelas que não enxugam suor. Aquela da hierarquia da grua que impõe distâncias nítidas e tem horror à decência humana.
No entanto
A fuga imóvel também existe.
E existe o dinheiro, existe um poder dos homens que é também género vivente dos deuses que o olham e o inventam como desejam.
Ainda não fedem os seres o suficiente para que a estranha estagnação tenha caracteres que a revoltem? Queria muito, queria muito que a dependência nunca nos alegrasse.
E China dentro, a benevolência da paisagem ignora a sorte dos que nela constroem a vida possível e, navegam rio, no escuro de si mesmos.
E como explicar que não há morte onde nunca se nasceu? Ou se nasceu em sede que sempre foi memória de a ter sentido? Ou bicho-da-seda que se não cansa de a produzir e de a chamar destino?
E podemos ausentar-nos que no parapeito do mundo que vimos, a ordem permite migalhas a quem trabalha terras e por elas produz concertos matinais de cores.
É a vida, mesmo depois de apagada a luz. É o desfile da coragem por muitíssimo tempo indefesa, ou não fizemos nós o nosso melhor para piorar o mundo?
Olhei e olhei e julgo ter percebido a angústia e a decrepitude de certos limbos.
Há muitos, muitos anos, que a falta de guarda às nossas almas, as tornou anjos loucos que apenas procuram sobreviver. E esta China é tanto a noiva que igualmente se aporta à nossa ilha-continente que, ao fruto do bem sobre o mal, chamarei sempre Esperança, e quero muitos, muitos quilos dela, a cada dia, já que o tempo voa sobretudo quando chove sobre o nada.
A well done attitude impôs-se em terras de Her Majesty. Nada menos: The Brits win Wimbledon. Andy Murray soma o ambicionado título do All England Club ao ouro do ténis olímpico, num crazy third game nos courts de Somerset Road, após a não menos espetacular vitória do Estimation de HM The Queen em Ascott. ‒ Eh bien, de bon terroir bon vin! A emoção em torno do ilustre sucessor de Fred Perry é indizível, com mensagem de Elisabeth II, visita a Downing Street e cheers em Westminster. – Well, my darling. The praise of old wine, friends, and gold, is in all places often told! Com great weather and good spirits, à espera do bebé real e as mais excêntricas narrativas a circular em torno da maternidade e dos nomes dos rebentos ‒ aliás, com um curioso Edwardian flavour, ‒ também em Westminster os jogos estão a muito bom nível. É oficial: The Royal Mail is on sale.
Para dizer do êxtase, uma nota basta. Well?! Duas, dado que as vozes até subiram uma oitava. De novo a florir no jardim cá de casa estão as phalaenopsis, vulgarmente por aqui designadas como as orquídeas da Alice. Pois, o fantastic achievment no Wimbledon Men’s Singles Championhip quebra um jejum de 77 anos no pódio. Mrs Virginia Wade fez a diferença na saga, em 1977, mas tantos fallow years no British Grand Slam assemelham o feito de (Sir) Murray a algo quase do domínio milagroso. Fãs havia a temer que tamanho desfavor resultaria até de alguma machinator doli, quando observados os 44 títulos obtidos entre 1836 e 1937, as vitórias em série de Anthony Wilding e dos Doherty brothers, Reggie e Laurie, ou ainda o apreço do jogo na Florence do século XIV. Certo é as expetativas, e o valor nos portais das apostas, subirem agora em flecha quanto ao desempenho das cores nacionais no cricket: The Ashes estão de novo no coliseu de Trenton Bridge, em Nottingham, após prematuro obituário publicado por The Sporting Times em 1882.
So, ashes to ashes, o jogo na House of Commons centra atenções na reforma do sistema político. Com os MP a explorar os custos-benefícios de eventual formalização da constituição histórica, Mr Ed Milliband surpreendeu ao apresentar ontem um ousado pacote de medidas em torno do financiamento dos partidos e das remunerações dos cargos políticos. Tanta solidariedade austeritária recebeu hoje um rotundo não dos Tories. A ideia base na one nation agenda introduz as primárias na seleção dos candidatos eleitorais, enquanto abre o debate aos limites no exercício do poder em matérias como o segundo emprego e o conflito de interesses que assombram as paredes de Whitehall. O tema é politicamente corrosivo. A sessão de hoje nas PMQ foi ruidosa. Sob o signo da agitação nos green backbenches, a temperatura subiu com o ping-pong entre Mr Miliband e o Prime Minister David Cameron sobre quem define que lideranças: se os donativos milionários nos Tory boys ou as quotas sindicais no Labour people. Que o mesmo é questionar: quem compra que policies?
O melhor veio a seguir. O Royal Mail está em vias de privatização, numa operação anunciada por Rt Hon Dr Vince Cable e concebida pela Goldman Sacks com uma cláusula de free shares para os 150,000 trabalhadores. Estes opõem-se em nome dos public standards em instituição secular que até Lady Margaret Thatcher excluíra na anterior cruzada da libertação dos mercados. ‒ What about the royal head in the stamps?!
A publicação da Obra Completa do Padre António Vieira (Círculo de Leitores) constitui um acontecimento cultural da maior valia. Pode dizer-se que, assim, passamos a dispor, em Portugal, no Brasil e em todo o mundo da língua portuguesa, de um extraordinário acervo literário, estilístico, retórico, histórico, político, diplomático, filosófico, epistolar, religioso e vocabular que constituirá ponto de referência para as culturas da língua portuguesa. Com Vieira atingiu-se a maturidade da nossa língua em prosa em exercícios de uma extrema beleza e arte, mas, mais do que isso, definiu-se em literatura a base do barroco luso-brasileiro, que é vastíssimo e cada vez mais tem de ser estudado como um todo – artes, letras, música, dramaturgia, tudo…
PARA ALÉM DA SOBREVIVÊNCIA Estou de acordo com Viriato Soromenho Marques quando afirma que «a lição de Vieira é que Portugal não sobreviverá se a sobrevivência constituir o seu novo e exclusivo desígnio» (Visão, 18.4.13). Vieira desdobrou-se em ações e diligências. D. João IV teve nele o melhor dos diplomatas, porque tinha ideias audaciosas, apesar de todas incertezas. Se fosse para repetir os erros de sessenta anos antes não valeria a pena. Os «fumos da Índia» prevaleceriam e o mito de um «desejado» seria decadente e inútil. É verdade que muito do que desejou não conseguiu, em especial o regresso dos judeus sefarditas e dos cristãos novos, mas a pujança do ciclo americano deveu-se em parte à sua visão larga, que os colonos execraram, a ponto de ter de sair do Maranhão em perigo de vida, depois de fazer o Sermão de Santo António aos Peixes. Significativo é o texto que o Padre enviou a favor dos cristãos-novos ao Príncipe Regente D. Pedro, em 1671, na sequência da promulgação da lei que mandava que fossem «exterminados do reino e suas conquistas todos os que desde o último perdão geral saíram confessos», estando fora do poder pátrio bem como os que abjuraram e seus descendentes. Os que ficassem no reino seriam impedidos de constituir morgados, não podendo suceder nos constituídos por cristãos-velhos, estando proibidos de casar com cristãos-velhos e seus filhos de estudar nas universidades. Tudo isto, originado por um crime de sacrilégio cometido em Odivelas de roubo do Santíssimo Sacramento. Na nota, enviada sem assinatura, o Vieira considera que a lei pecava por injusta, podendo pôr em causa as legítimas pretensões do reino no tocante à recuperação económica e à atração de capitais que permitissem superar as dificuldades inerentes à guerra da Restauração e à legitimação do novo poder real. Não estava em causa a gravidade do crime, mas sim as consequências políticas da decisão legislativa – num antijudaísmo inconveniente, sobretudo tendo em consideração que não se estava perante um ato inédito. O certo é que noutras circunstâncias não tinha havido lugar a uma medida geral tão dura, pressupondo que seriam os judeus os suspeitos, quando tal decorria de um grave preconceito. De um modo sistemático, Vieira analisa cada um dos argumentos invocados, demonstrando logicamente o erro e as suas consequências nefastas. Como justificar uma condenação que atingia sobretudo os filhos dos homens de nação? Além do mais, «quantas almas que vivem catolicamente» ficariam expostas «ao perigo de se perderem». Por outro lado, havia os filhos dos que «abjuraram de veemente» - na linha das decisões nefastas de Carlos V e de Filipe II. Quanto aos morgadios, os castigados eram os instituidores «que faleceram pia e canonicamente», estando ameaçada a confiança dos inocentes parentes. «Sem dúvida serão daqui por diante os juízos, uns manifestos e uns públicos teatros, donde se andarão arguindo e descobrindo as faltas e defeitos das gerações. Pedirá o que não tem defeito, o morgado a quem o tiver, e responderá este, que não tem defeito, e que o tem o que lho pede». E sobre o não poderem os filhos dos cristãos-novos estudar nas universidades do reino, a medida serviria apenas para «abater e aniquilar aos cristãos-novos, para que por seu idiotismo vivam humildes e desestimados». E o resultado seria, apenas, impedi-los de «aprender os mistérios da nossa fé, e os fundamentos que a hão de defender…».
ARGUMENTOS DE INTELIGÊNCIA E SENSO Vieira usa inteligentemente o argumento de que a condenação à ignorância é absurdo e injusto. «E viverão com tal ignorância, como vivem os muito rúticos, de cuja salvação duvidam muitas vezes os varões doutos, pela notável ignorância dos mistérios que reciprocamente devem saber». E acrescenta logo outro argumento prático, conhecendo bem a «gente de nação» e os cristãos-novos: sendo estes «separados do estado vil e de ofícios mecânicos» perder-se-ia o seu contributo, pois não aprenderiam os ditos ofícios, deixando de participar para a riqueza da pátria. Assim, este género de castigo teria a mesma «deformidade», de ser contra inocentes; «porque os filhos de homens de nação, de sete ou oito anos, e ainda de dez ou doze, não têm uso de razão para haverem de pecar nas matérias de fé». E os casamentos? A proibição apenas serviria para alcançar o objetivo contrário ao pretendido, se o fim seria extinguir nos homens de nação o judaísmo: «a experiência mostra que o meio mais proporcionado para o intento é o de se misturarem em casamentos com cristãos-velhos». Afinal, o Padre António Vieira vem dizer que uma lei nova como esta conduz a resultados nefandos. E encontramos uma defesa que hoje qualificaríamos de institucionalista. «Em todas ou quase todas as coisas é sempre melhor seguir as constituições antigas, as quais todas as vezes que se mudam, se pioram; porque ainda quando a mudança aproveitar, perturba, e por isso se deve evitar, na opinião de Santo Agostinho, pois ordinariamente, posto que seja para melhor estado da república, costuma ser causa de maiores males dela…». Para S. Gregório Nazianzeno: «tanto tem de bem e louvável mudar o parecer e a resolução menos acertada e conveniente, quanto mais de torpe o perseverar nela».
A EXIGÊNCIA DA EQUIDADE Usando exaustivamente argumentos de racionalidade, o Padre António Vieira demonstra com meridiana clareza que a medida é errada, para além das razões de elementar justiça, em virtude das más consequências que suscita. E assim, «os cristãos descendentes do sangue hebreu não pedem nem pretendem perdão geral, porque o perdão é remetido para culpados e eles querem só remédio para inocentes; e assim suplicam, e só querem, que o sumo pontífice oiça as claríssimas razões dos gravames que apresentaram, e os mande examinar juntamente com todas as razões em contrário, papeis e requerimentos do Santo Ofício de Portugal, e que depois de ouvidas ambas as partes, julgue Sua Santidade o que for mais conveniente à fé e à justiça, e aplique remédio eficaz para que em Portugal padeçam os culpados sem gravame dos inocentes…». Vieira é especialmente enfático neste desígnio e sabendo nós as suas preocupações fundamentais, percebemos que a enumeração dos argumentos visa sensibilizar os interlocutores sobre a correção das suas ideias. O método usado nos «Sermões», visando persuadir os fiéis, é transposto para os memoriais, as notas ou as cartas. E o certo é que a visão de conjunto que começamos a ter da obra de Vieira demonstra que muito mais do que o jogo admirável de imagens, de palavras e de figuras de estilo, o autor revela uma inteligência informada e argumentativa, com um pensamento próprio, com ideias claras e distintas, não confundíveis com qualquer formalismo. E o cavalo de batalha de Vieira é a exigência de não proceder a generalizações iníquas. E por isso recorda a lembrança intolerável e tremenda de um falso acusado levado a confessar um crime que não fizera com medo de perder a própria vida.
Tem sido esta a minha sina: viver fora do meu tempo, e sempre necessariamente nele. Será estúpido, talvez, irrealizável certamente. Mas é assim, e mais não posso. Não é presunção, nada tem a ver com desejo ou vontade. É, simplesmente, um olhar do coração a fazer com que a cabeça esteja aqui e além. Também não é difícil, é tão só uma tensão, simultaneamente dolorosa e muito feliz, entre o que surge possível e o que impossivelmente me chama. Não te direi a ti, a quem digo tudo, que seja estar entre a realidade e o sonho... Antes será estar entre esta realidade, que vemos, e outra, em que gostaríamos de nos ver. E onde seja possível estarmos. Como diria o padre Cardonnel (no "Deus é Pobre"?): "o pecado é a paixão dos nossoa limites" ! É não entender que tudo, tudo, muda sempre... E que, precisamente por isso, só somos nós sendo na mudança... Mas sendo nós. Ser eu e a minha circunstância - como diria o Ortega - é viver o drama, a tensão, desse paradoxo." É estar e não ser o que se está", como tantas vezes repetia o nosso Alberto, no seu português materno que, não sendo língua de filósofos, tão bem intui essa ferida genética da condição humana, essa permanente dor que é o rasgão entre o ser e o estar.
Na papelada escrita nos anos da minha ousada juventude "pensadora" - que destruí - havia uma longa dissertação (pretensiosa, penso, e por isso a rasguei) sobre "A Liberdade em Espinoza"... Vê tu bem! Lembrei-me dela, há pouco, por ter dado comigo a seguir peregrinações dos olhares europeus sobre outros povos e civilizações... Voltei ao "Tractatus Theologico-Politicus" de Baruch de Espinoza, redigido em latim, publicado, anonimamente, em 1670, por esse judeu de família vinda de Portugal para os Países Baixos. E, para me descansar do esforço da leitura, alcancei,para ler na cama, "Le Secret de l´Espadon" do Edgar-P. Jacobs. Ambos me motivaram a fazer um percurso que me levou a Bento de Góis e a Sérgio de Beaurecueiul. No "Tractatus", Bento (era o seu nome português) Espinosa, acicatado pela memória da sua família sefardita, de judeus ibéricos e marranos também, propõe uma explicação para a sobrevivência da nação judaica, explicação essa que já tem sido atribuída a um impulso de desforra dos que o tinham excomungado da sinagoga portuguesa de Amsterdam. Escreve ele: "Quare hodie Judaei nihil prorsus habent, quod sibi supra omnes Nationes tribuere possint...", ou seja, "nada podem hoje os judeus procurar que os coloque acima de todas as nações. Quanto à sua longa duração como nação dispersa e sem se constituir em Estado, isso em nada surpreende, já que os judeus têm vivido à parte de todas as nações de modo a atraírem o ódio universal, não só pela observância de ritos opostos aos das outras nações, mas também pela circuncisão a que estão religiosamente submissos. Aliás, mostra a experiência que o ódio das nações proporciona a conservação dos Judeus. Quando o rei de Espanha obrigou os Judeus a abraçar a religião do Estado, ou a exilarem-se, muitos se tornaram católicos romanos, e tendo desde então participado dos privilégios dos Espanhois de raça,julgados dignos das mesmas honras, se fundiram com os Espanhóis, a tal ponto que, pouco depois, nada deles ficou, nem sequer a lembrança. Foi diferente com aqueles que o rei de Portugal obrigou à conversão: continuaram a viver separados, porque foram excluídos de todos os cargos honoríficos..." Não me interessa, agora e aqui, o acerto ou desacerto de um juízo sobre circunstâncias históricas. Em hora pós-prandial, vagamente nebulosa e tão sossegada, entrego-me a interrogações para as quais não espero respostas imediatas... Anoto apenas a ideia de que o acolhimento do outro transforma, com a circunstância, as pessoas. E pergunto: estaremos condenados a sempre projectar fantasmas? Em "Le Secret de l´Espadon", o inimigo a abater, o mal essencial a destruir, é o perigo amarelo, "les jaunes"... Inspirado no terror ocidental da ameaça que o Japão representou na guerra do Pacífico, o medo é motivado, nesta primeira aventura de Blake e Mortimer, pela sombra da vontade de conquista universal que um império extremo-asiático projecta sobre o mundo. A capital deste monstruoso "Leviathan", amarelo pela cor da pele, é Lhassa, imagina!, no Tibete! Claro que, guiados pelos bons princípios da moral e da organização britânica - do UK que, por mais de um século, dominara povos e territórios do sul e sudeste asiático - muçulmanos, com hindus confundidos, colaboram na resistência até à vitória final... Quem diria? Com que facilidade se identificam, com o mal ou o bem, povos e raças, religiões e culturas? Curiosa civilização cristã esta, europeia e nossa, em si mesma já dividida por ódios que se brindavam com epítetos de "boche!" , "marrano!", "papista!",etc... e pretendeu ser lição para "pretos", "índios", "amarelos", etc... Ganham, no meio da miopia e mesquinhez, estatura enorme pessoas como o dominicano Bartolomeu de las Casas, o jesuíta António Vieira e o nosso frei Sérgio de Beaurecueil. E muitos outros. Mas hoje - até por essa simultaneidade de muçulmanos e tibetanos em "Le Secret de l´Espadon" - recordo o irmão Bento de Góis. Nasceu nos Açores, na ilha de S. Miguel, foi marinheiro e soldado, comerciante e, finalmente, frade jesuíta, sem todavia ter recebido ordens sacras. Foi definitivamente admitido na Companhia de Jesus em 1588, quando tinha 26 anos e vivido em Ormuz, onde aprendera e praticara o persa. Foi o conhecimento dessa língua veicular no Império Mogol que lhe valeu ser colocado, pelos seus superiores religiosos, em 1594, na missão jesuíta na corte do Grão Mogol. E deste, que era Akbar, recebeu o passaporte que lhe permitiu iniciar, em Outubro de 1602, a viagem que o levaria de Agra, na Índia, através do Paquistão, do Afganistão, de Tian Shan e do deserto de Gobi, até a Suzhou, já para lá da Grande Muralha da China, onde chegou no dia de Natal de 1605. Aí morreria em 1607, vestido à muçulmana e usando o nome de Abdalá Isawí (jesuíta). O objectivo de tão prolongado percurso era descobrir o Catai, supostamente um reino cristão estabelecido para os lados da China. Rumores da existência de reinos cristãos antigos, ou de cristandades extra-europeias fundadas nos primórdios do Cristianismo - como o Reino do Prestes João ou o Reino do Catai - permaneceram muito tempo na tradição de vários povos, e há notícia de que a mensagem evangélica não se espalhou apenas pelos mundos helénico e romano, mas chegou à Índia e à China. Um texto da liturgia siro-malabar da festa do Apóstolo S. Tomé reza assim: "Por S. Tomé, o erro da idolatria desapareceu das Índias. Por S.Tomé os Chineses e os Etíopes foram convertidos à verdade... ...Por S. Tomé, os esplendores da doutrina vivificadora atingiram a Índia inteira. Por S. Tomé, o reino dos céus foi dado aos chineses." Um dos escritos apócrifos cristãos, redigido em siríaco e grego, provavelmente no século III, tem por título "Actos de Tomé" e começa por relatar como o Senhor, na distribuição de missões pelos Apóstolos, a Judas Tomé confiou a Índia. Perante a recusa deste,o Senhor vendeu-o como escravo carpinteiro a Habban, mercador do rei Gudnafar,que assim o leva para o destino que lhe fora atribuído. Por lá ficará e ali morrerá mártir,pelas mãos do rei Mazdaí... Terá sido a Igreja inicialmente estabelecida na Síria e na Mesopotâmia que, mais tarde, se expandiu para Oriente. Quando, nos séculos VII e VIII, o Islamismo segue o mesmo caminho, até à Índia e à China,não integrará apenas populações hindús,budistas e outras,mas também cristãs. Na China, ganha, com a dinastia Ming, alguma preponderância, ao ponto de ser plausível a conversão do imperador Zhengde, no início do século XVI. Mas afinal o Islamismo implantou-se,para Ocidente,até ao Atlântico,pela margem sul do Mediterrâneo e o norte de África e,a partir do Médio Oriente,cobriu o norte da península industânica e atingiu, pelo sul,a Malásia e a Indonésia. Ainda que prosélito em regiões do Império do Meio,nunca fez do Imperador Celeste o Sultão ou Califa de um imenso império asiático... "Le Secret de l´Espadon" poderia ter sido uma história bem diferente... Pois há uma contradição intrínseca ao modo teológico do ser muçulmano: em clima de guerra,prevalece o apelo da "jihad",da guerra santa; em ambiente de paz,a tolerância. Akbar o Grande, Grão Mogol, teve a dita de escutar um mestre persa, Mir Abdul Latif, que lhe inculcou o princípio "sufi" da tolerância universal. Por isso, tinha jesuítas na sua corte. Um deles chamava-se Jerónimo Xavier,sobrinho-neto de S.Francisco Xavier. Foi ele quem enviou Bento de Góis em busca do Catai. Minha Princesa de mim: esta carta é um conto das mil e uma noites. Mas,desta feita,é este sultão a entreter a Princesa..." Esta carta de Camilo Maria levou-me, quase quarenta anos depois, a reler, na "Descrição da China" do Pe.Matteo Ricci,o relato da viagem do seu irmão açoriano. Voltarei a ele e, quando com ele chegar a Kabul, pensarei em frei Sérgio de Laugier de Beaurecueil.
Nunca saberei como descrever as pedras argamassadas, as pedras de calcário, os tijolos feitos de massa e farinha de arroz enfaixados, ali colocados por milhares de camponeses que, em troca do trabalho, eram libertos do pagamento de impostos, como se não morressem dois a cada metro na construção da Muralha. Ali no grande cemitério do mundo.
E é de silêncio que vos falo.
As sentinelas comunicavam nas torres por fumaças e fogos, enquanto os alojamentos e estábulos dos animais se encontravam por debaixo onde gelo e calor os mataria em funções de aviso, apenas de aviso, e por cumprir o aviso, morreriam enquanto guardavam armas e suprimentos para que os inimigos nunca se atrevessem ao instante deles, que eram amanhãs de pulso fixos nas poças vivas de sangue, onde todo o impossível se vivia numa existência de estranho luto e imensa dor, de orgulho fatigado e nunca entendido ou questionado.
Cheguei à primeira grande Torre numa exaustão total pelo declive inenarrável na subida até ela, e pelas diferentes dimensões dos degraus que impunham coragem e força a quem os enfrentasse, ou também pelas vertigens, pois que o muro, muitas vezes, já só existe de um dos lados ao qual nos agarramos também no compreender qual dos inimigos matara mais os que ali trabalharam.
Cada torre tinha que visualizar os sinais emitidos pela vizinha, era assim que também se obedecia em rigor à construção, e o combustível mais usado era esterco misturado com palha.
Mas a Grande Muralha e suas vidas condenadas salvaram a China em 1482, quando os mongóis ficaram presos contra as fortificações.
E ali sentada, nos degraus de vários feitios e dimensões, recordava que havia lido que em 259-210 a.C. a Dinastia Chin começara a unificar a muralha, aproveitando fortificações construídas por reinos anteriores, e que sempre os mil anos que se estimam terem sido consumidos por este percurso que serpenteia todas as montanhas, entre a fronteira com a Coreia até ao deserto de Góbi, Mar Amarelo, Mongólia e por todos os locais onde é mundo, e que apenas a Dinanstia Ming no sec. XV de algum modo fez sossegar.
Gêngis Khan sim, ele e a Muralha. Lembrei-me o quanto longe estava desta realidade que agora vivia, quando a miragem espiritual se desenhava nos almanaques de quadradinhos por onde conhecia os feitos de G. Khan.
E voltei a olhar as montanhas, a querer reter tanta maravilha em indescritível paisagem e nesta construção, uma das mais famosa do mundo, e afinal, a menos entendida e da qual nem a extensão real se conhece: 8.800 km? Um número!, e que atrevimento não pensar que o mesmo sempre rodopiará sem pausa.
Afinal uma arquitectura militar numa indiferença de coração? Lenda viva de uma China Imperial? Ou mais? Pois que nunca devo perder-te, nem nenhum tiro abalará o que pode partir comigo ó Muralha!, depois de te ter conhecido, depois de chorar tanta beleza e morte e pedir num penhor a tua graça, o teu inferno, a tua salvação que me reflui na chegada de reforços que pedi muito à tua despedida.
E a acácia primeira é tua, como o lenço afinal que te acena sabendo melhor o quanto a vasta vida é tão breve, o quanto as bússolas enlouquecidas nos transtornaram tempos, enquanto apenas um fio que seguro numa das pontas, me deixa sozinha, e vai em sorte onde se acende o caminho eterno da Muralha da China, o horizonte verde e belo que nos faz entender as montanhas quando num apelo nos dizem:
«Tu não te lembras da Casa? Do choupal sobre o muro?»