“PORTUGAL” - UMA PEÇA DE ALMADA NEGREIROS
Será este o texto mais “político” do teatro de Almada? Pelo menos, aquele que mais diretamente mergulha no contexto histórico e político (1924) em que se situa a ação, mas que envolve uma meditação intemporal sobre Portugal e os portugueses que é interessante referir, até porque menos habitual na obra de Almada.
Porque se trata de um conflito de ordem pública, de carateres e opções políticas indefinidas, mas que se repercute diretamente no contexto familiar. O primeiro e o segundo ato definem o conflito direto, tanto no plano pessoal como no plano político. José, oficial do Exercito, é o único filho que resta de uma família em que o pai e o outro filho morreram no contexto de revoluções algo indefinidas; não há opções políticas diretas na ação. Maria, noiva de José, teme o destino idêntico para o noivo: mas a Mãe de José, pelo contrário, incita-o a envolver-se nos combates urbanos em curso.
No II ato, estalou a revolução combatida por José. Refugiados em casa de Maria invadida por revolucionários civis que querem prender José, são todos salvos pelo vizinho, nada menos que o Adido Militar inglês. E logo aí, nota-se uma situação algo insólita no diálogo, em parte escrito em inglês.
Mas essa “internacionalização” prossegue no III ato, agora passado no “terraço de uma pensão numa praia estrangeira”. E curiosamente, a cena abre com um longo diálogo entre “uma senhora e uma rapariga”, escrito em francês. A rapariga francesa está apaixonada por um português. Será o José? Em qualquer caso, este chega, acompanhado pela Noiva: e é à noiva que a rapariga francesa se dirige, perguntando-lhe como se diz “je vous aime” em português… A Noiva esclarece-a (“amo-te”) mas acrescenta que “en portugais on ne peut dire je t’aime que une fois dans la vie”.
E a ação desenvolve-se num contexto de equívocos. José fala num livro intitulado “O Exilio”, que está a escrever. A noiva queixa-se de que ”durante o livro todo, a noiva não existe!... Só aparece o noivo a falar na Pátria”: e não lhes compete salvar a Pátria.
Ouve-se um fandango, nada menos, e surge “um rapaz moreno, belo, tipo masculino de meridional ” português, que imediatamente é ameaçado por José: e só não se agridem porque “atravessam a cena uma senhora de braço dado a um capitão do Exército Francês”.
Tudo isto porque José viveu em Portugal um conflito mal esclarecido. E a notícia da amnistia que permitirá a José e à Noiva o regresso a Portugal os concilia. O conflito da Noiva com a mão do noivo provocou, da parte de José, a mentira e “uma traição de morte”: ” A Noiva - Tu não queres nada (…) eu bem sabia que os mortos haviam de matar-te”.
E há uma reflexão sobre os portugueses que não deixa de ser inesperada. “Tu és bem português: sabes defender a Pátria a Honra mas não sabes servir uma e outra.”…
A Noiva, diz a didascália final, “sai decididamente. José, imóvel, segue-a a penas com os olhos. É uma linda manhã cheia de sol. E de repente o pano desce apressadamente como se estivesse atrasado!”
Esta é a única peça de Almada, ou pelo menos aquela em que a estrutura, na sua unidade, mais se sujeita a um estilo próximo do realismo. O que não prejudica a modernidade e qualidade da escrita e a solidez da estrutura dramática. Reflete ainda o ambiente sociopolítico da época. E o recurso a personagens militares também não é habitual.
Luis Francisco Rebello afirma que o “simili-naturalismo do enquadramento dos três atos de Portugal não era senão o trompe-l’oeil de que a pintura, incluindo a sua própria, tão gostosamente se serve”. (in “Três Espelhos” , ed. INCM 2010). E informa que se destinava, tal como “Antes de Começar”, ao Teatro Novo de António Ferro e José Pacheco, o que não sucedeu nem com uma nem com outra. Mas é de registar esse “aval de modernidade” que o realista “Portugal” ainda hoje contem - e de que maneira!
DUARTE IVO CRUZ