UM “CICLO ANGÉLICO” NO TEATRO DE FERNANDO AMADO
Já tivemos ocasião, noutro local, de qualificar como “ciclo angélico” duas peças breves de Fernando Amado, “Véspera de Combate”, escrita por volta de 1940, e “Caiu um Anjo”, esta em dois quadros e estreada em 1952. E “ciclo angélico” porque ambas são identificadas pelo autor como Mistérios, expressão de ressonância medieval, pois em ambas avulta como protagonista o personagem Anjo, precisamente… E o anjo corporiza uma visão e intervenção transcendental de notável expressão poética.
“Véspera de Combate” põe em cena um Peregrino em diálogo com uma Rapariga, no quadro cenográfico de “blocos de colunas que foram uma igreja; vestígios de incêndio”. Note-se que a rapariga pouco mais é do que uma simples figuração contrapontística. Porque o diálogo estabelece-se entre o Peregrino e o Anjo, e constitui, aí sim, uma meditação acerca da natureza humana na sua expressão transcendental e de certo modo mística. O que implica o acesso a uma linguagem teatral - poética próxima do simbolismo, o que não é caso único no teatro de Fernando Amado: recordaremos aqui, na altura própria, por exemplo “A Caixa de Pandora” e outros textos.
Mas no caso vertente deste “ciclo angélico”, quero referir a transcendência das falas do Anjo: “fugias de ti mesmo como a sombra foge do corpo em movimento. A imagem da felicidade embebia o teu sonho; ia em redor de ti, flutuando como névoa que tolda a vista“.
E no final: “a culpa dos homens não está em fazerem a guerra, mas não quererem a paz! (…) homem novo…estarei sempre aonde me procures… serei sempre tão belo quanto te puderes ver!”
Ora, em “Caiu um Anjo - Mistério em dois Quadros” (1952), se muda o ambiente para uma “Lisboa à noite. Rua. Sobre a direita, casa de pasto”, de expressão quase naturalista, em que se enfrentam 13 personagens, entre eles dois “bêbedos”, o “senhor e a senhora elegante”, o filósofo e ardinas, motoristas, um filósofo e outros mais - repita-se, numa cena e numa linguagem de caris próximo do realismo, o que marca é de facto a evocação de um anjo , simbolizado num “maltrapilho, sebento, lorpa, aquela escumalha da ralé” que leva uma tareia e que não tem intervenção direta no diálogo.
A peça termina com um longo e belo poema , onde se define a vocação universal do anjo: “Assim este anjo caído do céu/é também para ti/alma inquieta, alma infinita, ó minha alma igual ao mundo”… E assenta pois neste paradoxo existencial: “Um anjo porém não tem de ser mais do que espírito. Em toda a ocasião convém-lhe uma linguagem sublime e misteriosa”, diz o Filósofo. Ao que replica o Doutor: “e portanto cai do céus aos trambolhões para apanhar tareia dos bêbedos no meio de rua!” E acrescenta o Senhor Elegante: “com um fato nojento, o nó da gravata à banda e o chapéu amachucado”!
E a peça acaba “num cântico nostálgico e puro, que acaba de se fundir num coro”.
Expressão poética, mas também claramente dramática: exemplo do bom teatro de Fernando Amado.
Duarte Ivo Cruz