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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

de 8 a 14 de julho 2013

 

Reler as «Memórias Económicas da Academia Real das Ciências (1789-1815)» (reeditadas pelo Banco de Portugal, sob a coordenação de José Luís Cardoso, no início dos anos noventa) é um exercício extremamente útil e necessário não só para a compreensão da realidade histórica desse período, mas sobretudo para podermos perceber as razões do atraso e as potencialidades das reformas idealizadas na transição no Antigo Regime para o liberalismo.

 

 

 

O CASO CURIOSO DO TERMO DE AZEITÃO
Atenhamo-nos, a título de exemplo, à sessão de 6 de Julho de 1791 e à comunicação de Joaquim Pedro Gomes de Oliveira sobre as posturas da vila de Azeitão, em complemento à investigação de Tomás António de Vila-Nova Portugal. Começa o académico por elogiar os passos dados no tempo de D. José e no consulado pombalino, uma vez que a cultura, o comércio e a polícia «entraram a ter a consideração, que pela sua importância mereciam, encontrando-se já na nossa legislação sábias e providentes leis que livraram em parte esta interessante matéria da variedade, e confusão, em que se achava envolvida». Descobrem-se restos dos antigos usos feudais, apesar dos esforços feitos no tempo do Mestre de Avis, havendo do lado do ponente a preocupação de encontrar pistas de coerência jurídica, no sentido da liberdade económica, capazes de favorecer a fixação e a criação de riqueza. Começa, assim, por falar da qualidade do terreno e da situação do termo de Azeitão: «propriíssimo para a produção de bons vinhos». «Com justa razão têm sido, em todos os tempos, e são ainda hoje as vinhas o mais interessante e mais extenso ramo da cultura daquele distrito». Salvaguardando o anacronismo, estamos nos antepassados do vinho Periquita… Fala-se, por isso da proteção e disciplina das vinhas, castigando-se os proprietários do «gado cabrum» que levem os rebanhos, bem como os jumentos, para as vinhas. E ainda as proibições das posturas exigem os cães presos desde o dia de S. Tiago (25 de Julho) até 12 de Outubro, proibindo-se haver colmeias em menos de um quarto de légua de distância das vinhas. Note-se a referência ao facto de em Azeitão haver liberdade para definir o tempo da vindima, ao invés de outros lugares, acrescentando o autor a necessidade de haver regras cuidadosas quanto à poda, com penas para quem podasse em benefício do vinho e com dano da vinha. Infelizmente, não houve condenações para os rendeiros abusadores (eles estavam em causa). Por outro lado, havia a proibição de vender vinho para fora do termo sem licença da comarca bem como de comprar vinho por grosso. Explica a memória, que os vinhos de Azeitão tinham duas saídas: os portos de Setúbal e Lisboa. À partida, os comerciantes de Setúbal protegiam a sua produção em detrimento da de Azeitão. Desde o século XIII, a qualidade dos vinhos de Azeitão impôs-se – porque «conhecendo os de Setúbal que os seus vinhos já não podiam suprir o consumo, e extração, crescendo com o comércio o consumo das embarcações nacionais e estrangeiras para o porto daquela vila, cederam às decisões e admitiram os vinhos de Azeitão». Mas havia ainda a concorrência de Palmela e as limitações e sanções de que eram vítimas os de Azeitão, razão pela qual Lisboa era o normal destino da produção daquele termo.

 

ENTRE SETÚBAL E LISBOA
Naturalmente, os negociantes de Lisboa, através dos seus comissários, manipulavam o preço em Azeitão. Por isso, havia em Azeitão uma postura que proibia essa intromissão, mas o certo é que os livros da almotaçaria não registaram uma só condenação por esse facto. Mostra-se, assim, até que ponto chega «a antiga rivalidade feudal, em que as terras se consideravam como quase inimigas, prejudicando-se mutuamente, umas às outras». E lembra-se o tempo em que a Arrábida estava cheia de brenhas («maquis») e era coutada, havendo porcos monteses, lobos e caça grossa a destruir as sementeiras. No reinado de D. José, finalmente, foi «descoutada» a serra, menos uma pequena parte frente ao mar, e os caçadores e os fogos, que destruíram as brenhas, acabaram com os lobos e quase extinguiram os porcos monteses. Recorde-se as posturas sobre os trabalhadores, com penas para quem prometesse ir ao campo e faltasse, ou para o capataz que não levasse a quadrilha prometida (falamos dos malteses, com as suas «casas da malta», vindos da Beira, por não haver gente suficiente e pela concorrência que passou a existir por causa da manufatura do algodão e da estamparia), isto, sem esquecer, a letra quase morta das posturas que impunham ao trabalhador de enxada trabalho de sol a sol, por apenas 120 réis de jorna (o que não se aplicava)… Além dos vinhedos, são os olivais a riqueza de Azeitão, como o topónimo indica, sem lugar a dúvidas. «É cousa notável que sendo constante entre os cultivadores de Azeitão que os olivais são uma das melhores fazendas daquele termo, a cultura das oliveiras esteja aqui quase totalmente desamparada». Apesar de tudo, há posturas que proíbem os gados nos olivais e os porcos debaixo das oliveiras, depois do dia de S. Francisco (4 de outubro), mas, quanto ao mais havia normas insignificantes para impedir o rabisco dos pobres ou o furto da azeitona. Acrescente-se as lenhas de Azeitão, que se tornaram muito importantes, por causa da produção do algodão e «pela fácil condução para Lisboa, pelo rio Coina». Para proteger os pinhais, havia regras que procuravam impedir os fogos e prevenir o roubo dos pinheiros mansos. De facto, os pescadores da Costa, Trafaria e Seixal arrancavam as raízes horizontais desses pinheiros para dar tinta às redes… Havia ainda os castigos para a apanha das pinhas do chão antes de Todos-os-Santos (1 de novembro), «pois que principiando então as pinhas a fecharem-se, já não semeiam por si mesmas o pinhão». O académico considerava ainda digno de reparo que houvesse liberdade em vender lenhas, existindo embaraço a respeito dos vinhos. Os caçadores e os pastores eram os grandes inimigos dos pinhais, pondo-lhes fogo…

 

A PROIBIÇÃO DO LIVRE GIRO DOS PRODUTOS
Afinal, tudo visto e ponderado, o académico critica as posturas (apesar dos avanços com D. José) por porem embaraços, opondo-se ao giro das mercadorias. Além da proibição da livre exportação dos vinhos, havia outras proibições contraproducentes: de rezes, pão, vingo, azeite, legumes, quaisquer mantimentos em geral, caça, galinhas, lenha, carvão, junco, palha e cevada e pedras, se não pagassem ao concelho 60 réis por carreta. O certo é que nos livros de almotaçaria havia condenações para os que levavam frutos para fora do termo sem licença da câmara e contra os almocreves que tivessem extraído azeite para as terras vizinhas. Era a rivalidade feudal que estava em causa. «Hoje conhecemos bem que o consumo, a exportação, é que faz a abundância, e que desta é que vem o bom preço; pois à carestia necessariamente segue a falta do género que o cultivador despreza, quando não há de ter mais que o preciso para comer». Lembre-se que os moleiros não podiam criar mais de um porco, três galinhas, um galo e um cão. E se os moleiros regavam hortas com a água dos moinhos foi-lhes proibido poderem regar mais de três mil couves – precisando-se depois que o terreno em causa não poderia ter mais de 12 varas de comprimento e de 4 de largo… O que acusa o académico nas posturas? O serem multidão. Se fossem poucas tratariam os rendeiros de fazer observar essas; sendo muitas, «fazem a sua conta nas mais insignificantes, e ficam as essenciais sobre gados, e seus danos, sem observância, e os poderosos, que são os que podem ter, sem castigo». Anos passados, o grande amigo do académico Joaquim Pedro Gomes de Oliveira, José Xavier Mouzinho da Silveira, nos decretos da Terceira na regência de D. Pedro, procuraria responder positivamente a estas críticas de sistema. A liberdade facilitaria a concorrência e poderia acabar com a multiplicidade de privilégios…     


Guilherme d’Oliveira Martins